Tribunal do Júri

A imprescindível existência de elemento probatório para a decisão condenatória

Autores

  • Denis Sampaio

    é defensor público titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal) mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • Daniel Ribeiro Surdi de Avelar

    é juiz de Direito mestre e doutorando em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil) professor de Processo Penal (UTP EJUD-PR e Emap) e professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

2 de outubro de 2021, 8h00

Em recente e importante precedente (AgREsp 1.803.562/CE), a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, na relatoria do ministro Ribeiro Dantas, enfrentou tema sensível ao Tribunal do Júri. Trata-se dos limites cognitivos ao órgão revisor da decisão tomada pelo conselho de sentença. Retorna-se a antiga e difícil ponderação entre a garantia constitucional do duplo grau de jurisdição e a previsão da soberania dos veredictos expressada no artigo 5º, inciso XVIII, "c", CRFB.

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Especificamente em relação ao júri, o legislador procurou restringir as hipóteses em que caberia apelação (artigo 593, III, Código de Processo Penal ou CPP), bem como a os efeitos atinentes às decisões revisoras (artigo 593, §1º, 2º, 3º, todos do CPP), culminando na seguinte indagação: até que ponto o tribunal ad quem poderá adentrar à matéria decidida pelo conselho de sentença e qual o seu real limite?

Entre as hipóteses de recurso, há uma que versa exclusivamente sobre o mérito da decisão dos jurados, dando ao segundo grau de jurisdição poder para decidir se a decisão restou condigna com o quadro probatório. A alínea "d" do inciso III do artigo 593 prevê a possibilidade de apelação nos casos em que a decisão do júri for "manifestamente contrária às provas dos autos". Assim, caso uma das partes venha a apelar no sentido desse dispositivo, o juízo de segundo grau deve fundamentar a existência do acervo probatório e confrontá-lo com a decisão do conselho de sentença.

Para além dessa discussão, a decisão em referência direciona um recado importante aos órgãos revisores: não é possível ficar inerte, ao copiar e colar expressões conhecidas por todos(as), baseadas na soberania dos veredictos, sob pena de anulação do acórdão pela ausência de prestação jurisdicional.

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Em uma rápida pesquisa de decisões proferidas pelos tribunais estaduais de quando funcionam como órgão revisor das decisões tomadas pelo conselho de sentença, fica fácil encontrar termos repetidos, como "a cassação do veredicto popular por manifestamente contrário à prova dos autos só é possível quando a decisão for escandalosa, arbitrária e totalmente divorciada do contexto probatório, nunca aquela que opta por uma das versões existentes" [1]. Normalmente não há qualquer ressalva nesta afirmativa, pois pautada em preceito constitucional e uma das principais características do Tribunal do Júri: a soberania dos veredictos. Mas, todas as adjetivações ali constantes devem estar pautadas em uma afirmativa simples: a existência de material probatório!

É justamente esse o ponto de principal análise que traz a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em referência. Indicou, em algumas oportunidades que "caso falte no acórdão recorrido a indicação de prova de algum desses elementos, há duas situações possíveis: 1) ou o aresto é omisso, por deixar de enfrentar prova relevante, incorrendo em negativa de prestação jurisdicional; 2) ou o veredito deve ser cassado, porque nem mesmo a análise percuciente da Corte local identificou a existência de provas daquele específico elemento".

De acordo com a decisão, ficou claro a identificação de provas da desavença entre acusada e vítima (possível motivação de um fato), mas não há qualquer elemento comprobatório da autoria e, portanto, tanto o conselho de sentença quanto a câmara criminal revisora inverteram a lógica da comprovação da responsabilidade criminal: prova-se a existência de provável motivo, mas não se identifica a prova necessária quanto a autoria.

Também nesse ponto a decisão em referência merece aplausos. Não fez um exame tão somente sobre o "conjunto das provas", de forma puramente holística, mas também indicou a obrigação de uma abordagem atomística, através da individualização dos elementos de comprovação para cada parte constitutiva do crime.

Com toda a crise de subjetividade que vem passando o atual modelo de formação da decisão penal — não só no Tribunal do Júri, mas no sistema de justiça criminal , há a necessidade de se estabelecer uma proposta teórica/prática acerca da prova que seja capaz de justificar, principalmente, a existência e, consequentemente, o seu valor, sem restar afeto apenas ao "conjunto" e "suficiência probatória" de referências circunstanciais (a motivação, por exemplo). Por isso, em qualquer tomada de decisão, necessária a identificação e valoração da relação linear e unidirecional entre os elementos e o objeto da prova (o fato imputado).

