Direito Civil Atual

Reflexões sobre a evolução dogmática da separação do solo em relação à superfície

Autor

  • Luis Felipe Rasmuss de Almeida

    é mestrando em Direito Civil da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP); graduado em Direito pela Universidade de São Paulo; membro da Rede de Direito Civil Contemporâneo e editor adjunto da Revista de Direito Civil Contemporâneo (RDCC).

4 de outubro de 2021, 8h49

A origem da noção de separabilidade ou destacamento da propriedade do solo em relação à superfície tem sido objeto de controvérsia da doutrina há tempos. Inicialmente, a prática dos juristas romanos1 atribuiu a regra de experiência superficies solo cedit ao instituto da acessão2, correspondendo à noção dogmática de que, em regra, o dono do solo deveria também ser considerado o titular integral do edifício construído sobre o solo, em virtude de uma força atrativa (vis atrativa) que o solo exerceria sobre tudo aquilo que acedesse a ele3.

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Com a outorga pretoriana do interdito possessório de superficiebus aos titulares de arrendamentos de longo prazo, que Max Kaser4 sustenta ter sido a base de um direito real de superfície romano5, Moreira Alves6 sustenta que o direito de superfície teria adquirido a natureza de direito real sobre coisa alheia (ius in re aliena) durante o período justinianeu, sendo que a separabilidade de domínio do solo em relação à superfície somente seria identificada a partir do período medieval, no direito germânico antigo, com o princípio do trabalho7. Em linha diversa, destacam-se os escritos de Eduardo Cesar Silveira Vita Marchi, para quem, ao invés de um direito real sobre coisa alheia, “ter-se-ia constituído no direito romano […] um pleno direito de propriedade sobre a superfície”, denominado propriedade superficiária8.

Os compêndios de leis civis que vigoraram entre os séculos XVI a XVII nas diversas regiões de França – incluindo Paris, Calais, Normandia e Reims – admitiram residualmente a separabilidade do solo em relação à superfície9, hipótese esta que foi incorporada pelo art. 553 do Código Civil Francês de 1804. Tal artigo, ao consubstanciar a regra geral de que superficies solo cedit no ordenamento francês, admitiu a prova em contrário: “si le contraire n’est prové”, evidenciando a possibilidade de prova da separação entre solo e superfície. Necessário ressaltar, ademais, que o Código Civil Francês não contemplou a figura do direito de superfície como um direito autônomo. Por outro lado, o art. 664 do Código Civil Francês, que permaneceu em vigor até a promulgação da de lei de 28 de junho de 1938 para fins da elaboração da lei de condomínio (coproprieté), previa a possibilidade de que vários pavimentos de uma casa pudessem pertencer a proprietários separados.

Contemporâneo ao Código Francês, o Código Civil Austríaco (ABGB) de 1811 não trouxe disciplina sistemática do direito da superfície, mas previa a possibilidade de divisão do uso do solo e subsolo e outro com utilização da superfície, sobre a qual deveria pagar uma contribuição anual. Posteriormente, a lei de 1912 que tratou da matéria trouxe novas feições como direito real, mas não o caracterizou, seja como como direito real sobre coisa alheia ou direito de propriedade (superficiária)10.

Na Itália, com a edição do Código de 1865, que substituiu as legislações das províncias itálicas anteriores à unificação, o art. 448, ao prever a regra geral de que superfícies solo cedit, também consagrou residualmente a possibilidade de reconhecimento da separabilidade entre solo e superfície, por meio de prova em contrário: “finchè non consti del contrario”.

Com a aprovação do BGB de 1896, marcado por influência romanista11, a regra de que superficies solo cedit foi expressamente incorporada pelos parágrafos 9312 e 9413 do BGB, ao passo que o parágrafo 101414 estabeleceu a inadmissibilidade da propriedade separada de andares de uma mesma construção. Quanto ao direito de superfície, este foi inicialmente tratado pelo BGB na Seção 4 do Livro III, posteriormente revogado no apagar das luzes da Primeira Guerra Mundial, em 1919, com a edição do Erbbaurechtsgesetz (Regulamento de Direitos de Superfície)15, posteriormente alterada pela Lei de Condomínios de 1951 (Wohnungseigentumsgesetz)16.

