Opinião

Reforma administrativa e precarização da posição contramajoritária do servidor

Autor

  • Fabio Paulo Reis de Santana

    é professor de cursos de pós-graduação doutorando em Direito pela PUC-SP presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB-SP membro da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais da OAB e procurador do município de São Paulo.

5 de outubro de 2021, 9h14

No último dia 23, foi apresentado substitutivo ao texto original da Proposta de Emenda Constitucional 32/2020 (PEC da Reforma Administrativa), o qual foi adotado pela Comissão Especial destinada a proferir parecer sobre a alteração na disciplina constitucional sobre os servidores públicos e a organização administrativa.

A despeito de o referido substitutivo ter promovido salutares modificações no texto inaugural submetido pelo Ministério da Economia, faz-se necessário analisar certas disposições no seu texto que, aparentemente, não se coadunam com o mister fundamental do servidor público.

De partida, é importante não perder de vista qual é o referencial ético desejado para a Administração Pública: o interesse público deve residir "em se fazer o que é certo" ou "no que dá mais retorno para uma parcela maior da sociedade"? A posição ética a ser assumida pelo gestor deve ser kantiana ou utilitarista? A escolha de uma ou de outra implica tomada de decisões distintas pelo administrador.

Por exemplo, o §5º do artigo 3º da PEC prevê a avaliação da satisfação dos cidadãos acerca dos serviços públicos prestados pelos entes federativos. Assim, a conduta do gestor, por meio desse instrumento, acabará sendo guiada pela opinião da maioria da população sobre a qualidade do serviço, pois, afinal, nenhum administrador ficará confortável em saber que a sua instituição está sendo mal avaliada. Essa ferramenta termina induzindo uma postura utilitarista do gestor público.

Contudo, se o fundamento ético da conduta da Administração Pública consistir em fazer o que é certo para o interesse público, independentemente da avaliação da maioria da população, a conclusão é que essa ferramenta de avaliação vai de encontro à essência ética da conduta administrativa. Por exemplo: será que um fiscal de tributos que fiscaliza e aplica multas elevadas às pessoas e às empresas seria bem avaliado pelos próprios administrados?

Tomemos como outro exemplo o caso da interrupção da partida de futebol realizada entre as seleções brasileira e argentina, no dia 5/9/2021, levada a efeito pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Se o critério de avaliação for a concepção utilitarista (a ação correta é aquela que beneficia o maior número de pessoas), a Agência poderia chegar à conclusão de que não deveria interromper a partida, porque certamente causaria, como causou, dor a milhões de torcedores que se preparam para assistir ao jogo, sem contar o prejuízo às marcas, às emissoras de televisão, dentre outras empresas, que investiram no evento. Todavia, se o critério de avaliação for o imperativo categórico kantiano (age como se a máxima de tua ação devesse tornar-se, através da tua vontade, uma lei universal), a atuação da Agência estaria correta, porque fez o que é certo, portou-se na defesa do interesse público, sem realizar ponderações quantitativas.

Diante disso, faz-se fundamental, então, a escolha do melhor critério para a Administração Pública.

Como cediço, o servidor público possui uma função contramajoritária, isto é, atua também como garantidor do interesse público, refreando o abuso de poder do gestor, que foi, direta ou indiretamente (por nomeações em cadeia), indicado pelo chefe do Poder Executivo eleito pelo sistema majoritário.

Assim, para bem desempenhar o seu mister, o servidor público, algumas vezes, precisa adotar posturas indigestas para o administrador público, sob pena de crime de prevaricação previsto no artigo 319 do Código Penal.

Ao se cotejar essas ideias com a nova redação que a PEC deseja dar, por exemplo, ao artigo 41, §3º, da Constituição, verifica-se manifesta incompatibilidade, pois instabiliza a posição jurídica do servidor, retirando-lhe as condições de desempenho de sua função contramajoritária.

A nova redação do dispositivo prevê que o "servidor estável perderá o cargo se este for extinto por lei específica em razão do reconhecimento de que se tornou desnecessário ou obsoleto, resguardado o direito à indenização de que trata o §5º do artigo 169 da Constituição".

Esse texto, além de impor injustamente ao servidor estável todo o ônus dos avanços sociais (risco social), termina por desestimular a sua atuação como garantidor do interesse público, sob pena de seu cargo, sobretudo em municípios menores, ser declarado desnecessário.

No mesmo sentido, o inciso I-A que a PEC busca introduzir no §3º do artigo 169, enfraquece a defesa do interesse público, ao prever a possibilidade de "redução transitória de jornada de trabalho em até 25%, com correspondente redução da remuneração". Isso porque a redução de seus vencimentos, a critério da Administração, impacta diretamente na subsistência de sua família.

Do mesmo modo, a previsão de contratação por tempo determinado em regime de direito administrativo a ser introduzida pelo artigo 4º da PEC precariza a trincheira dos servidores contra o abuso de poder, pois a transitoriedade do vínculo estabelecido desencoraja a tomada de posição em defesa do interesse público.

Portanto, conclui-se que, dada a função contramajoritária do servidor público, a concepção kantiana merece ser o melhor critério aplicável às decisões no bojo da Administração Pública. E, a partir da adoção desse critério, as disposições da PEC 32/2020 acima referidas, constantes do substitutivo adotado pela Comissão Especial, violam os direitos e as garantias básicas dos servidores na defesa do interesse público.

Autores

  • é professor dos cursos de pós-graduação em Direito Administrativo da PUC/SP e da EPD, procurador do Município de São Paulo, doutorando em Direito Administrativo pela PUC/SP, mestre em Direito Constitucional pela UFF, pós-graduado em Giustizia Costituzionale e Tutela Giurisdizionale dei Diritti pela Università di Pisa/Itália e advogado.

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