Opinião

A nova regra interpretativa da Condecine Título e o gambito da rainha

Autor

3 de outubro de 2021, 11h13

No xadrez, a conhecida jogada do gambito da rainha (ou da dama), que deu nome à popular série da Netflix "Queen’s Gambit", é uma estratégia antiga, porém ousada, que era utilizada por Beth Harmon, protagonista da série baseada em sua trajetória de vida. A palavra "gambito" ("gambit") advinda do jargão enxadrista, deriva do termo italiano "gambetto", que significa rasteira. Outra tradução plausível para "gambito da rainha" seria "drible da rainha", cuja origem seria o termo em espanhol "gambeta", drible.

Em suma, a referida estratégia consiste no sacrifício do peão da rainha com o objetivo de se conquistar o estratégico domínio territorial do meio do tabuleiro e ganhar o controle da partida. A abertura do jogo é feita com as peças brancas avançando o peão em frente à rainha com "d4", o adversário iguala o movimento com "d5" e depois sobe o peão à esquerda da rainha em "c4", deixando-o exposto à captura (sacrifício). Após a captura, sobe o peão em frente ao rei em "e4" e domina o centro do tabuleiro.

Trocando em miúdos, cumpre notar que há uma diferença na estratégia de médio e longo prazo (controle do centro do tabuleiro) para uma tática de curto prazo, meramente imediatista (ter uma peça a mais que o oponente).

Mas o que isso tudo tem a ver com a cobrança da Condecine do vídeo por demanda?

No último dia 27 de setembro, o Congresso Nacional rejeitou o veto presidencial ao artigo 5º da Lei 14.173/2021, impondo a inclusão do artigo 33-A na MP 2.228-1/2001 nos seguintes termos: "Artigo 33-A  Para efeito de interpretação da alínea e do inciso I do caput do artigo 33 desta medida provisória, a oferta de vídeo por demanda, independente da tecnologia utilizada, a partir da vigência da contribuição de que trata o inciso I do caput do artigo 32 desta medida provisória, não se inclui na definição de 'outros mercados".

É preciso rememorar que, antes do advento dessa novidade legislativa, havia um imbróglio jurídico acerca da alínea "e" do inciso I do caput do artigo 33 da MP 2.228-1/2001, haja vista que as Instruções Normativas nºs 95, 104 e 105 da Ancine passaram a utilizar o conceito jurídico de "outros mercados" como um verdadeiro cabide passível de acomodar todas as novidades tecnológicas e tudo mais que não estivesse previamente e expressamente previsto pelo legislador, tal como o vídeo por demanda.

A esse respeito, foram escritos diversos artigos de minha autoria explicando os argumentos que demonstravam a inconstitucionalidade material e formal que aquela cobrança da Condecine com base em fato gerador instituído por norma infralegal, sendo o último deles publicado em maio deste ano pela revista eletrônica ConJur, denominado "Por um debate técnico sobre tributação infralegal do vídeo por demanda".

Em suma, o estratagema funcionava como uma espécie de infração oblíqua da Constituição, porquanto a instrução normativa buscava fundamento legal aparente na alínea "e" do inciso I da MP 2.228-1/2001; mas, por vias transversas, driblava o disposto nos artigos 149, §4º e 150, I, da CRFB/1988.

Dessa maneira, foram sendo inseridos pela agência reguladora, desavisadamente, novos fatos geradores tributários por meio de instrução normativa infralegal, ensejando cobranças indevidas de Condecine Título (alíquota específica) das plataformas de VOD sobre os títulos.

Por óbvio que a inserção de novos fatos geradores por ato infralegal viola o disposto na norma contida nos artigos 149, §4º, e 150, I, da CRFB/1988, e evidente também que a grande estrela do vídeo por demanda que jamais poderia ser sido agrupada como mero mercado residual ("outros mercados"). Mas e o "audiovisual em transporte coletivo" e "circuito restrito" que vem recolhendo Condecine título indevidamente desde o ano de 2011 com base em fato gerador oriundo de instrução normativa?

Ora, é preciso haver uma certa lógica jurídica e isonomia no raciocínio. Se não vale para um, não pode valer para todos. Vale dizer que não é legítimo se utilizar da regra da excepcionalidade na qual "todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que outros", tal como dizia George Orwell na obra "A Revolução dos Bichos".

Não é porque há uma estrela no meio do mercado residual tratada indevidamente como "outros mercados" que se deve criar um "puxadinho" legislativo para excluí-la do problema e tratar "a pão de ló", abandonando as demais rubricas para arcar com a cobrança inconstitucional de tributo "comendo o pão que o diabo amassou".

E já dizia o sábio adágio popular: quando a esmola é demais, o santo desconfia… Ora, sacrificar o "audiovisual em transporte coletivo" e o "circuito restrito" seria muito pouco para solucionar o custoso imbróglio do grande protagonista de hoje do audiovisual que é o vídeo por demanda. Dito de outra maneira, é quase ganhar uma peça de graça!

