Defesa da concorrência

Estado, mercado, estatais e concorrência: "modos de fazer"

Autor

  • Alessandro Octaviani

    é professor de Direito Econômico da Faculdade de Direito da USP ex-membro do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e autor entre outros de Recursos genéticos e desenvolvimento Estatais (em coautoria com Irene Nohara) e Estudos Pareceres e Votos de Direito Econômico (vols. I e II).

4 de outubro de 2021, 15h27

ConJur
Os mercados não são meros espaços nos quais decisões lógicas são tomadas por agentes racionais, sendo tais interações entre demanda e oferta passíveis de tradução em gráficos, tal qual a caricatura da economia neoclássica e suas variações incutem rotineiramente no debate público. Mercados são instituições sociais, determinadas por cultura enraizada e variável, distintas detenções de poder e por específica e dinâmica disciplina jurídica. A percepção de que “o mercado é uma instituição jurídica” ou de que “o capitalismo é um modo de produção jurídico” são muito mais próximas à realidade do que a caricatura dos agentes racionais buscando suas vantagens no fantástico mundo ceteris paribus.

Por isso, a escolha de como organizar empresas estatais em uma economia como a nossa, em que sempre foi evidente (i) a ausência de apetite do capital privado nacional e estrangeiro pela assunção do grande risco tecnológico e, (ii) pelo contrário, sua grande predileção pelo investimento de baixo risco e alto rendimento expressado pelos serviços públicos cobertos por regime jurídico protetivo, é estratégica. Essa escolha termina por impactar, simultaneamente, o incentivo (i) ao aumento de escala e escopo dos investimentos em tecnologia e (ii) à democratização de utilidades básicas, diretamente vinculadas à dignidade humana e aos objetivos da República insculpidos no art. 3º. da Constituição Federal.

1. As estatais como “inimigas da concorrência”: o discurso da OCDE
No 17º Global Forum on Competition da OCDE, realizado em 2018, o think tank exportador de soluções institucionais apontou que o comportamento de empresas estatais deveria ser objeto da disciplina jurídica da concorrência a partir da incidência do regime de “neutralidade competitiva”1, segundo o qual nenhuma empresa deveria beneficiar-se de vantagens decorrentes de sua nacionalidade ou de seu regime de propriedade.2

Aparentemente ecoando tal visão, o Tratado de Funcionamento da União Europeia, em seu art. 107º, 1, afirma que (…) são incompatíveis com o mercado interno, na medida em que afetem as trocas comerciais entre os Estados-Membros, os auxílios concedidos pelos Estados ou provenientes de recursos estatais, independentemente da forma que assumam, que falseiem ou ameacem falsear a concorrência, favorecendo certas empresas ou certas produções”. O Regulamento de Concentrações da União Europeia (nº 139/2004) determina que o regime de controle de concentrações “deverá respeitar (…) o princípio da igualdade de tratamento entre os sectores público e privado” (item 22). Dispõe também que, no caso do setor público, “para calcular o volume de negócios de uma empresa que participe na concentração, é necessário ter em conta as empresas que constituem um grupo económico dotado de poder de decisão autónomo, independentemente de quem detém o respectivo capital ou das regras de tutela administrativa que lhe são aplicáveis”.

Nessa perspectiva, estatais seriam “inimigas da concorrência” e aparentemente haveria, nas recomendações da OCDE em parte positivadas pela Europa, a percepção de que suas estatais deveriam ser limitadas, inclusive em seus regimes de taxa de lucro, para que sinais distorcidos não viessem a ser enviados ao mercado. Entretanto, essa imagem é mais ideológica e estática do que real e dinâmica, por algumas razões, dentre as quais (i) os diversos arranjos cooperativos entre empresas estatais europeias em setores de alto risco tecnológico (como defesa), que buscam explicitamente desviar-se de tais prescrições, (ii) as “operações tartaruga” que os Estados-nacionais realizam para internalizar tais diretrizes em seus ordenamentos, como apontado pela própria OCDE em relação às duas principais economias da Europa, a Alemanha e a França (nas quais se percebe a ausência de institucionalidade para a concretização da adequação das taxas de retorno de empresas estatais às experimentadas pelo setor privado, um dos pilares da propalada “neutralidade competitiva” da OCDE3); e (iii) a recente percepção de que, no polo mais dinâmico da economia mundial, a China, estatais não são contra a concorrência: estatais são os concorrentes que os chineses preparam para tomar os mercados mundiais.

2. As estatais como criação de concorrentes para ganhar o mercado mundial: o caso da China
As estatais chinesas operam como verdadeiros instrumentos de criação do poder econômico chinês, não havendo espaço para a “neutralidade competitiva” ou qualquer coisa parecida com o ideológico discurso da OCDE.

