Opinião

O Direito do Consumidor como matéria de ordem pública e interesse social

Autor

7 de outubro de 2021, 15h05

O Direito do Consumidor corresponde ao conjunto de normas e princípios que visam a cumprir um triplo mandamento constitucional: o artigo 5º, inciso XXXII, da Constituição Federal [1]; o artigo 170, inciso V, da Constituição [2], e o artigo 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) [3].

De acordo com o primeiro mandamento, a defesa do consumidor é um direito fundamental, motivo pelo qual não pode ser atingida pelo poder constituinte reformador, constituindo cláusula pétrea [4].

O segundo mandamento, a seu turno, elege a defesa do consumidor como um dos princípios que devem balizar a ordem econômica, sendo, portanto, uma limitação legítima da livre iniciativa dos fornecedores.

Já o terceiro mandamento determinou que fosse elaborado o Código de Defesa do Consumidor, reforçando que a necessidade de proteção ao consumidor e de regulamentação das relações de consumo possui origem constitucional.

A Constituição de 1988 representa o centro irradiador e o marco de reconstrução de um Direito Privado mais social, solidário e preocupado com os vulneráveis de nossa sociedade [5].

Constata-se, assim, que a Constituição Federal é a garantia (de existência e de proibição de retrocesso) e, ao mesmo tempo, o limite de um Direito Privado construído sob seu sistema de valores e tendo a defesa do consumidor como princípio geral [6]. A nova ordem pública imposta pela Constituição de 1988 influencia diretamente relações particulares, antes deixadas ao arbítrio da vontade das partes, bem como pressupõe uma consequente intervenção estatal.

Sob esse aspecto, para que o Direito Privado cumpra com a máxima da igualdade, a intervenção estatal — típica de Direito Público e lastreada em normas de ordem pública e na força igualizadora dos direitos humanos — deve se fazer presente [7].

Portanto, com a advento da Constituição de 1988, surge um novo Direito Privado, ciente de sua função social e com influência simultânea dos direitos civis (ou fundamentais de liberdade) e dos direitos sociais e econômicos (ou direitos fundamentais positivados de prestação) [8].

Ressalte-se que o Direito do Consumidor configura parte do Direito Privado. Isso ocorre não porque suas normas são todas de Direito Privado — pois, em verdade, muitas de suas normas tutelares são de natureza pública —, mas, sim, porque seu objeto de tutela é o consumidor enquanto agente privado, vulnerável perante os fornecedores. Diante do reconhecimento constitucional da vulnerabilidade do consumidor e da necessidade de protegê-lo, denota-se que o Direito do Consumidor representa a parte mais social e imperativa do atual direito privado [9].

Saliente-se que, entre as normas que compõem o Direito do Consumidor, nenhuma é disponível e todas são de interesse social, como afirma o artigo 1º do Código de Defesa do Consumidor: "O presente código estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social, nos termos dos arts. 5°, inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal e artigo 48 de suas Disposições Transitórias" [10].

Com efeito, o Código de Defesa do Consumidor é verdadeiramente uma lei de função social e de ordem pública, de origem claramente constitucional [11]. "O chamado direito do consumidor é um ramo novo do direito, disciplina transversal entre o direito privado e o direito público, que visa proteger um sujeito de direitos, o consumidor, em todas as suas relações jurídicas frente ao fornecedor, um profissional, empresário ou comerciante" [12].

O consumidor é o único agente econômico incluído no rol de direitos fundamentais da Carta Magna, pois seu papel na sociedade é intrinsicamente vulnerável perante seu parceiro contratual, o fornecedor. Por conseguinte, o tratamento diferenciado a ser conferido ao consumidor representa necessária concretização do princípio da igualdade, ou seja, de tratamento desigual aos desiguais e da procura por uma igualdade material [13].

Em face do tratamento constitucional conferido ao Direito do Consumidor, temos um sistema de defesa do consumidor com alicerce social e constituído pelo mandamento da dignidade da pessoa humana, sendo impossível estudar o Direito do Consumidor sem estudar a sociedade [14].

Cumpre destacar que, tendo em vista a proteção constitucional conferida aos consumidores, o Código de Defesa do Consumidor é tido como uma norma principiológica. Ademais, Flávio Tartuce sustenta ser possível afirmar que o referido diploma possui eficácia supralegal, ou seja, está em um ponto hierárquico intermediário entre a Constituição Federal de 1988 e as leis ordinárias [15].

Assim, conclui-se que o tratamento constitucional concedido à defesa do consumidor confere ao correspondente ramo do Direito relevantíssimo interesse social, de forma que toda a sociedade é beneficiada pelo desenvolvimento de ações que objetivam garantir o equilíbrio das relações consumeristas.

 

Referências Bibliográficas
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Presidência da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 04/10/21.

BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Brasília: Presidência da República, 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm. Acesso em: 04/10/21.

BENJAMIN, Antonio Herman V.; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 6ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014.

BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito administrativo e políticas públicas. São Paulo: Saraiva: 2002.

CARVALHO, Diógenes Faria de. Do princípio da boa-fé objetiva nos contratos de consumo. Goiânia: Editora da PUC Goiás, 2011.

CARVALHO, Diógenes Faria de; FERREIRA, Vitor Hugo do Amaral. Teoria Geral da dignidade e o reconhecimento da tutela aos consumidores superendividados: estudo em homenagem à Claudia Lima Marques. Sociedade de Consumo: Pesquisas em Direito do Consumidor. Vol. 3. Goiânia: Editora Espaço Acadêmico, 2017, p. 23-36.

CARVALHO, Diógenes Faria de. Superendividamento e mínimo existencial: teoria do reste à vivre. Revista de Direito Revista de Direito do Consumidor. Vol. 118, Ano 27, Jul-Ago/2018, p. 363-386. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.

FENSTERSEIFER, Tiago. O controle judicial das políticas públicas destinadas à efetivação do direito fundamental das pessoas necessitadas à assistência jurídica integral e gratuita. Revista do Processo, Vol. 198/2011, p. 95-126, Ago/2011, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.

FIGUEIREDO, Natália Borges Tosta. Superendividamento do consumidor e a necessidade de tutela estatal. Sociedade de Consumo: Pesquisas em Direito do Consumidor. Goiânia: Editora Espaço Acadêmico, 2015, p. 113/136.

GARCIA, Leonardo de Medeiros. Direito do consumidor: código comentado e jurisprudência. 11ª ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2015.

LIMA, Bruna Giacomini; FERREIRA, Vitor Hugo do Amaral. Homo economicus: os (des)encontros da sociedade de consumo superendividada. Sociedade de Consumo: Pesquisas em Direito do Consumidor. Goiânia: Editora Espaço Acadêmico, 2015, p. 17-37.

MAIA, Maurilio Casas. A facilitação da defesa do consumidor em juízo na formação de precedentes e um novo interveniente processual em favor do vulnerável: a Defensoria Pública enquanto custos vulnerabilis. Revista de Direito do Consumidor. Vol. 127/2020, p. 407-435, Jan-Fev/2020. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2020.

MAIA, Maurilio Casas. A legitimidade coletiva da Defensoria Pública para a tutela de segmentos sociais vulneráveis. Revista de Direito do Consumidor. Vol. 101/2015, Set-Out/2015, p. 351-383, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.

MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 4ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.

MARQUES, Claudia Lima. 25 anos de Código de Defesa do Consumidor e as sugestões traçadas pela Revisão de 2015 das Diretrizes da ONU de proteção dos consumidores para a atualização. Revista de Direito do Consumidor. Vol. 103, Ano 25, p. 55-100, Jan-Fev/2016. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.

MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses. 29ª ed. São Paulo: Saraiva 2016.

TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito do consumidor: direito material e processual. 6ª ed. São Paulo: Editora Método, 2017.

VASCONCELOS, Fernando; MAIA, Maurilio Casas. A tutela do melhor interesse do vulnerável: uma visão a partir dos julgados relatados pelo Min. Herman Benjamin (STJ). Revista de Direito do Consumidor. Vol. 103, Ano 25, p. 243/271, Jan-Fev/2016. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.

VERBICARO, Dennis NUNES, Luiza Correa Colares. O fenômeno do superindividamento do consumidor no contexto de desigualdade social no Brasil. Revista Jurídica Cesumar. V. 19, n. 2, p. 521-555, maio/agosto 2019. Disponível em: https://periodicos.unicesumar.edu.br/index.php/revjuridica/article/view/7076. Acesso em: 04/10/21.

 


[1] Segue o teor do referido artigo 5º, XXXII, da Constituição Federal:
"Artigo 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…)
XXXII – o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor" (BRASIL, 1988).

[2] O artigo 170, inciso V, da Constituição Federal prevê:
"Artigo 170 – A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (…)
V – defesa do consumidor" (BRASIL, 1988).

[3] O artigo 48 do ADCT dispõe:
"Artigo 48 – O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor" (BRASIL, 1988).

[4] Os direitos e garantias individuais constituem cláusulas pétreas por força do artigo 6º, § 4º da Constituição Federal, sendo, portanto, insuscetíveis de reforma por meio de emenda constitucional:
"Artigo 60 -A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: (…)
§4º. Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: (…)
IV – os direitos e garantias individuais" (BRASIL, 1988).

[5] BENJAMIN; MARQUES; BESSA, 2014, p. 38.

[6] Ibidem, p. 38.

[7] Ibidem, p. 44.

[8] Ibidem, p. 41.

[9] Ibidem, p. 53.

[10] BRASIL, 1990.

[11] BENJAMIN; MARQUES; BESSA, 2014, p. 70.

[12] Ibidem, p. 33.

[13] MARQUES, 2002, p. 317.

[14] CARVALHO, 2011, p. 167.

[15] TARTUCE, 2017, p. 11.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!