No Brasil, o Código Civil de 1916 não incluiu o direito de superfície no rol dos direitos reais17. Do ponto de vista legislativo – ou mesmo dogmático – e desconsiderando-se as legislações civis portuguesas e a prática que antecederam ao Código Civil de 1916, pode-se dizer que o desenvolvimento da matéria da superfície é relativamente recente: o primeiro movimento legislativo concreto neste sentido se deu com a edição do Estatuto das Cidades (Lei nº 10.257/2001, que teve por objeto a regulamentação dos artigos 182 e 183 da Constituição Federal, para fins de estabelecer diretrizes gerais de política urbana, estabelecendo “normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental.18

No ano seguinte, após quase três décadas de tramitação, houve a sanção do atual Código Civil, que reconheceu a superfície como direito real (artigo 1.225, inciso II) em sequência à propriedade19, possivelmente indicando a tentativa do legislador em conferir relevância ao instituto, o que entretanto, não logrou êxito, ao menos em matéria de regularização fundiária, problema premente da realidade social brasileira20.

Além disso, a sanção do Código Civil trouxe dúvidas quanto à coexistência de dois estatutos jurídicos distintos para regulamentação do direito da superfície no direito brasileiro, uma vez que o legislador civil não visou a uma compatibilização normativa em relação ao previsto no Estatuto das Cidades. Para Roberto Paulino de Albuquerque Junior21, a mera interpretação de que houve derrogação dos dispositivos do Estatuto da Cidade pelo Código Civil não seria a mais adequada, devendo-se buscar a interpretação teleológica de compatibilização dos dispositivos.

Com base neste raciocínio, o regime do Estatuto das Cidades seria aplicável, em essência, às superfícies ditas urbanas, ao passo que a regulamentação do Código Civil, pois que definida genericamente, seria aplicada residualmente, isto é, às superfícies ditas rurais ou agrárias22.

Em 2016, as superfícies foram novamente alvo de tutela legislativa, com a edição da Medida Provisória nº 759 de 22 de dezembro de 2016, que tinha o objetivo de, nos termos de sua ementa, dispor sobre a “regularização fundiária rural e urbana”, dentre outros assuntos, ao passo que promovia relevantes alterações no Código Civil. Referida MP foi convertida em lei e sancionada pelo Presidente da República em 11 de julho de 2017, tornando-se assim a Lei nº 13.465/2017.

Dentre as alterações promovidas pela referida lei em diversos diplomas legais, houve a criação da figura do “direito real de laje” em seu artigo 55, que acrescentou os artigos 1.510-A a 1.510-E ao Código Civil, bem como inserindo tal direito no rol taxativo dos direitos reais referidos no artigo 1.225, inciso XIII do Código Civil.

Dispõe o artigo 1.510-A que “proprietário de uma construção-base poderá ceder a superfície superior ou inferior de sua construção a fim de que o titular da laje mantenha unidade distinta daquela originalmente construída sobre o solo.”. E na sequência, o art. 1.510-A, §1º: “O direito real de laje contempla o espaço aéreo ou o subsolo de terrenos públicos ou privados, tomados em projeção vertical, como unidade imobiliária autônoma, não contemplando as demais áreas edificadas ou não pertencentes ao proprietário da construção-base.”.

A redação não foi imune às críticas, apesar da intensa recepção do legislativo aos embates doutrinários sobre o tema, o que de certo modo acabaram por criar uma figura, que embora criticável, tem sua operabilidade23. Eduardo Marchi, que vê com entusiasmo a positivação do direito real de laje como a admissão da propriedade superficiária no ordenamento jurídico brasileiro24, entende que a exigência de uma “construção-base” não deve ser interpretada literalmente, estendendo-se também para a potencialidade do espaço aéreo ou subsolo.

No entanto, Otavio Luiz Rodrigues Junior e Roberto Paulino de Albuquerque Junior ressaltam que o conteúdo do direito real de laje já estava abarcado pelo direito de superfície, em sua modalidade de direito de sobrelevação (superfície constituída sobre o espaço aéreo)25.