Em consequência, cada ato a ser provado possui a sua própria força explicativa e cada elemento de prova seu efeito, o que deve resultar nesse critério de inferência quanto a existência e valoração. Por outro lado, a análise pelo "conjunto probatório" significa reduzir os elementos de prova e o delito em uma referência unitária, que não traça uma realidade coerente e íntegra para que se alcance a possibilidade de uma inferência probatória crítica.

O que se propõe como necessário para qualquer tomada de decisão judicial (e revisional) é a atomização do objeto da prova [2]. Assim, a existência e o valor probatório individualizado dos elementos de juízo devem referir-se à força que se extrai de uma prova relevante para confirmar ou refutar um enunciado fático em discussão [3].

A referência à atomização dos elementos de prova indica a imprescindível abordagem quanto a existência e [4], consequentemente, os graus de consistência/credibilidade. Disso resulta maior enfrentamento quanto a regra do ônus da prova [5], também, no contexto de uma decisão revisional, a indicação do que será, efetivamente, avaliado.

Dito isso, torna-se inconsistente o reconhecimento de uma decisão regular quanto a correta apreciação da formação da culpa do acusado, fundada e exposta apenas pela "suficiência probatória" vista de forma global sem que haja a identificação da existência do material comprobatório sobre todos os elementos que estruturam o próprio crime.

Retornando a decisão em referência, um ponto precisa ser deixado claro: trata-se de impugnação defensiva contra decisão condenatória proferida pelo conselho de sentença [6]. Essa afirmativa ocorre na medida em que conteúdo decisório sobre veredito absolutório possui outra importante característica: o limite da dúvida e, portanto, não foi objeto de análise pela decisão e por esta reflexão.

 Logo, a tese central da decisão proferida pela 5ª Turma do STJ versa sobre a existência de elemento de prova capaz de comprovar, de forma individual, "cada um dos elementos essenciais do crime — isto é, de cada factum probandum isoladamente considerado" [7].

Nesse contexto, a classificação e distinção entre o juízo de "natureza antecedente" quando analisa a existência do material probatório e o juízo de "natureza consequente" quando "se refere ao grau de convencimento pessoal do julgador pelo conjunto probatório existente" foram fundamentais para a análise dos limites cognitivos do objeto do recurso contra um veredito condenatório [8].

Ampliamos a ponderação para o conselho de sentença, na medida em que a aferição sobre os referidos juízos se mostra necessária. No entanto, a ausência de fundamentação na tomada de decisão pelos(as) jurados(as), inviabiliza apurar se ambos os juízos foram, efetivamente, observados.

Mas é no espaço revisional que o conteúdo dos juízos se mostra mais aparente e significativo. Logo, na averiguação realizada pelos tribunais, em regra, a aferição do "juízo antecedente" se mostra imprescindível, deixando o "juízo consequente" para alguns casos pontuais. Aquele, portanto, sempre identificará a realização da prestação jurisdicional. Esse, a análise da correta prestação jurisdicional e os limites indicados pela cláusula petrificada da soberania dos veredictos.

O que se extrai da decisão em alusão, para além do caso concreto, é a necessidade de enfrentarmos temas sensíveis e importantes do nosso dia a dia forense:

1) A teoria da prova precisa de maior reflexão. Muitas decisões são tomadas levando em conta o "conjunto" e a "suficiência" probatória. O problema dessas adjetivações com o implemento prático segue no afastamento de análises individuais sobre os próprios elementos de prova, seja no aspecto da existência, seja quanto ao grau de credibilidade/consistência para a comprovação da hipótese fática imputada;

2) Todos os elementos estruturais do crime devem ser objeto de análise material e processual. A constituição do quem vem a ser crime não pode ser reduzida aos critérios materiais da sua própria constituição. Não há como se trabalhar em um sistema de Justiça destituído da integração entre o processo e o Direito Penal. Cada elemento, per si, precisa ser enfrentado em juízo justamente para possibilitar o confronto do ônus da prova aos standards probatórios definidos e outros temas relevantes para uma correta tomada da decisão penal;

3) A soberania dos veredictos como preceito constitucional, deve reservar força de garantia e não o afastamento de prestação jurisdicional pelos tribunais. Na hipótese de decisão condenatória advinda do julgamento perante o Tribunal do Júri, mostra-se imprescindível a reanálise sobre a existência individual dos elementos de prova pertinentes a cada um dos elementos do crime doloso contra a vida. Caso identificada a ausência de estrutura probatória para os elementos essenciais do crime, incidiu o conselho de sentença em error in judicando e, portanto, nada mais coerente do que a realização de novo julgamento perante o seu juiz natural.

