Opinião

O anonimato na sociedade do espetáculo

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6 de outubro de 2021, 16h06

A operação "lava jato" foi um marco nacional não apenas pelas consequências, mas principalmente por (re)legitimar uma cultura inquisitória que fez escola.

Os primeiros sintomas já surgem nas salas de aula. Milhares de recém-chegados aos cursos de Direito iniciaram sua jornada acadêmica entendendo o uso da força bruta do Estado, à margem de garantias legais, como um caminho natural no combate ao desvio. Como a operação durou cinco anos — tempo de duração do curso —, os próximos concursos nos darão uma legião de juízes e promotores que replicarão o modelo.

Nos escritórios de advocacia, a revolução foi radical. Se antes o padrão era buscar alternativas legais para a defesa técnica dos constituintes, hoje a primeira opção é questioná-los quanto ao interesse em reduzir o tempo processual e eventual aplicação de pena por meio da colaboração premiada.

Parece pouco, mas retrocedemos séculos de avanços civilizatórios ao relegitimarmos procedimento que a Santa Inquisição utilizava na conquista social da Europa: aponte o dedo para seu vizinho e obtenha seu lugar no céu (se não houver vizinho, pode ser pai, mãe, irmão…). Não é coincidência hoje termos famílias cindidas pela polarização política.

Ainda agora, após o ocaso da operação e a revelação de suas ilegalidades, a CPI da Covid-19 no Senado exibe marcas dessa linha de pensamento quando admite que uma advogada, representando supostos médicos anônimos, deponha contra a Prevent Senior listando acusações que fariam da obra de Mary Shelley um livro de contos para jardim de infância [1].

Se verdadeiras, as acusações merecem que se faça justiça. Não é esse o ponto. Mas, sim, a condenação pública de uma empresa baseada em denúncias anônimas feitas em um ambiente político conflagrado.

O anonimato impossibilita o debate às claras, servindo como instrumento de ataque que inviabiliza a defesa, exatamente o contrário do que pressupõem os valores constitucionais do devido processo legal, da paridade de armas e do direito ao contraditório. É proibido expressamente na Magna Carta: "É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato". Do contrário, como se poderia viabilizar o também constitucional "direito de resposta proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem"?

Manterem-se ocultos os autores das denúncias — salvo em casos expressos previstos em lei — e validar suas acusações, ainda que em seara pública, é peso insustentável em uma democracia. Liberdade de expressão não é falar o que se quer impunemente. Ainda que vedada a censura prévia, tal direito implica suportar as consequências de escutar o que não se quer e responsabilizar-se pelo que foi dito. Como ilustrado no quadro de Jacoby, onde "protegidas pelo anonimato, pessoas com estímulos verdadeiramente escusos movem-se pelos extensos caminhos dos órgãos encarregados da defesa do interesse público" [2].

Como estabeleceu nossa Suprema Corte, "o veto constitucional ao anonimato (CF, artigo 5º, IV, 'in fine') busca impedir a consumação de abusos no exercício da liberdade de manifestação do pensamento e na formulação de denúncias apócrifas, pois, ao exigir-se a identificação de seu autor, visa-se (…) possibilitar que eventuais excessos derivados de tal prática sejam tornados passíveis de responsabilização, 'a posteriori', tanto na esfera civil quanto no âmbito penal" (Inq. 1957, 2005).

Não esqueçamos a lição de Öst, para quem a repetição reflexiva do passado permite ressignificá-lo [3], motivo pelo qual devemos evitar o erro de nossos antepassados, ainda que submetendo-nos a desgostos pessoais, visando a uma sociedade mais transparente, justa e equilibrada.


[1] Autora da obra Frankestein.

[2] FERNANDES, Jorge Ulysses Jacoby. Denúncia anônima: responsabilidade do caluniante. Revista fórum de contratação e gestão pública, Brasília: Fórum, v. 3, n. 27, 2004.

[3] ÖST, François. O Tempo do Direito, ed. Piaget, 2001, p. 42

Autores

  • é advogado criminalista, especialista em Direito Penal Econômico, mestre em Ciências Criminais e sócio-fundador de Daniel Gerber Advogados.

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