A estatais sujeitam-se ao State-Owned Assets Supervision and Administration Commission of the State Council (SASAC), órgão vinculado ao Conselho de Estado, e que possui também ramificações locais para supervisionar estatais subnacionais. Durante o 13º Plano Quinquenal (2016-2020), uma das responsabilidades do SASAC foi controlar o processo de conglomeração de estatais4, sendo tal etapa do planejamento chinês claríssima quanto à intenção de fortalecê-las como instrumento da competitividade chinesa: “We will remain firmly committed to ensuring that state-owned enterprises (SOEs) grow stronger, better, and bigger and work to see that a number of such enterprises develop their capacity for innovation and become internationally competitive, thereby injecting greater life into the state-owned sector, helping it exercise a greater level of influence and control over the economy, increasing its resilience against risk, and enabling it to contribute more effectively to accomplishing national strategic objectives”.5

O Decreto nº 378, de 27 de maio de 2003, que regulamenta a supervisão e a gestão de ativos estatais de empresas na China, dispõe que uma das principais obrigações da autoridade de supervisão e gestão de tais ativos é manter e aprimorar os poderes de controle e a competitividade da economia estatal em áreas consideradas essenciais para a economia nacional e para a segurança do Estado, além de aperfeiçoar a qualidade da economia estatal (art. 14, 2). A “Lei de Investimentos Estrangeiros”, em vigor desde 2020, em seu art. 4º., estrutura um tratamento jurídico mais restritivo às empresas estrangeiras que constarem na temida “Lista negativa”, emitida pelo Conselho de Estado. Investimentos que desrespeitarem as limitações setoriais advindas da Lista estarão sujeitos às devidas sanções legais (art. 36). Assim, dado esse estrutural e explícito regime desigual em favor das estatais chinesas, buscando torná-las concorrentes internacionais, elas se afastam por completo do pacote ideológico da OCDE: em vez de o Estado, como acionista da companhias estatais, reivindicar taxas de retorno “equivalentes” às propiciadas por “investimentos privados”, as perdas financeiras de suas empresas triplicaram entre 2008 e 2017 e dois quintos de todas as estatais chinesas nos últimos anos não foram capazes de recuperar o custo do capital investido.6 Ou seja, as estatais foram expressamente autorizadas a experimentar prejuízo. Na outra ponta, assiste-se à presença de 50 estatais chinesas entre as 500 maiores empresas do mundo.

O paradoxo é apenas aparente: não há “neutralidade concorrencial” na gestão das estatais chinesas, mas sim os objetivos simultâneos de aumento de complexidade econômica e conglomeração, por um lado, e oferta de serviços essenciais à população, por outro, ambos perpassando, por dentro, o funcionamento dos conglomerados estatais, que, assim, são instrumentos da política do Estado chinês, do PCC e do engrandecimento nacional. A OCDE e seus modelos de exportação de instituições não encontram eco na economia mais dinâmica do planeta.

3. O Estado criando mercados e concorrência: o Plano de Metas e as estatais
Na grande experiência de desenvolvimento brasileiro capitaneada por Juscelino Kubitschek a partir do Plano de Metas, diversos mercados foram, como ressalta Antônio Barros de Castro, criados: “os próprios mercados eram, em maior ou medida, formatados e dimensionados mediante políticas”.7 Essa criação muitas vezes ex nihilo de mercados internos foi levada a cabo por um complexo de Direito Econômico composto, entre outros elementos, por uma disciplina jurídica funcional (i) à atração de capital produtivo, (ii) à indução e coordenação do comportamento de tal capital e (iii) ao controle estatal sobre decisões e setores estratégicos.

A atração do capital produtivo foi modelada por uma série de diplomas, como o Decreto 34.893 de 05/01/1954, promulgado ainda durante o governo Vargas, pelo qual vários setores (além dos de energia, transporte e comunicações) foram qualificados a receber “tratamento cambial diferenciado”, o que depois, durante o curto governo Café Filho foi expandido pela Instrução SUMOC 113/55, que incluiu na lista inúmeros setores industriais. Com a fortíssima depreciação dos preços internacionais do café, uma economia com baixa diversidade produtiva, pouca capacidade de realizar grandes investimentos e uma crise política constantemente ameaçando as instituições democráticas, o governo JK promulgou a Lei 3.244/57, cujo objetivo era, operando o “câmbio múltiplo”, acelerar a substituição de bens de capital por produção doméstica.

Como complemento a essa malha jurídica funcional à atração do capital produtivo, havia um outro conjunto de Direito Econômico voltado à indução e coordenação do capital produtivo atraído, que pode ser exemplificado com (i) as leis que organizam o crédito para o BNDE, o principal ente aglutinador e emanador das decisões globais de investir (Lei 2.973/56, que prorroga o adicional do IR por dez anos, “à conta do BNDE”; Lei 2975/56, que prevê 16% do Imposto sobre Combustíveis e Lubrificantes para o BNDE e RFFSA; Lei 3.381/58, que cria o Fundo da Marinha Mercante; e Lei 3421/58, que cria o Fundo Portuário Nacional)8; (ii) a disciplina jurídico-administrativa dos “Índices de Nacionalização”, que buscava incentivar o capital atraído a produzir em território nacional em articulação com o capital nacional, a partir de compromissos contratuais assumidos com o BNDE (a “Meta 27 do Plano de Metas”, por exemplo, determinava a produção de 100.000 veículos automotores no ano de 1960, contando com 95% da chamada “nacionalização em peso”; na data aprazada, a meta havia sido superada em mais de 30%, dado que foram produzidos 133.041 veículos, com “índice de nacionalização” de 87% “em valor” e 93% “em peso”); e (iii) a Lei 3470/58 e Portaria MF nº 436/58, que estabeleceram coeficientes percentuais máximos para a dedução de Royalties pela exploração de marcas e patentes, de assistência técnica, científica, administrativa ou semelhante, segundo o “grau de essencialidade”, buscando limitar a remessa de lucro para fora, fazendo o dinheiro ficar no Brasil e direcionado ao reinvestimento em atividade produtiva, incentivando as parcerias com o capital nacional.