Além disso, embora em muitas oportunidades tenha sido ressaltado o caráter social de regularização fundiária atrelado ao instituto, o que é perceptível pela escolha do nome laje, tipicamente atribuído às construções em moradias de baixa renda nas periferias de centros urbanos brasileiros26, nada obsta a sua utilização, inclusive já até aventada, em negócios jurídicos empresariais de grande porte27.

Em decorrência disto, segundo estes autores, verifica-se que “há um esvaziamento da superfície por meio da preferência pela construção de um instituto novo mediante o destacamento de uma porção de seu objeto, ao invés da escolha mais simples e elegante por seu aperfeiçoamento.28.

A crítica destacada é necessária e leva à reflexão. Ao estudo do Direito Civil na contemporaneidade não se permite o descolamento histórico, dogmático e doutrinário de seus institutos, a pretexto de se obter maior “operabilidade” com soluções “modernas”, por vezes transplantadas de outras áreas do conhecimento, mas que, confrontadas, revelam-se meros castelos de areia. Neste sentido, perquirir as raízes dos institutos de Direito Civil corresponde a um modo de autocontenção intelectual, bem como um requisito indispensável para aventar a propositura de seu aperfeiçoamento.

Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).


1 MARCHI, Eduardo Cesar Silveira Vita. Direito de Laje: da admissão ampla da propriedade superficiária no Brasil. São Paulo: YK, 2019, p. 51-52.

2 ASCENSÃO, José de Oliveira. O direito de superfície agrícola. Revista de direito civil, imobiliário, agrário e empresarial. São Paulo, a. 2, n. 4, abr./jun. 1978, p. 147.

3 MARCHI, Eduardo Cesar Silveira Vita. Op. cit., p. 52.

4 KASER, Max. Direito privado romano. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1999, p. 178.

5 ALBUQUERQUE Jr., Roberto Paulino. Direito de superfície e sua formação contratual: entre autonomia da vontade e a tipicidade dos direitos reais. Dissertação (Mestrado em direito). Universidade Federal de Pernambuco, 2006, p. 20.

6 ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. 18. ed. São Paulo: Forense Universitária, 2018 (ebook); MARCHI, Op. cit., p. 53; ALBUQUERQUE Jr., Roberto Paulino. Op. cit., p. 21.

7 MARCHI, Op. cit., p. 73-74.

8 Para Eduardo Marchi (Op. cit., p. 53), diferentemente do direito de superfície (real sobre coisa alheia), a propriedade superficiária seria caracterizada como uma “ilimitada possibilidade jurídica da divisão da propriedade imobiliária entre solo e superfície, ou mesmo por planos horizontais sobrepostos de um edifício (v.g., superfície interior, construção-base e superfície superior de uma construção)”, o que constitui uma exceção à regra de experiência romana de que superficies solo cedit. Ressalta-se, no entanto, o alerta de Otavio Luiz Rodrigues Jr. e Roberto Paulino Albuquerque Jr., uma vez que a caracterização de um direito como uma possibilidade configura uma atecnia do ponto de vista filosófico. (In: RODRIGUES Jr., Otavio Luiz; ALBUQUERQUE Jr., Roberto Paulino. O direito real de laje: elementos para uma crítica. In: MARCHI, Eduardo Cesar Silveira Vita; KÜMPEL, Vitor Frederico; BORGARELLI, Bruno de Ávila. Regularização Fundiária Urbana: Estudos sobre a Lei nº 13.465/2017. São Paulo: YK, 2019, p. 196-197.)

9 MARCHI, Op. cit., p. 53.

10 ANDRADE, Marcus Vinícius dos Santos. Superfície à luz do Código Civil e do Estatuto da Cidade. Curitiba: Juruá, 2009, p. 62

11 Para uma análise dos antecedentes à aprovação do BGB e suas influências, recomenda-se: RODRIGUES Jr., Otavio Luiz. A influência do BGB e da doutrina alemã no Direito Civil Brasileiro do século XX. Revista dos Tribunais, v. 938. p. 79-155. São Paulo: Revista dos Tribunais, dez. 2013.