E é justamente aí que se enquadra a estratégia do gambito, pois quando se entrega o pião para sacrifício, metaforicamente, se está entregando uma peça sem importância, ou, em outras palavras, confirmando uma não incidência tributária por não ocorrência do antecedente da norma jurídica tributária preexistente que era um tanto quanto elementar. Mas por trás dessa jogada de sacrifício há o interesse no domínio do centro do tabuleiro, que passo a explicar a seguir.

A Condecine Remessa é uma modalidade de Cide que incidirá sobre o pagamento [1], o crédito, o emprego, a remessa ou a entrega, aos produtores, distribuidores ou intermediários no exterior, de importâncias relativas a rendimento decorrente da ou exploração de obras cinematográficas e videofonográficas ou por sua aquisição ou importação, a preço fixo. Consoante o disposto no §2º do artigo 33 da MP 2.228-1/01, a Condecine será determinada mediante a aplicação de alíquota de onze por cento sobre as importâncias ali referidas.

Quando o legislador trata, no parágrafo único do artigo 32 da MP 2.228-1/01, acerca da incidência do tributo sobre o "rendimento decorrente da exploração de obras cinematográficas e videofonográficas ou por sua aquisição ou importação, a preço fixo", ele não faz uma diferenciação a respeito do mecanismo tecnológico que deverá utilizar para realizar o fato imponível tributário que está positivado de maneira genérica e abstrata no enunciado prescritivo. De modo que se torna, pelo menos em tese, juridicamente possível a incidência tributária na hipótese do video on demand, ainda que essa tecnologia não tenha sido vislumbrada em 2001 com o advento da MP 2.228-1/01 [2].

Portanto, o agente econômico que pratica, no mundo concreto, um desses verbos previstos no parágrafo único do artigo 32 da MP 2.228-1/01 consuma o fato imponível tributário descrito no artigo 32 da MP 2.228-1/01. Logo, deverá recolher, a título de Condecine, a alíquota de 11% sobre as importâncias que forem objeto da remessa ao exterior. Isso é feito de modo que os conteúdos que derem ensejo a "rendimento decorrente da exploração de obras cinematográficas e videofonográficas ou por sua aquisição ou importação, a preço fixo" são passíveis de serem tributados pela Condecine Remessa.

Diante disso, pergunta-se: por que instituir a Condecine Título por mecanismo infralegal para tributar o vídeo por demanda e, ao mesmo tempo, negligenciar a incidência tributária da Condecine Remessa para as obras estrangeiras no VoD?

É muito simples. Desvia-se o foco utilizando uma jogada entre meros peões, enquanto o que se pretende na verdade é o domínio do centro do tabuleiro.

A criação desse fato gerador do vídeo por demanda pela via infralegal no âmbito da Condecine Título com o advento a posteriori de uma norma interpretativa "salvadora da pátria" aos 45 minutos do segundo tempo, acaba deslocando o foco da real possibilidade de enquadramento tributário na hipótese de incidência da Condecine Remessa. O que, em última análise, dá ensejo à evasão fiscal bilionária da qual o veto presidencial derrubado tratou, mas não avançou. E, enquanto vai passando o tempo, vai havendo decadência de diversos créditos tributários e, cada vez mais, se consolidando o domínio central do tabuleiro.

* A descrição da estratégia de xadrez constante no texto foi lida e aprovada pelo amigo advogado e enxadrista Arthur Gentil Ponte Souza.


[1] A descrição da estratégia de xadrez constante no texto foi lida e aprovada pelo amigo advogado e enxadrista Arthur Gentil Ponte Souza.

[3] Fábio Lima, CEO da plataforma brasileira Sofá Digital, parece ter o mesmo entendimento sobre a possibilidade de incidência tributária nas operações de remessa sem que haja necessidade de alteração legislativa. Veja-se o trecho de uma matéria realizada após evento da TeleTime no qual era discutida a proposta realizada no âmbito do Conselho Superior de Cinema onde havia uma proposição para inclusão de novos dispositivos na MP 2.228-1/2001 com o fito de inserir uma nova modalidade de Condecine, denominada de Condecine VOD: "Fábio Lima, da Sofá Digital, também chama a atenção o risco de dupla tributação em relação à Condecine Remessa, estabelecida no Artigo 32 da MP 2.228/2001. Ele questionou à Ancine se ao optar por recolher a ‘Condecine VoD’, um distribuidor como a Netflix, por exemplo, estaria isento da Condecine Remessa. Para o assessor da Ancine, sim. Mas, depois, em conversa com este noticiário, Magno Maranhão explicou que de fato será necessária uma alteração nesse artigo da MP 2.228 para deixar claro que as Condecine são mutuamente excludentes".

[2] LAUTERJUNG, Fernando. Tributação híbrida de VoD é "consenso possível", mas detalhes ainda são cruciais. teletime. Publicado em 11/06/2018. Brasil Streaming 2018. Disponível em: <https://teletime.com.br/11/06/2018/tributacao-hibrida-de-vod-e-consenso-possivel-mas-detalhes-ainda-sao-cruciais/>. Acesso em: 11 ago. 2020.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!