Opinião

O 'passaporte da vacinação' na visão do Supremo Tribunal Federal

Autor

  • Rogério Reis Devisate

    é advogado membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias da Academia Internacional de Direito e Ética da Academia Fluminense de Letras do Instituto Federalista e da União Brasileira de Escritores presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da União Brasileira dos Agraristas Universitários (Ubau) membro da Comissão de Direito Agrário da OAB/RJ e do Ibap autor de vários artigos e do livro Grilos e Gafanhotos Grilagem e coordenador da obra Regularização Fundiária: Experiências Regionais.

5 de outubro de 2021, 17h07

O Supremo Tribunal Federal admite o "passaporte da vacina" ao reformar decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que concedia Habeas Corpus a favor do livre direito de locomoção aos não vacinados.

Não são obrigatórias as vacinas contra a Covid-19 e talvez se interpretasse que isso significava que também o pleno exercício do direito de ir e vir estaria assegurado.

Não é bem assim.

O tema pode gerar alguma polêmica, não sendo imprópria a Revolta da Vacina, havida no Brasil há cerca de cem anos e que envolvia a resistência de parte da população à vacinação contra a varíola, até com a tese de que os vacinados poderiam ficar com feições bovinas. Guardadas as proporções, não é muito diferente da ideia de que os vacinados contra a Covid-19 virariam jacarés.

No fundo, a obrigatoriedade não está no contexto da decisão de não se vacinar, mas na condicionante consequência de que, sem aquele ato, haverá restrições ao exercício da liberdade.

Paradoxais interpretações também já vemos, com pessoas em ônibus e shoppings sem máscaras corretamente colocadas — talvez por se interpretar que sejam obrigatórias para "entrar", e não para "permanecer" no local…

O livre arbítrio individual encara o coletivo e a vigente lei federal sobre a pandemia do coronavírus.

No passado, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6341, o Supremo Tribunal Federal decidiu que "as regras constitucionais não servem apenas para proteger a liberdade individual, mas também o exercício da racionalidade coletiva, isto é, da capacidade de coordenar ações de forma eficiente".

Naquela decisão interpretou-se que a aplicação da Lei Federal 13.979/2020 objetiva "a proteção da coletividade" (artigo 1º, parágrafo 1º).

Na recente decisão do STF sobre o "passaporte da vacina", no leading case recém-decidido, foi considerado que deve viger o decreto municipal do chefe do Executivo da cidade do Rio de Janeiro, na medida em que é ato regulamentar e meramente exemplificativas as medidas previstas no artigo 3º daquela lei votada no Congresso Nacional e sancionada pelo presidente da República.

Esse precedente vai orientar a questão em todo o Brasil e por tal motivo é de tanta relevância.

Além disso, há de se considerar que a Constituição Federal de 1988 determina que se concederá Habeas Corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder.

Portanto, o direito de ir e vir é constitucionalmente assegurado e apenas o seu exercício poderá ser legalmente restringido em alguns casos. Em grande resumo, o direito de locomoção e de ir e vir é e será sempre íntegro, podendo o seu exercício ser legal, válida, eficaz e legitimamente cabível em casos previstos em lei.

O ato questionado, e que ensejou a impetração do Habeas Corpus, foi praticado pelo prefeito da cidade do Rio de Janeiro — em exercício da competência concorrente entre os entes federativos, fixada no sistema jurídico e legal, na Lei Federal 13.979/2020 e na decisão da Corte Suprema (na mencionada ADI 6341).

Outro aspecto de alta relevância se refere à própria expressão passaporte. A etimologia da palavra nos chega do francês passeport (passer + port), que, nas origens, era aplicável à passagem por um porto para entrar e sair do país. Portanto, tem o sentido de "deixar passar".

Ninguém é obrigado a viajar para país algum, embora todos tenhamos essa plena liberdade. Para tanto, alguns requisitos são fundamentais, entre os quais possuir passaporte válido (e, depois, se for o caso, burocracias como o visto etc.).

Alguém pensaria em impetrar Habeas Corpus para ingressar em outro país, interpretando que a exigência de passaporte significaria instrumento cerceador da liberdade de locomoção ou do direito de ir e vir?

Imaginar que um passaporte é por si "limitador odioso" da liberdade de locomoção e de ir e vir equivaleria a considerar também como "limitador" não ter dinheiro para viajar ou para pagar o preço das passagens aéreas e dos ingressos em locais turísticos e estádios, mensalidades em academias etc.

Poderiam ser substituídos por Habeas Corpus a falta de tíquete de ingresso para show ou local turístico ou de dinheiro para pagar passagem aérea ou a conta do restaurante?

Falamos desse modo para que compreendamos que nem tudo o que nos impede de nos locomover é por si passível de Habeas Corpus.

Por qual motivo usamos cinto de segurança nos carros, mesmo contra a eventual "vontade do condutor ou passageiros"? Além do fato de haver previsão normativa a respeito, o "direito individual" fica suplantado pelo "coletivo" interesse em se desonerar os sistemas de saúde e de previdência.

Qual a razão pela qual não se impetra Habeas Corpus para não se limitar o exercício do pleno direito de dirigir acima dos "limites" de velocidade estabelecidos nas estradas e ruas? Caberia Habeas Corpus para não pagar pedágio nas rodovias? Caberia Habeas Corpus para ingressar em qualquer festa de casamento ou outra para a qual não se tem convite?

Sim. Ninguém é obrigado a se vacinar. Todavia, o livre exercício dessa opção traz consigo as consequências do exercício dessa liberdade individual, pois, do contrário, estaria sendo contrariada a lei antes citada, que tem por objetivo "a proteção da coletividade".

Sob o ponto de vista do cotejo entre os altos valores em jogo, é crível que o pleno exercício do livre arbítrio em não se vacinar não poderia corresponder a um salvo-conduto ou a um "direito" de eventualmente contaminar alguém ou de se contaminar em locais onde os demais estejam vacinados — até por se compreender que as vacinas protegem, embora não gerem 100% de imunização.

A pandemia ainda não acabou e gerou mortes e sequelas que, além da inefável dor aos familiares e amigos das vítimas, oneram os sistemas de saúde e previdência.

Portanto, o ato de alguém querer não se vacinar deve ser respeitado, tanto quanto esse deve respeitar não circular com a amplitude que a sua própria decisão representa.

A vida em sociedade exige empatia e respeito às regras e aos princípios de elevada envergadura, não sendo demais lembrar que a Constituição Cidadã de 1988 tem por objetivo fundamental da República a promoção do bem de todos (artigo 3º, IV), o que não significa ausência de regras jurídicas e sociais ou liberdade para não as cumprir.

Autores

  • Brave

    é advogado, presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da UBAU, membro da Comissão de Direito Agrário da OAB/RJ, associado ao IBAP e à União Brasileira de Escritores, defensor Público juto ao STF e STJ, escritor, palestrante, membro da Academia Brasileira de Letras Agrarias e da Academia Fluminense de Letras, autor de vários artigos e dos livros Grilagem das Terras e da Soberania (2017), Grilos e Gafanhotos Grilagem e Poder (2016) e Diamantes no Sertão Garimpeiro (2019).

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