Opinião

Fundamentos de legitimidade da regulação normativa

Autor

  • Flavine Meghy Metne Mendes

    é pesquisadora do Centro de Estudos de Regulação e Governança dos Serviços Públicos conferencista consultora jurídica doutoranda em políticas públicas pela UFRJ e autora de artigos científicos na ambiência regulatória.

6 de outubro de 2021, 9h10

A formulação das normas regulatórias demanda a consideração de determinados valores democráticos para avanços do bem-estar social geral. Em geral, em coerência com as premissas do better regulation, os procedimentos adequados à elaboração normativa devem primar por decisões legítimas e transparentes, para o alcance de melhores resultados para a sociedade.

O engajamento da sociedade (cidadãos, pequenas empresas, organizações não governamentais, associações comerciais, acadêmicos, pesquisadores, agentes públicos, além de muitos outros), incrementa sobremaneira a legitimidade da norma e reforça a noção de processo justo, eis que fortalece a consideração de interesses e valores plurais de maneira imparcial.

A legitimidade do processo de criação de regras é umbilicalmente ligada à participação do público. Para Harter, o desenvolvimento de técnicas mais consensuais dimensiona a autoridade da regra, imprimindo maior credibilidade e reputação entre todos aqueles que serão afetados por ela.

A participação do público pode ajudar as agências reguladoras a planejar as circunstâncias que enfrentarão, quando a regra for redigida; não raro, a experiência do mercado e as articulações prévias podem redirecionar os programas em curso. Comentários prévios são determinantes dos graus de aceitação e resistência que eventual norma poderá enfrentar nos segmentos afetados. As agências reguladoras não são oniscientes e tampouco gozam de recursos suficientes para conduzir pesquisas necessárias para todas as regulamentações em pauta, notadamente quando precisam enfrentar assuntos com os quais não possuem suficiente familiaridade.

Black alude ao rigor do diálogo e à importância prática da simetria de informações, lembrando ser equívoco pensar que determinado tamanho de regra servirá bem para diferentes mercados regulados, com identidade de vantagens e desvantagens. Muito além disso, diferentes tipos de normas podem ajudar (ou dificultar) a supervisão e conformidade dos reguladores. Diversos estudiosos do tema admitem que regras detalhadas e precisas podem, a depender do contexto, ajudar os reguladores a desencorajar comportamentos reiteradamente não conformes, sendo úteis para persuadir empresas recalcitrantes, ou céticas na aceitabilidade de mudança comportamental. Da mesma forma, regras precisas podem ser úteis para determinados reguladores, facilitando a aplicabilidade para elevado número de casos simétricos, e, ao mesmo tempo, a interpretação e aplicação por parte de grande número de funcionários.

Ainda com apoio nas lições de Black, a defesa de abordagem baseada em princípios depende do contexto regulatório em exame, especificamente as estruturas de motivações da empresa regulada para o alcance da conformidade e sua atitude em relação ao regime regulatório. Em suma, há várias condições para que a regulamentação baseada em princípios seja bem sucedida.

Não é de hoje que se discute a importância das regulamentações negociadas. Em 1983, a Federal Aviation Administration (FAA) tornou-se a primeira agência federal a experimentar a regulamentação negociada. Na ocasião, montou um comitê para negociar revisão dos requisitos de voo e tempo de descanso para os pilotos de linhas aéreas domésticas. O comitê incluía representantes de companhias aéreas, organizações, grupos de instituições públicas, além de outras partes interessadas. As regras já estavam em vigor há mais de 30 anos; mas, mesmo assim, foi alvo de revisões ao longo do tempo. Entretanto, o que chamou atenção da FAA foi o sucesso obtido em 1985, com a edição de regra baseada nas negociações e não contestada judicialmente.

Outra experiência relevante ocorreu com a Occupational Safety and Health Administration (Osha). Por meio da regulamentação negociada, vários padrões foram propostos para o controle e proteção de exposição do trabalhador ao benzeno e a produto químico, conhecido como MDA (um carcinógeno animal usado na fabricação de plásticos). Embora não se tenha atingido a regra totalmente negociada, o comitê MDA chegou ao consenso sobre a necessidade de emissão de recomendações à Osha de determinados padrões de segurança, que serviram de base para formalização da regra regulatória. Na sequência, em 1994, a Osha estabeleceu compromisso para negociar padrões de segurança para trabalhadores que lidam com estruturas de aço.

O procedimento participativo bem conduzido, com edição de regras disciplinares prévias proporciona aos participantes, inclusive às instituições regulatórias, oportunidades realistas, permitindo que suposições e dados questionados sejam testados por terceiros, inclusive por outros integrantes; portanto, confrontados com diferentes pontos de vista. Por óbvio, "o dar e receber", em via dupla, tende a gerar regra mais eficaz e menos onerosa ou até mesmo indicar que a questão em debate não demanda, por ora, edição normativa.

No intuito de incrementar a racionalidade do processo regulatório, Coglianese adverte que o nível quantitativo da participação não deve preponderar sobre a qualidade e o equilíbrio da participação. É preciso haver nível ótimo de participação, sendo indispensável que as agências sejam receptivas a pontos de vista distintos, evitando ser sensíveis a grande número de indivíduos, ou grupos de interesses reprodutores de argumentos já debatidos ao longo do procedimento, para evitar o risco de delongas e custos administrativos desnecessários.

Na esteira dos infindáveis benefícios que se queira considerar, o processo participativo oferece oportunidades de colaboração mútua entre os agentes públicos e privados. Além da superação de assimetrias de conhecimento, retroalimenta a capacidade qualitativa de resposta do setor público e, ao mesmo tempo, estimula equilíbrio regulatório desejável, propiciando, por fim, o acompanhamento sistemático da edição e aplicação das melhorias regulatórias.

 

Referências bibliográficas
BLACK, Julia. Rules and regulators.Oxford University Press. 1997

COGLIANESE, Cary. Citizen Participation in Rulemaking: Past, Present, and Future, 55 Duke Law Journal 943-968 (2006).

HARTER, Philip J. Negotiating Regulations:A Cure for Malaise. Disponível em: https://www.acus.gov/sites/default/files/documents/J1%201982-04%20HARTER%20RegNeg%20Cure%20for%20Malaise%201982%20ACUS%20301.pdf.> Acesso em 04/10/2021.

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