12 “As partes de uma coisa que não podem ser separadas sem que uma ou outra sejam destruídas ou incorram em modificação de sua natureza (parte essencial) não podem ser objeto de direitos distintos.” (Parágrafo 93, BGB).

13 “(1) as partes essenciais de um terreno incluem as coisas firmemente ligadas ao terreno, em particular edifícios, e a produção do terreno, desde que esteja conectado com a terra. A semente torna-se uma parte essencial do lote de terra quando é semeado, e uma planta quando é plantado.

(2) As partes essenciais de um edifício incluem as coisas inseridas para construir o edifício.” (Parágrafo 94, BGB)

14 “A limitação do direito de superfície sobre uma parte de um edifício, especialmente um andar, é inadmissível” (Parágrafo 1014, BGB).

15 Neste sentido, ver: ZANINI, Leonardo Estevam de Assis. O direito de superfície na Alemanha e seu caráter social. Revista da Ajufe, São Paulo, v. 30, n. 96, p. 437-465, jan/jun 2017; e YE, Cheng-peng. Study of superficies in Germany and Japan. In: ZHONG, Zhicai (Org.). Proceedings of the International Conference on Information Engineering and Applications 2012. Londres: Springer, p. 10

16 Lei de Condomínios (Wohnungseigentumsgesetz) de 15 de março de 1951.

17 BEVILAQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado. 10. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, v. III, 1954, p. 182.

18 Neste sentido é o art. 1º do Estatuto das Cidades.

19 É de se notar que desde o primeiro anteprojeto do Código Civil, de autoria de Orlando Gomes, e no projeto seguinte de meados da década de 1970 (que culminou em nosso atual Código), já se previa a volta da superfície.

20 LIRA, Ricardo Cesar Pereira. O Novo Código Civil, Estatuto da Cidade, Direito de Superfície. Anais do “EMERJ debate o novo Código Civil”, 2002, p. 156. Neste sentido, ver também: LIRA, Ricardo Pereira. Elementos de direito urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997.

21 ALBUQUERQUE Jr., Roberto Paulino. Direito de superfície e sua formação contratual: entre autonomia da vontade e a tipicidade dos direitos reais. Dissertação (Mestrado em direito). Universidade Federal de Pernambuco, 2006, p. 43-48.

22 ALBUQUERQUE Jr., Op. cit., p. 46-47.

23 RODRIGUES Jr., Otavio Luiz; ALBUQUERQUE Jr., Roberto Paulino. Op. cit., p. 196-197.

24 MARCHI, Eduardo Cesar Silveira Vita. O novo direito de laje entendido como propriedade superficiária. In: ______; KÜMPEL, Vitor Frederico; BORGARELLI, Bruno de Ávila. Op. cit., p. 112.

25 RODRIGUES Jr., Otavio Luiz; ALBUQUERQUE Jr., Roberto Paulino. Op. cit., p. 195.

26 Neste sentido, recomenda-se: FARIAS, Cristiano Chaves de; EL DEBS, Martha; DIAS, Wagner Inácio. Direito de laje: do puxadinho à digna moradia. 3. ed. rev. ampl. e atual. Salvador: Juspodivm, 2019; FERRAZ, Patrícia André de Camargo. Direito de laje: teoria e prática nos termos da Lei 13.465/17. São Paulo: Quartier Latin, 2018; PEREIRA, Agnaldo Rodrigues. O direito de superfície, o direito de laje e o reflexo no direito urbanístico. Dissertação (Mestrado em direito). Universidade de Coimbra. Coimbra, 2014.

27 RODRIGUES Jr., Otavio Luiz; ALBUQUERQUE Jr., Roberto Paulino. Op. cit., p. 203.

28 Ibid., p. 206.

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    é mestrando em Direito Civil da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, graduado em Direito pela USP, membro da Rede de Direito Civil Contemporâneo e assistente editorial da Revista de Direito Civil Contemporâneo (RDCC)

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