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Fernandes e Marchioni: Óbice à eternização da investigação

4 de outubro de 2021, 17h13

Por Fernando Augusto Fernandes, Guilherme Lobo Marchioni

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Em celebre julgamento do Supremo Tribunal Federal, o ministro Sepulveda Pertence afirmou que: "Estamos todos cansados de ouvir que o inquérito policial é apenas um 'ônus do cidadão', que não constitui constrangimento ilegal algum e não inculpa ninguém (embora, depois, na fixação da pena, venhamos a dizer que o mero indiciamento constitui maus antecedentes: são todas desculpas, Sr. presidente, de quem nunca respondeu a inquérito policial algum)" [1].

É oportuna a consideração do ministro de que o ônus de responder um inquérito policial não é algo a ser compreendido de forma leviana, a investigação criminal é, por si só, um estigma ao investigado.

Evidente que a existência pura e simples de um inquérito policial coloca o individuo sob suspeita perante a sociedade e afeta, inclusive, direitos da personalidade ao causar sofrimento. Ainda que em fase inquisitorial, o procedimento penal de persecução criminal é estigmatizante, e pode ser compreendida como pena por si só. O constrangimento à investigação criminal só é legal quando justificado pela presença de causa provável que sustente a instauração do inquérito policial, e deve igualmente respeitar um prazo razoável para a realização dos atos de investigação [2].

Bem assim, a Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso LXXVIII, estabelece como garantia fundamental o direito à duração razoável do processo e a celeridade na sua tramitação, direito este que é assegurado tanto no âmbito judicial como no âmbito administrativo.

Pelo princípio da duração razoável do processo, incluído categoricamente na Constituição Federal pela Emenda n° 45/2004 (embora anteriormente vigorasse de forma implícita em consonância com o direito ao devido processo legal), compreende-se a garantia de impedir que o investigado seja escrutinado de forma sem qualquer limitação temporal, inserindo-se um elemento da razoabilidade na duração do processo. O subjetivismo da noção prazo razoável deve ser significado à luz da complexidade da causa, sendo que em qualquer caso é seguro afirmar que a investigação cujos diligências essenciais foram concluídas ou que aguardam movimentação pelas autoridades responsáveis pela sua condução esgotado seu prazo de cumprimento ofendem a garantia à duração razoável do processo.

Na que circunscreve à investigação criminal, conforme recorda o professor Aury Lopes, o direito de ser julgado no razoável incide na fase pré-processual de maneira imperativa e inafastável [3].

Assim, o inquérito policial deve concluído dentro do prazo legal estabelecido no Código de Processo Penal (CPP). Na regra geral a legislação confere prazo de dez dias para o encerramento do inquérito policial em casos em que o investigado se encontra recolhido à prisão, e trinta dias nos casos em que inexiste prisão cautelar. A legislação excepciona, todavia, os casos em que o indiciado estiver solto e o fato for de difícil elucidação, permitindo nessas hipóteses a concessão de prazo pelo juiz para prosseguimento do Inquérito por maior prazo para realização de diligências investigativas, conforme disposição do artigo 10, §3º, do CPP.

Na prática, todavia, a dilação da investigação tornou-se regra, como bem expõe Guilherme Nucci as delegacias não têm estrutura para conduzir rapidamente uma investigação e o prazo de 30 dias para o seu término é uma ilusão atualmente [4].

De todo modo, a instauração de inquérito policial, ainda que sob justa causa para tanto, não significa que o cidadão investigado deve suportar eternamente o ônus da persecução criminal.

O Supremo Tribunal Federal formou jurisprudência relevante sobre casos paradigmáticos de inquéritos policiais em que as sucessivas prorrogações resultam na extensão de investigações, muitas vezes iniciadas sob argumentos frágeis, para além de prazo razoável. Em 2018, ao julgar o Inquérito n° 4.420/STF, o ministro Gilmar Mendes afirmou que permitir o prosseguimento de "uma investigação fadada ao insucesso representaria apenas protelar o inevitável, violando o direito à duração razoável do processo e à dignidade da pessoa humana" [5], no mesmo ano o ministro Alexandre de Moraes determinou no caso do Inquérito n. 4.429/STF que "tendo sido realizada a última diligência investigatória há 10 meses e ausentes elementos indiciários mínimos que corroborem as informações do colaborador no sentido de demonstrar a autoria e materialidade das infrações penais, patente a ausência de justa causa para a continuidade do presente inquérito" [6].

Mais recentemente, o ministro Ricardo Lewandowski verificou nos autos do Inquérito n. 4.430/STF a ocorrência de "prazo absolutamente desarrazoado e excessivo" naquela investigação, asseverando que "tal circunstância, por si só, já seria suficiente para a indeferir os sucessivos pedidos de dilação de prazo, diante da irrefutável violação do direito do investigado à razoável duração do processo, norma constitucional prevista no artigo 5º, LXXVIII, da Carta de Direitos".

Na referida decisão do ministro Ricardo Lewandowski o arquivamento em razão da afronta à duração razoável do processo foi fundamento pelo registro de que "a persecução criminal — aqui compreendida em todas as suas etapas  configura atividade juridicamente vinculada, submetida a rigorosas balizas normativas, de índole constitucional e infraconstitucional, as quais, em seu conjunto, estabelecem limites objetivos ao poder de investigar do Estado. Por isso mesmo, a fase pré-processual, que antecede a propositura da ação penal, sem embargo de sua finalidade de elucidar eventual cometimento de um fato tipificado como crime e apurar a respectiva autoria, submete-se à lógica do sistema de direitos e garantias em vigor, na qual se inclui a estrita observância do devido processo legal e a duração razoável do processo, com todos os seus consectários, cujo fim último é a salvaguarda das liberdades fundamentais das pessoas em geral" [7].

Fatalmente, importa a premissa de que uma investigação aberta sem previsão de conclusão, sem que haja diligência para apuração dos fatos, representa mais do que a ofensa ao status libertatis de um investigado. Pelos princípios do Estado Democrático de Direito, não se pode ter normal como alguém seja constantemente e permanentemente investigado, sem que os representes do Estado cheguem a qualquer conclusão plausível de eventual responsabilidade criminal do cidadão ou causa provável que justifique a investigação [8].

Os precedentes do judiciais que harmonizam com a garantia à duração razoável do processo e, mais especificamente, a duração razoável do inquérito policial respeitam a percepção do processo penal enquanto limite ao poder do Estado e arbítrio do órgão investigador. Ora, se há um ônus do cidadão de submeter-se a procedimento investigativo na hipótese de constatada causa provável para instauração de Inquérito, há, em paralelo, o ônus do judiciário de salvaguardar a dignidade da pessoa humana e observar o cumprimento dos elementos que compões devido processo legal, entre eles impedir a duração indefinida do caderno investigatório.


[1] STF, HC 80.564, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 21.2.2003.

[2] É oportuno recordar que os inquéritos promovidos durante o regime ditatorial que investigavam o partido comunista eram instaurados sem objetivo definido e sem qualquer expectativa de encerramento, serviam, portanto, a um propósito autoritário típico de Estado de exceção.

[3] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal, São Paulo: Saraiva, 2008, p. 127

[4] NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado, 13ª ed., São Paulo: Forense, 2014.

[5] STF, Inq. 4420, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 21.8.2018

[6] STF, Inq. 4429, Rel. Min. Alexandre de Moraes, j. 08.6.2018

[7] STF, Inq. 4430, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 23.9.2021.

[8] Cf. TRF 4ª Região, habeas corpus 5034564-67.2020.404.0000, Rel. Min. João Pedro Gebran Neto, j. 14.10.2020.