Opinião

Sobre o julgamento de Orestes e o favor libertatis

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6 de outubro de 2021, 6h04

O grande dramaturgo grego Ésquilo, um dos criadores da tragédia e autor de clássicos como "Os sete contra Tebas", "Prometeu acorrentado" e "Os Persas", também escreveu a trilogia batizada de "Oréstia", composta das peças "Agamêmnon", "Coéforas" e "Eumênides". É justamente nesta última que o teatrólogo descreve de forma magistral o julgamento de Orestes, que foi atanazado pelas Erínias [1], acusado de matar o assassino de seu pai (Agamêmnon) quando este retornava da guerra de Troia.

Após ser perseguido, Orestes refugiou-se em Atenas buscando a proteção da deusa Minerva, que designou o tribunal do Areópago para decidir seu destino. O julgamento é realizado por seis dos mais dignos cidadãos atenienses, tendo Atena (nome grego para Minerva) proclamado que esse tribunal será instituído para sempre (esse o primeiro julgamento de um homicídio, constituindo-se na origem mais remota do Tribunal do Júri). Ao término dos debates, proferidos os votos, tem-se um empate no julgamento e antes de proclamar o veredicto a divindade da justiça "esclarece que seu voto deve ser contado a favor de Orestes, que seria absolvido, ainda que os votos se dividissem igualmente" [2].

Surge do julgamento de Orestes a ideia civilizatória de que acaso um julgamento colegiado termine empatado, não sendo exercido o voto de Minerva, deve a decisão ser interpretada em favor do réu, sendo o mesmo considerado absolvido.

Aplica-se nesses casos o princípio do favor libertatis, privilegiando-se o direito de liberdade, não existindo estado genuinamente livre e democrático sem acolhimento a referido mandamento (favor innocentiae, favor libertatis ou favor rei). A doutrina sempre pontou que "no conflito entre o jus puniendi e o jus libertatis, a balança deve inclinar-se a favor deste último se se quiser assistir ao triunfo da liberdade" [3].

Mesmo cuidando-se de conquistas históricas e que se imaginavam cristalizadas no entendimento jurisprudencial, assistiu-se no último dia 29, quando da continuidade do julgamento das ações penais originárias (AP 969, 973 e 974) deflagradas em desfavor do ex-deputado federal sergipano André Moura, uma interpretação, d.m.v., completamente equivocada das garantias constitucionais, sendo o principal intérprete o ínclito presidente do Supremo Tribunal Federal.

Desde julho que a Suprema Corte conta com dez ministros, encontrando-se no Senado da República a indicação para ocupar a 11ª cadeira do Pretório Excelso. Em uma das ações penais submetidas à apreciação do STF (AP 969) houve empate no julgamento (cinco votos pela improcedência da acusação e consequente absolvição do réu e cinco votos pela condenação, com dosimetria da pena realizada somente pelos ministros que votaram pela condenação do ex-deputado, situação que configura um outro sério vício processual, eivando de nulidade o resultado proferido) [4].

Após pronunciar seu voto (que nesse caso não teve a força e o condão do voto de Minerva) empatando o julgamento, o presidente do STF faz expressa referência ao Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (RISTF) [5] noticiando que o favor libertatis somente se aplica em casos de Habeas Corpus ou recurso ordinário em Habeas Corpus e que, em razão da incompletude do plenário, suspenderia o julgamento da Ação Penal 969 até a nomeação do 11º ministro da Suprema Corte.

A prosperar essa interpretação, tem-se uma reviravolta na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que sempre interpretou o empate em favor do réu, independentemente de tratar-se de Habeas Corpus ou qualquer outra insurgência processual, aplicando referido entendimento inclusive em inquéritos ou ações penais originárias [6], contrariando toda a doutrina que em uníssono afirma: "No caso de empate na votação do órgão colegiado, não houve condenação. O empate não transforma o inocente em culpado. A hipótese a ser acertada não atingiu o resultado positivo necessário para alterar o status de inocente. Se há empate, a tese condenatória não venceu. A imputação não foi considerada provada. As posições individuais pelo resultado condenatório não somam força suficiente para retirar o indivíduo de sua posição inicial. Mantem-se o estado inicial de inocência" [7].

O apego a teses e ideias fruto de um punitivismo exacerbado, aliado a transposição de regras típicas do processo civil para o processo penal (a má utilização do pars de nullité sans grief na teoria das nulidades processuais penais é só um exemplo disso), tem possibilitado a adoção de soluções heterodoxas, fora do espectro constitucional, descurando da sabedoria de Minerva.

De forma oportuna e buscando evitar que a Suprema Corte subverta uma construção interpretativa civilizatória que sempre prestigiou o in dubio pro libertate, reafirmando que em havendo dúvida deve o juiz optar pela solução mais favorável ao acusado, adotando a saída processual que prestigie o direito de liberdade do réu, os ministros Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes apresentaram questão de ordem ao discutirem no dia 30 a ata da sessão anterior, sendo que as relevantes questões processuais deverão ser objeto de análise pelo Plenário da Suprema Corte em uma outra oportunidade.

Aguarda-se com expectativa a discussão e votação dessa questão de ordem. Espera-se que Minerva inspire os julgadores do STF para que, com temperança, justiça e humanismo, restabeleçam o entendimento secular, pacificado e de origem civilizatória, que consiste no respeito ao in dubio pro reo e ao favor libertatis.

O empate em um julgamento criminal nunca deverá suspender o veredicto e ser interpretado em desfavor do réu. Os tempos são estranhos e sombrios. Convém a todos os defensores da liberdade permanecerem de atalaia. A hora é de defesa intransigente das garantias constitucionais e das conquistas históricas. Não importa quem seja o réu. Também não deve ser considerada a repercussão do caso, tampouco deve impressionar um discurso autoritário de combate à impunidade, mesmo que isso signifique sacrificar a liberdade no altar das circunstâncias.

É preciso que a sabedoria de Atena e o que foi decidido no Aerópago quando do julgamento de Orestes venha a ser respeitado pela nossa Suprema Corte: havendo empate no julgamento, prestigia-se o direito de liberdade e diante da ausência de certeza, o réu deve ser absolvido. Pensar o contrário implica em subverter a lógica, permitir o retrocesso, menosprezar a presunção de inocência, descurar do in dubio pro reo e fazer tábua rasa do favor libertatis. Defender a liberdade de todos os réus diante da ausência de certeza para condenar implica na defesa de sua própria liberdade.

 


[1] As Erínias na mitologia grega e as Fúrias na mitologia romana figuravam como personificação da vingança. Dividiam-se em Tisífone (castigo), Megera (rancor) e Alecto (inominável).

[2] ÉSQUILO. Oréstia: Agamêmnon, Coéforas, Eumênides. Tradução: Mário da Gama Kury. 8ª ed., Rio de Janeiro: Zahar, 2010, p. 11.

[3] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. Vol. 1. 25ª ed., São Paulo: Saraiva, 2003, 71.

[6] Inq-AgR 4.451/DF; Red. Desig. Min. Ricardo Lewandowski; Julg. 03/03/2020; DJE 02/09/2020.

[7] BADARÓ, Gustavo Henrique. Manual dos Recursos Penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, 202.

Autores

  • Brave

    é doutor em Direito Penal e mestre em Processo Penal pela PUC-SP, professor de Direito Penal da Faculdade de Direito 08 de Julho, advogado e procurador do Estado de Sergipe.

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