Opinião

Direito Penal e proporcionalidade

Autor

  • André Callegari

    é advogado criminalista pós-doutor em Direito Penal pela Universidad Autónoma de Madrid professor nos cursos stricto sensu (mestrado e doutorado) do IDP/Brasília e sócio do Callegari Advocacia Criminal.

5 de outubro de 2021, 16h16

Recentemente, dois julgados em que foram relatores os ministros Gilmar Mendes (AG. REG. HC 202.883-SP) e Rogério Schietti (HC 681.680-SP) trataram de temas relativos ao delito de drogas e se a aplicação do Direito Penal estava correta. Acredito que uma das possibilidades de analisar ambos os casos seria através do princípio da proporcionalidade no Direito Penal, conforme as linhas abaixo.

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O princípio da proporcionalidade, em sentido estrito, obriga a ponderar a gravidade da conduta, o objeto de tutela e a consequência jurídica. Assim, trata-se de não aplicar um preço excessivo para obter um benefício inferior: quando se trata de obter o máximo de liberdade, não poderão prever-se penas que resultem desproporcionais com a gravidade da conduta [1].

Diante dessa argumentação, a primeira ponderação é se a intervenção do Direito Penal resulta rentável para obter a tutela do bem jurídico: se a matéria é própria do Direito Penal e se compensa a utilização do poder punitivo do Estado. É que em relação à dignidade dos bens jurídicos se depreende, de um lado a necessidade de um reconhecimento constitucional e, de outro, uma materialidade suficiente no bem jurídico. Precisamente, do princípio da proporcionalidade se depreende a necessidade de que o bem jurídico tenha a suficiente relevância para justificar uma ameaça de privação de liberdade em geral, e uma efetiva limitação da mesma em concreto [2].

Também se deve levar em consideração a gravidade da conduta, isto é, o grau de lesão ou perigo em que se expõe o bem jurídico, pois este tem que ser suficientemente importante para justificar a intervenção do Direito Penal. Assim, por importante que seja o bem jurídico  liberdade individual, por exemplo , um ataque ínfimo ao mesmo não pode justificar a intervenção do Direito Penal [3].

De acordo com Rodríguez Mourullo, o princípio da proporcionalidade orienta para o ordenamento jurídico-penal a vigência do valor "liberdade", entendido genericamente como autonomia pessoal. Se tal autonomia se constitui, senão no principal, mas num dos principais eixos axiológicos fundamentais do sistema democrático de organização e de convivência social, resultará que as normas penais, enquanto singularmente restritivas da liberdade, só encontraram legitimação em sua funcionalidade para gerar mais liberdade da que sacrificam. Em outro caso, elas serão qualificadas de normas injustificadas por desproporcionadas. Tal desproporção poderá provir da falta de necessidade da pena, no sentido de que uma pena menor ou uma medida não punitiva podem alcançar os mesmos fins de proteção com similar eficácia [4].

O segundo foco de desproporção não radica no excesso da pena em comparação com medidas de menor intensidade coativa, mas no excesso derivado da comparação direta da pena com a lesividade da conduta. A este segundo tipo de análise interna da proporcionalidade normalmente denomina-se juízo de proporcionalidade em sentido estrito. Pressuposto, em qualquer caso, de ambos juízos de proporcionalidade é que o bem jurídico-penal seja uma condição de liberdade — que a norma aporte, ademais de inconvenientes, vantagens em termos de liberdade — e que a pena seja qualitativamente idônea — que seja instrumental — para alcançar os fins de proteção perseguidos. Sem esses dois pressupostos não pode haver ganhos em termos de liberdade que compensem as perdas de autonomia pessoal que inexoravelmente acarreta a intervenção penal [5].

Roxin, seguindo um critério similar, fala de danosidade social e comenta que uma conduta só pode estar proibida mediante imposição de uma pena quando resulta de todo incompatível com os pressupostos de uma vida em comum pacífica, livre e materialmente segura [6], e acrescentamos que essa conduta só pode estar proibida, ainda, mediante uma pena justa em face do que se protege.

É que o moderno Direito Penal não se vincula hoje à imoralidade da conduta, mas à danosidade social; ou seja, à sua incompatibilidade com as regras de uma próspera vida em comum. Disso se segue, ao contrário, que uma conduta imoral deve permanecer impune quando não altera a pacífica convivência [7].

Sob o argumento da danosidade social, também se extrai do que leciona Roxin que uma conduta só deve estar incriminada quando for incompatível com a vida pacífica e isso significa que não se pode igualar as sanções penais de condutas que, do ponto de vista da danosidade, não atingem, de forma idêntica, o mesmo bem jurídico, ainda que estejam no mesmo capítulo do Código Penal, ou, que em tese, protejam o mesmo bem jurídico.

Por sua vez, Mir Puig refere que a importância social do bem merecedor de tutela jurídico-penal deve estar em consonância com a gravidade das consequências próprias do Direito Penal. Assim, o uso de uma sanção tão grave como a pena requer o pressuposto de uma infração igualmente grave. E ainda quando se mostra de acordo que os bens jurídicos protegidos devem ser os reconhecidos constitucionalmente, menciona que seria evidentemente contrário ao princípio da proporcionalidade protegê-los de todo ataque, inclusive ínfimo, sem requerer um mínimo de afetação do bem [8].

Nesse sentido, assinala Carbonell Mateu que a proporcionalidade também pode ser posta em relação com o princípio da igualdade: assim, resulta contrária a ambos princípios a previsão da mesma pena para condutas de diferente transcendência [9].

Concluindo, Roxin leciona que haverá que deixar ao legislador uma margem de decisão no momento de responder se uma norma penal é um instrumento útil para a proteção de bens jurídicos. Mas quando para isso não se possa encontrar uma fundamentação séria justificável, a consequência deve ser a ineficácia de uma norma penal "desproporcional" [10].

 


[1] CARBONELL MATEU, Juan Carlos. Derecho penal: concepto y princípios fundamentales. 3ª. Ed. Valencia: Tirant lo blanch, 1999, p. 210.

[2] CARBONELL MATEU, Juan Carlos, p. 210.

[3] CARBONELL MATEU, Juan Carlos, p. 211.

[4] RODRÍGUEZ MOURULLO, Gonzalo. Delito y Pena em al Jurisprudencia Constitucional. Madrid: Civitas, 2002, p. 74.

[5] RODRÍGUEZ MOURULLO, Gonzalo, pp. 74/75.

[6] ROXIN, Claus; Introducción al Derecho Penal y al Derecho Penal Procesal. Barcelona: Ariel Derecho, 1989, p. 21.

[7] ROXIN, Claus, ob. cit., 21.

[8] MIR PUIG, Santiago. El Derecho penal en el Estado social y democrático de derecho. Barcelona: Ariel Derecho, 1994, p. 162 e ss.

[9] CARBONELL MATEU, Juan Carlos, ob. Cit., p. 213.

[10] ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do Direito Penal. Tradução e organização de André Callegari e Nereu Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 27.

Autores

  • é advogado criminalista, pós-doutor em Direito Penal pela Universidad Autónoma de Madrid, professor titular de Direito Penal no IDP/Brasília e sócio do escritório Callegari Advocacia Criminal.

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