O terceiro elemento dessa criação de mercados foram as empresas estatais, responsáveis por criar capacidades econômicas, prover bens e ajustar preços em setores encadeados nos quais (i) o capital privado nacional era muito frágil, (ii) o capital estrangeiro desinteressante ou prejudicial e (iii) o capital estatal a variável política chave, dadas sua escala e possibilidade de expressão jurídico-normativa de escolhas valorativas coletivas. Por isso, existe uma disciplina jurídica funcional ao controle estatal sobre setores estratégicos no Plano de Metas, que pode ser exemplificada (i) pela manutenção da Petrobras e a Lei 2004/53, em contrariedade à forte pressão norte-americana para a extinção ou sabotagem da empresa e de seu regime jurídico, em prol das petroleiras norte-americanas, (ii) o conjunto da Lei 2975/56 e Lei 3115/57, que cria a estatal Rêde Ferroviária Federal Sociedade Anônima – R.F.F.S.A. e garante seu financiamento com parte dos 16% do Imposto sobre Combustíveis e Lubrificantes (a indústria automobilística financiando o transporte ferroviário, sob planejamento estatal); e (iii) a Política Nacional de Energia Nuclear, exarada em 31 de agosto de 1956 pelo Conselho de Segurança Nacional.

Nesse modelo, que experimentou um enorme sucesso e, inclusive, inspirou experiências de alcançamento como as do próprio leste asiático, as estatais são parte essencial da criação de mercados e de concorrentes. As estatais não são inimigas e não estão submetidas a “neutralidade concorrencial”. São parte da solução dos mercados competitivos, porque há mercados na economia periférica em que a competição é sistemicamente anticoncorrencial, prejudicial ao desempenho da economia como um todo.

O discurso que atualmente visa a esmagar nossas estatais, com fundamento na aceitação acrítica da imagem da OCDE, não é só contrário aos expressos termos de nossa Ordem Econômica Constitucional. É também obscurantista quanto às escolhas da economia mais dinâmica do mundo hoje, a China, e a mais dinâmica do mundo ao tempo do Plano de Metas, a do Brasil. De uma só tacada, obnubila o direito positivo e o passado e presente das alternativas institucionais. Para organizar uma adequada política de defesa da concorrência, não é bom andar em companhia tão pouco saudável.


1 Sumário Executivo das discussões do 17h Global Forum on Competition disponível em: https://www.oecd.org/competition/globalforum/competition-law-and-state-owned-enterprises.htm. Acesso em 30.09.2021.

2 A definição de “neutralidade competitiva” dos exportadores de modelos institucionais pode ser encontrada em: https://www.oecd.org/competition/competitive-neutrality.htm. Acesso em 30.09.2021.

3 Os dados são da própria OCDE, levantados em 2014. Disponível em: https://qdd.oecd.org/subject.aspx?Subject=8F22EF7D-B780-4570-A4B1-7E0CB3AD7E04. Acesso em 30.09.2021.

4 OCTAVIANI, Alessandro; NOHARA, Irene. Estatais: estatais no mundo; histórico no Brasil; regime jurídico; licitações; governança; espécies; setores estratégicos; funções do estado. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 26.

5 O décimo-terceiro Plano Quinquenal da República Popular da China pode ser encontrado em: https://en.ndrc.gov.cn/policies/202105/P020210527785800103339.pdf. Acesso em 30.09.2021.

6 LARDY, Nicholas. Achieving Competitive Neutrality in China. In: KAI, G.; SCHIPKE, A. (eds). Opening Up and Competitive Neutrality: The International Experience and Insights for China. People’s Bank of China and International Monetary Fund Seventh Joint Conference, 2019.

7 CASTRO. Antônio Barros de. Do desenvolvimento renegado ao desafio sino-cêntrico. Rio de Janeiro: Campos, 2012, p. 118.

8 Cf., por todos: VIDIGAL, Lea. BNDES: um estudo de Direito Econômico. São Paulo: Liberars, 2019.

Autores

  • é professor de Direito Econômico da Faculdade de Direito da USP; ex-membro do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade); e autor, entre outros, de "Recursos genéticos e desenvolvimento", "Estatais" (em coautoria com Irene Nohara), e "Estudos, Pareceres e Votos de Direito Econômico" (vols. I e II).

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