Público & Pragmático

As alterações trazidas pelo Marco Legal das Ferrovias

Autores

  • Daniel Gabrilli de Godoy

    é doutorando em Direito pela USP mestre em Direito Administrativo pela PUC-SP master em Diritto Privato Europeo pela Università degli Studi di Roma pós-graduado em Direito Administrativo pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo e pós-graduado em Políticas Públicas pela Escola Paulista de Direito de São Paulo. Bacharel em Direito pela PUC-SP.

  • Mariana Carnaes

    é advogada especialista em Direito Regulatório membro da Infrawomen Brazil e da Comissão do Acadêmico de Direito da OAB-SP mestre em Direito Administrativo pela PUC-SP doutora em Direito Administrativo pela USP e autora dos livros Compromisso de Ajustamento de Conduta e a Eficiência Administrativa.

3 de outubro de 2021, 8h00

Publicada no Diário Oficial da União no dia 30 de agosto, a Medida Provisória nº 1.065/2021, proposta pelo governo federal por meio do Ministério da Infraestrutura, em parceria com o Ministério da Economia, instituiu o chamado Marco Legal das Ferrovias, um conjunto de regras a respeito do transporte e sistema ferroviário no Brasil.

A medida, que ainda aguarda votação pelo Congresso Nacional, dispõe sobre a exploração do serviço de transporte ferroviário, o trânsito e o transporte ferroviários e as atividades desempenhadas pelas administradoras ferroviárias e pelos operadores ferroviários independentes, institui o Programa de Autorizações Ferroviárias, e dá outras providências.

Atualmente, a legislação vigente autoriza investimentos na malha ferroviária apenas por parte do governo federal. Assim, o objetivo imediato do ato legislativo é promover um modelo menos burocrático, que possibilite o investimento por parte da iniciativa privada na construção e operação das ferrovias.

Essa é uma reivindicação antiga de empresários do setor que têm como exemplo e inspiração as chamadas short lines ("linhas curtas") construídas nos Estados Unidos e na Europa para revitalização de trechos desativados. Ademais, entre as mudanças previstas no texto, está a construção de novas ferrovias por autorização, à semelhança do que já ocorre na exploração de infraestrutura em setores como telecomunicações, energia elétrica, portuário e aeroportuário.

Desde meados do século 19, a tecnologia ferroviária permitiu a diminuição nos custos de locomoção entre regiões e países, via redução do tempo de deslocamento, aumento da segurança no transporte de bens e pessoas. Tal dinâmica, além de baratear o produto e impulsionar o desenvolvimento econômico, tem efeito multiplicador em outras indústrias ligadas ao setor. Nesse contexto, o transporte ferroviário de cargas e passageiros ganha destaque como um mecanismo indutor de crescimento e desenvolvimento econômico, e, por isso, merece especial atenção.

No Brasil, as primeiras ferrovias começaram a ser construídas ainda no Império, a partir da metade do século 19, quando a economia do país era, primordialmente, agrícola e agroexportadora, voltada especialmente ao café [1].

Num primeiro momento, o governo imperial consubstanciou na Lei nº 101, de 31/10/1835, a concessão, com privilégio pelo prazo de 40 anos, às empresas que se propusessem a construir estradas de ferro, interligando estados como Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Bahia. Todavia, o incentivo não despertou o interesse desejado, pois as perspectivas de lucro não foram consideradas suficientes para atrair investimentos.

Diante da baixa atratividade dos empreendimentos, o governo imperial, numa segunda tentativa, instituiu, em 1852, a Lei de Garantia de Juros (Decreto nº 6411). A legislação além de autorizar a concessão da construção e exploração de ferrovias pelo prazo máximo de 90 anos, ainda estabelecia uma série de isenções e benefícios, entre as quais a taxa de garantia de retorno de até 5% sobre o capital empregado na construção da ferrovia. Para isso, a Administração Imperial pagaria, com recursos públicos, ao investidor privado, o montante suficiente para garantir a atratividade do empreendimento.

Assim, se, por um lado, houve um significativo crescimento do interesse da iniciativa privada no setor ferroviário, por outro, esse movimento ocorreu de maneira desordenada. Além disso, os incentivos garantidos pela Administração, em cumprimento ao disposto na Lei de Garantia de Juros, passaram a representar déficits orçamentários ao governo imperial e foram reduzidos, afastando a iniciativa privada novamente.

Mais tarde, no começo do século 20, a economia brasileira passava por um período de transição e modernização. A mão de obra assalariada crescia, o processo de industrialização se iniciava e a construção de rodovias pavimentadas era ampliada para competir com o modal ferroviário.