Para não perder a oportunidade, devemos ampliar o horizonte da didática decisão proferida pela 5ª Turma do STJ: se o núcleo da tese é caracterizado pelo imprescindível enfrentamento da existência de prova quanto à autoria (através de uma conduta), justamente como elemento essencial do próprio crime, a mesma análise deve ser feita para a decisão de pronúncia. A motivação — problemas anteriores entre vítima e acusados , por si só, não caracteriza a existência de indícios suficientes de autoria para ensejar a admissibilidade da acusação (tema que também será oportunamente abordado).

Por fim, a decisão do STJ nos traz vários pontos de reflexão, porém, ao nosso sentir, o principal se dirige à necessidade de uma efetiva prestação jurisdicional indicativa da sua responsabilidade e dos limites para toda a tomada de decisão, especialmente, perante o procedimento do Tribunal do Júri.


[1] Súmula 28 do Grupo de Câmeras Criminais do Tribunal de Justiça de Minas Gerais.

[2] Seguindo a concepção atomística de valoração probatória, cada elemento do fato e, consequentemente, da prova deve ser considerado individualmente, com a determinação do seu valor probatório e o contributo do mesmo para a dinâmica da inferência probatória. TUZET, Giovanni. Filosofia della prova giuridica. Torino: G. Giappichelli, 2013, p. 261.

[3] PARDO, Michael S. Trad. Gonzalo Seijas. In Estándares de prueba y prueba científica. Ensayos de epistemoligia jurídica. Coord. Carmen Vázquez. Madrid: Marcial Pons, 2013, p. 101/102. "Esta ‘atomização’ do objeto da prova é necessária, primeiro, porque a conexão indutiva que através de uma generalização empírica estabelece-se entre um dado probatório e uma conclusão só pode ser examinada criticamente se é referida a uma proposição singular, cujo ajuste com a generalização invocada pode ser estabelecida e avaliada." ACCATINO, Daniela. Atomismo y holismo en la justificación probatória. In Isonomía, n. 40, 2014, p. 43/44. (trad. livre).

[4] Esse tema foi abordado em SAMPAIO, Denis. Valoração da Prova Penal. O problema do livre convencimento e a necessidade de fixação do método de constatação probatório como viável controle decisório. Tese de doutoramento apresentada na Faculdade de Lisboa, p. 523 e s.

[5] Seguindo a proposta crítica quanto à análise global e livre dos elementos de prova que não se adaptariam ao ônus da prova dirigido ao standard probatório definido no processo penal. STEIN, Alex. Foundations of Evidence Law. New York: Oxford University Press, 2005, p. 178

[6] Sobre a discussão em relação à recursos de decisões absolutórias, sugerimos a leitura da série de três artigos que publicamos sobre jury nullification (Parte 1, Parte 2 e Parte final), bem como os capítulos 4.1.3 e 13.5.4.1 da obra "Manual do Tribunal do Júri" (PEREIRA E SILVA, Rodrigo Faucz; AVELAR, Daniel Ribeiro Surdi de. Manual do Tribunal do Júri, São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021).

[7] "No caso dos autos, foi precisamente esta última situação que aconteceu: apesar de analisar exaustivamente as provas produzidas ao longo do processo, o TJ/CE não logrou indicar alguma que comprovasse um elemento essencial do crime – qual seja, a autoria -, embora haja prova dos demais (materialidade, dolo e motivo qualificador)." (AgREsp 1.803.562/CE)

[8] Ao nosso ver, como a referência se direciona ao aspecto probatório, muito mais adequado seria a aferição ao grau de consistência, adequação e credibilidade dos elementos de prova quando da análise do juízo de "natureza consequente". Mas são questões para serem analisadas em outra oportunidade.

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    é defensor público, titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa, Portugal, mestre em Ciências Criminais pela Ucam/RJ e professor de Processo Penal.

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    é advogado criminalista, pós-doutorando em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE) e de Tribunal do Júri em pós-graduações (AbdConst, Curso Jurídico, UniCuritiba, FAE, Curso CEI) e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

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    é juiz de Direito, presidente do 2º Tribunal do Júri de Curitiba desde 2008, mestre em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE Centro Universitário, UTP e Emap) e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

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