Opinião

A 'Justiça' de um juiz desumano no processo penal

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4 de outubro de 2021, 6h36

Em tempos estranhos, nunca é demais pedir licença para ressaltar que o breve artigo não objetiva desrespeitar ou desacatar a digna função da magistratura, bem como nenhum de seus integrantes nos variados graus de jurisdição. Do mesmo modo, o presente artigo não pressupõe a generalização repulsiva dos integrantes da magistratura, em especial daqueles que a exercem na contramão da lei, desprestigiando os planos social e humano, inseparáveis da dogmática de um processo penal constitucional.

A comunidade jurídica, ou significativa parte dela, tomou conhecimento [1] de um inconcebível evento processual protagonizado por um juiz no Distrito Federal em uma audiência virtual ocorrida em uma vara do Tribunal do Júri, destinada ao interrogatório de um acusado. Naquela oportunidade, Sua Excelência, ao ser solicitado pelo acusado se poderia lhe dirigir a palavra, recebeu como resposta:

"Rapaz, eu já te falei, você fala se você quiser. Está gravando aí. Eu não estou nem prestando atenção no que você está falando. Estou trabalhando em outro processo aqui" [2].

Antes da inoportuna resposta da autoridade judicial ao acusado, o magistrado, surpreendentemente, notabilizou sua resistência às balizas jurídicas do interrogatório do réu em processo penal, em latente oposição a sistemática jurídica desse essencial meio de defesa conferido ao réu por lei, na linha de um devido processo penal constitucional:

"O acusado disse que não vai responder as perguntas do Juízo nem a do Promotor de Justiça, então, considerando que há jurisprudência, a doutrina entendendo que o interrogatório é primordialmente o momento para autodefesa e a fim de evitar alegação de nulidade, protelação, por que para mim isso é pura protelação de defesa, é exagero de direito de defesa, mas no Brasil como está vigendo um processo penal garantista, extremamente garantista é que no futuro eu prevejo que seu eu eventualmente impedir a defesa de fazer esse tipo de pergunta, isso vai ser revertido né, apesar de eu discordar veementemente disso assim, entender que isso é um contrassenso do processo penal, é um contrassenso do direito, mas eu vou deferir a defesa fazer perguntas pro acusado" [3] (sic).

Embora o escopo do presente artigo não se dirija à natureza jurídica do interrogatório do réu em processo penal, mas ao intolerável comportamento de um juiz na condução de uma audiência em procedimento penal, não se deve perder de vista a inestimável garantia da oitiva do acusado perante o magistrado processante, efetivo destinatário da prova.

Quanto a essa relevante prerrogativa do réu, de ser interrogado pelo juiz, o ministro Celso de Mello, de forma irretocável, salienta a relevância jurídica desse fundamental meio de defesa, tal como se verifica da decisão proferida no Habeas Corpus 162.650, tornando-se imprescindível a leitura dos trechos do decisum a seguir:

"Cabe destacar, bem por isso, no contexto ora em exame, ante a magnitude constitucional de que se reveste a natureza jurídica do interrogatório, notadamente do interrogatório judicial, que representa meio viabilizador do exercício das prerrogativas constitucionais da plenitude de defesa e do contraditório, como tem enfatizado o magistério jurisprudencial desta Suprema Corte:
(…)
É por isso que Luigi Ferrajoli ('Direito e Razão — Teoria do Garantismo Penal', p. 486, item nº 2, traduzido por Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes, 2002, RT), enfatizando o alto significado jurídico do interrogatório como expressão instrumental do próprio direito de defesa do acusado, põe em destaque o aspecto ora mencionado, assinalando, com inteira procedência, que, '(…) no modelo garantista do processo acusatório, informado pela presunção de inocência, o interrogatório é o principal meio de defesa, tendo a única função de dar vida materialmente ao contraditório e de permitir ao imputado contestar a acusação ou apresentar argumentos para se justificar'. 'Nemo tenetur se detegere' é a primeira máxima do garantismo processual acusatório, enunciada por Hobbes e recebida desde o século 17 no Direito inglês. Disso resultaram, como corolários: (…) o 'direito ao silêncio' (…), o direito do imputado à assistência e do mesmo modo à presença de seu defensor no interrogatório, de modo a impedir abusos ou ainda violações das garantias processuais'" (grifos do autor) [4].

O entendimento do ministro Celso de Mello traduz com perfeição a magnitude legal da oitiva do réu, chancelando o "significado jurídico do interrogatório como expressão instrumental do próprio direito de defesa do acusado".

E sob esse prisma devemos tentar perquirir os limites da atuação do juiz em processo penal. É preciso buscar como paradigma o infeliz desempenho daquele juiz do Tribunal do Júri, revestido de indesejável e proibida conduta arbitrária. 

Nas variadas profissões vinculadas à operação do Direito, sem qualquer menosprezo às demais, a tarefa do juiz, sem sombra de dúvidas, indica ser a mais delicada de todas.  Nas mãos do juiz sela-se o destino do réu: livrar-se solto ou sucumbir nas masmorras de um sistema penitenciário falido.