Com o governo Vargas, no final da década de 1930, algumas estradas foram incorporadas ao patrimônio da União. Em 1957, foi criada a Rede Ferroviária Federal S/A (RFFSA), com intuito de elevar e melhorar o serviço. Na década de 1980, em substituição à endividada RFFSA, foi constituída a Companhia Brasileira de Transporte Urbano (CBTU), responsável pela prestação dos serviços. Em 1992, em razão da escassez de recursos financiadores, o governo federal retomou a participação do setor privado no modal ferroviário com a inclusão da RFFSA no Plano Nacional de Desestatização [2].

Agora, com a Medida Provisória nº 1.065/2021, o cenário ganha, mais uma vez, uma nova dinâmica na tentativa de atualizar e unir, em um só lugar, essa regulamentação, além de estabelecer novas formas de operação ferroviárias.

O artigo 3º da referida norma determina que o transporte ferroviário nacional será executado em ferrovias construídas, administradas e exploradas: 1) direta ou indiretamente por União, estados, Distrito Federal e municípios; 2) mediante convênio ou consórcio público entre União, estados, Distrito Federal ou municípios; ou 3) por seus proprietários, mediante registro, nos termos desta medida provisória, obedecidas as diretrizes e planos do Ministério da Infraestrutura, sem prejuízo das atividades regulatória e fiscalizatória dos órgãos e das entidades competentes.

A grande novidade é a possibilidade de exploração indireta do serviço de transporte ferroviário federal por autorização, de que trata o Capítulo II da medida. A exploração poderá ocorrer mediante outorga por autorização formalizada em contrato de adesão por pessoa jurídica requerente ou selecionada mediante chamamento público e pela União, por meio do Ministério da Infraestrutura.

Com relação ao prazo, no caso desse contrato, deverá ser determinado, sendo a duração máxima de 99 anos, prorrogáveis por períodos iguais e sucessivos, desde preenchidos os requisitos do §1º do artigo 6 pela autorizatária: manifestação prévia e expresso interesse; e infraestrutura ferroviária em operação.

O interessado em obter a autorização para a exploração indireta do serviço de transporte ferroviário, em novas ferrovias ou em novos pátios ferroviários, pode requerê-la diretamente ao Ministério da Infraestrutura, a qualquer tempo, devendo observar os elementos que compõem o requerimento, indicados no §1º do artigo 7.

Conhecido o requerimento de autorização de que trata o caput, o Ministério da Infraestrutura deverá: analisar a convergência do objeto do requerimento com a política nacional de transporte ferroviário; publicar o extrato do requerimento, inclusive em seu sítio eletrônico; deliberar sobre a outorga da autorização, ouvida a ANTT; e publicar o resultado da deliberação e, em caso de deferimento, o extrato do contrato.

As autorizações poderão ser, desde logo, negadas, nas hipóteses previstas no §5º do artigo 7: inobservância ao disposto nesta Medida Provisória e em seu regulamento; incompatibilidade com a política nacional de transporte ferroviário; ou motivo técnico-operacional relevante devidamente justificado.

A medida também prevê a possibilidade de o poder público promover a abertura de processo de chamamento público para identificar e selecionar interessados na obtenção de autorização para a exploração indireta do serviço de transporte ferroviário federal, de cargo ou de passageiros em ferrovias. Para isso, é preciso que a ferrovia em questão preencha uma das características indicadas no artigo 9: não implantada; sem operação; em processo de devolução ou desativação outorgadas a empresas estatais, exceto as subconcedidas; ou ociosas.

Na hipótese de interesse na exploração dos trechos ferroviários que estejam em regime de concessão ou permissão, poderá ser realizada a cisão — por aditivo — desses trechos da atual administradora ferroviária em favor da nova autorização, sem prejuízo de eventuais ressarcimentos devidos pela administradora ferroviária atual, pagos ao termo do contrato de concessão ou de permissão.

Com relação ao contrato de autorização, os custos e os riscos da fase executória do procedimento de desapropriação serão de responsabilidade integral da autorizatária. Esta assumirá o risco integral do empreendimento, sem direito a reequilíbrio econômico-financeiro, conforme o §3º do artigo 12.

Ademais, a outorga para a exploração de ferrovias em regime de autorização pode ser extinta por: advento do termo contratual; cassação; renúncia; anulação; falência.

Nos casos de cassação, renúncia e anulação, iniciado o processo de extinção, os agentes financiadores da ferrovia, com anuência do Ministério da Infraestrutura, ouvida a ANTT e por decisão dos detentores da maioria do capital financiado ainda não recuperado, podem indicar empresa técnica e operacionalmente habilitada para assumir a atividade ou transferi-la, provisoriamente, a terceiro interessado até que nova autorização lhe seja outorgada definitivamente, nos termos da regulamentação.

O Ministério da Infraestrutura poderá ainda extinguir a autorização, ouvida a ANTT, mediante ato de cassação, quando houver perda das condições indispensáveis à continuidade da atividade, em decorrência de: negligência, imprudência, imperícia ou abandono; prática de infrações graves; descumprimento reiterado de compromissos contratuais ou normas regulatórias; ou transferência irregular da autorização.

No que tanto aos bens vinculados à autorização, os bens móveis e imóveis constituintes da ferrovia autorizada não são reversíveis ao poder público, quando a respectiva autorização for extinta. Tal regra comporta exceção nos casos em que se tratar de bens públicos transferidos à autorizatária após a assinatura do contrato por cessão ou alienação, nos termos do §5º do artigo 12.

A partir dessa nova regulamentação, será possível alcançar e explorar trechos ociosos e inoperantes — pois não fazem mais parte da logística de transporte de carga de longa distância — com outras finalidades, destinando-os para diversos tipos de atividade.

Outra mudança prevista pela medida provisória que também reflete essa desburocratização para novos investimentos, é a criação do chamado Programa de Autorizações Ferroviárias, cuja finalidade é promover investimentos privados no setor ferroviário por meio de outorgas por autorizações.

Dada as vantagens do novo regime jurídico, a medida provisória permite que as atuais concessionárias possam migrar para o modelo de autorização, cabendo decisão final ao Ministério da Infraestrutura. Essa adaptação poderá ocorrer quando uma nova ferrovia construída a partir de autorização ferroviária federal entrar em operação, caso a autorização tenha sido outorgada à pessoa jurídica concorrente, de forma a caracterizar a operação ferroviária em mercado logístico competitivo; ou integrante do mesmo grupo econômico da atual administradora ferroviária, de forma a expandir a extensão ou a capacidade ferroviária, no mesmo mercado relevante, em percentual não inferior a 50%.

Com relação ao equilíbrio econômico-financeiro do contrato, a concessionária ferroviária poderá requerê-lo, conforme os termos do contrato, quando provar o desequilíbrio decorrente da outorga de autorização para migrar do regime jurídico de concessão para o de autorização.

Como anteriormente afirmado, a Medida Provisória nº 1.065/21 foi publicada no DOU em 31 de agosto e, a partir dessa data, adquiriu validade por até 120 dias. Após esse prazo, perderá a validade, caso não tenha sido votada pelo Congresso Nacional, podendo, ainda, a partir do 45º dia, trancar a pauta do Congresso até que seja analisada.

 

Referências bibliográficas
MARINHO, Pedro Eduardo Mesquita de Monteiro. Companhia Estrada de Ferro D. Pedro II: a grande escola prática da nascente Engenharia Civil no Brasil oitocentista. Disponível em: https://www.scielo.br/j/topoi/a/tnbZc4Fmrft6BvLLNZcjYsf/?lang=pt. Acesso em 30 set. 2021.

RIBEIRO, Leonardo Coelho. PINHEIRO, Armando Castelar. Regulação das Ferrovias. Rio de Janeiro: FGV, 2017.

SILVEIRA, Márcio Rogério. A importância geoeconômica das estradas de ferro no Brasil. Tese de Doutorado apresentada na Universidade Estadual Paulista, 2003.

SOUSA, Raimunda Alves de. PRATES. Haroldo Filho. O processo de desestatização da RFFSA: principais aspectos e primeiros resultados. Revista do BNDES, Rio de Janeiro, v.4, n.8, p. 119-142, dez.1997.

 


[2] SOUSA, Raimunda Alves de. PRATES. Haroldo Filho. O processo de desestatização da RFFSA: principais aspectos e primeiros resultados. Revista do BNDES, Rio de Janeiro, v.4, n.8, p. 119-142, dez.1997.

Autores

  • Brave

    é advogado, doutorando em Direito pela USP, mestre em Direito pela PUC-SP, master pela Universidade de Roma - La Sapienza e especialista em Direito Administrativo pela FGV-SP.

  • Brave

    é advogada especialista em Direito Regulatório, membro da Infrawomen Brazil e da Comissão do Acadêmico de Direito da OAB-SP, mestre em Direito Administrativo pela PUC-SP, doutoranda em Direito Administrativo pela USP e autora do livro "Compromisso de Ajustamento de Conduta e a Eficiência Administrativa".

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!