Nas palavras de Roberto Lyra, "o juiz criminal apaga ou acende a lâmpada do destino, atribui a graça ou a desgraça" [5]. Ou nas palavras de Francesco Carnelutti: "Nenhum homem, se pensasse no que ocorre para julgar outro homem, aceitaria ser juiz" [6].

A atividade jurisdicional tem inegável interferência no meio social, levando-se em consideração o impacto de suas decisões. O juiz, em processo penal, sub-rogando-se as vezes do Estado, tem por disposição constitucional a função de materializar o jus puniendi, ou seja, de libertar ou condenar um acusado conforme tudo o que se mostra no caderno dos autos do processo. 

Nesse sentido, de fundamental importância buscar o conceito vinculado à função social do juiz, tarefa nem um pouco fácil, já que apenas uma pequena parcela de doutrinadores se aventurou aprofundar os dogmas deste princípio, relevando destacar o entendimento de Raquel Dorneles:

"A função social, no âmbito do direito, consiste no estabelecimento de diretrizes pelo ordenamento público destinadas a limitar os institutos individualistas e, em contrapartida, viabilizar a efetivação de real igualdade entre as pessoas, não só formal, mas também material, ou, pelo menos, diminuir as desigualdades entre classes, permitindo às pessoas viverem com um mínimo de dignidade, garantindo, concomitantemente, a edificação de uma sociedade livre, justa e solidária, e a partir daí permitindo se alcance o desenvolvimento nacional, o que não beneficia só a uma classe — por mais necessitada que seja — mas a sociedade como um todo" [7].

Na linha da função social a que se encontra vinculada a atividade judicial, entre um conjunto de deveres estabelecidos pela Lei Orgânica da Magistratura [8], especificamente em seu artigo 35, destacamos:

"Artigo 35 São deveres do magistrado:
I – Cumprir e fazer cumprir, com independência, serenidade e exatidão, as disposições legais e os atos de ofício;

(…);
IV – tratar com urbanidade as partes, os membros do Ministério Público, os advogados, as testemunhas, os funcionários e auxiliares da Justiça, e atender aos que o procurarem, a qualquer momento, quanto se trate de providência que reclame e possibilite solução de urgência".

Em outro giro, sem deixar de relembrar aos leitores que a atividade judicial encampa uma diversificação de relevantes características e princípios, deve reluzir no juiz criminal um pouco de compaixão, exercendo em alto relevo a função no plano humano. Não pode esperar o criminoso audaz comiseração, mas o que falta nele não pode faltar no juiz, que nem sempre ouve um culpado.

Dizia Rui Barbosa aos futuros juízes:

"Não vos deixeis contagiar de contágio tão maligno. Não negueis jamais ao Erário, à Administração, à União, os seus direitos. São tão invioláveis, com qualquer outros. Mas o direito dos mais miseráveis dos homens, o direito do mendigo, do escravo, do criminoso, não é menos sagrado, perante a justiça, que do mais alto dos poderes. Antes, com os mais miseráveis é que a justiça deve ser mais atenta, e redobrar de escrúpulo" [9].

O juiz não empresta à parte o favor de ouvi-la. Deve ouvi-la por obrigação legal, imposta pelo sagrado ofício, o qual deve ser exercido por devoção.

Julgador que não ouve a parte é um juiz parcial e desumano. É juiz que desrespeita princípios fundamentais, desinteressando a motivação para o repulsivo proceder, desacolhendo os fundamentos essenciais do processo penal constitucional, revestido sempre das garantias das liberdades individuais.

Nos tempos atuais, em que os juízes ouvem mais os outros do que a lei, em que sociedade clama cada vez mais pela mitigação das garantias, esquecendo-se da história, nós clamamos por mais resignação à lei e as garantias fundamentais.

Talvez tenha faltado àquele acusado, em sua audiência de interrogatório, ter suplicado ao juiz, para ser ouvido, em samba ("Meu Bom Juiz"):

"Aaaah, meu bom juiz
Não bata este martelo nem dê a sentença
Antes de ouvir o que o meu samba diz..
Pois este homem não é tão ruim quanto o senhor pensa…"
 [10].

 


[4] HC 162.650/SP: Ministro Celso de Melo, decisão monocrática disponibilizada no DJE nº 256, 22/11/2019, publicada em 25/11/2019, com certificação de trânsito em julgado em 3/12/2019.

[5] LYRA, Roberto. Direito penal normativo. Rio de Janeiro: José Konfino, 1975.

[6] CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. Trad. José Antonio Cardinalli. Campinas: Conan, 1995.

[7] DORNELES, Raquel. A função social dos contratos e o novo Código Civil. Rev. Santa Cruz do Sul: Direito, nº 21, p. 27-46, jan./jun. 2004.

[8] Lei Complementar nº 35, de 14 de março de 1979.

[9] BARBOSA, Rui. Oração aos moços. Ediouro.

[10] Bezerra da Silva – "Meu Bom Juiz".

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