A imprescindível existência de elemento probatório para a decisão condenatória
2 de outubro de 2021, 8h00
Em recente e importante precedente (AgREsp 1.803.562/CE), a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, na relatoria do ministro Ribeiro Dantas, enfrentou tema sensível ao Tribunal do Júri. Trata-se dos limites cognitivos ao órgão revisor da decisão tomada pelo conselho de sentença. Retorna-se a antiga e difícil ponderação entre a garantia constitucional do duplo grau de jurisdição e a previsão da soberania dos veredictos expressada no artigo 5º, inciso XVIII, "c", CRFB.
Entre as hipóteses de recurso, há uma que versa exclusivamente sobre o mérito da decisão dos jurados, dando ao segundo grau de jurisdição poder para decidir se a decisão restou condigna com o quadro probatório. A alínea "d" do inciso III do artigo 593 prevê a possibilidade de apelação nos casos em que a decisão do júri for "manifestamente contrária às provas dos autos". Assim, caso uma das partes venha a apelar no sentido desse dispositivo, o juízo de segundo grau deve fundamentar a existência do acervo probatório e confrontá-lo com a decisão do conselho de sentença.
Para além dessa discussão, a decisão em referência direciona um recado importante aos órgãos revisores: não é possível ficar inerte, ao copiar e colar expressões conhecidas por todos(as), baseadas na soberania dos veredictos, sob pena de anulação do acórdão pela ausência de prestação jurisdicional.
É justamente esse o ponto de principal análise que traz a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em referência. Indicou, em algumas oportunidades que "caso falte no acórdão recorrido a indicação de prova de algum desses elementos, há duas situações possíveis: 1) ou o aresto é omisso, por deixar de enfrentar prova relevante, incorrendo em negativa de prestação jurisdicional; 2) ou o veredito deve ser cassado, porque nem mesmo a análise percuciente da Corte local identificou a existência de provas daquele específico elemento".
De acordo com a decisão, ficou claro a identificação de provas da desavença entre acusada e vítima (possível motivação de um fato), mas não há qualquer elemento comprobatório da autoria e, portanto, tanto o conselho de sentença quanto a câmara criminal revisora inverteram a lógica da comprovação da responsabilidade criminal: prova-se a existência de provável motivo, mas não se identifica a prova necessária quanto a autoria.
Também nesse ponto a decisão em referência merece aplausos. Não fez um exame tão somente sobre o "conjunto das provas", de forma puramente holística, mas também indicou a obrigação de uma abordagem atomística, através da individualização dos elementos de comprovação para cada parte constitutiva do crime.
Com toda a crise de subjetividade que vem passando o atual modelo de formação da decisão penal — não só no Tribunal do Júri, mas no sistema de justiça criminal —, há a necessidade de se estabelecer uma proposta teórica/prática acerca da prova que seja capaz de justificar, principalmente, a existência e, consequentemente, o seu valor, sem restar afeto apenas ao "conjunto" e "suficiência probatória" de referências circunstanciais (a motivação, por exemplo). Por isso, em qualquer tomada de decisão, necessária a identificação e valoração da relação linear e unidirecional entre os elementos e o objeto da prova (o fato imputado).
Em consequência, cada ato a ser provado possui a sua própria força explicativa e cada elemento de prova seu efeito, o que deve resultar nesse critério de inferência quanto a existência e valoração. Por outro lado, a análise pelo "conjunto probatório" significa reduzir os elementos de prova e o delito em uma referência unitária, que não traça uma realidade coerente e íntegra para que se alcance a possibilidade de uma inferência probatória crítica.
O que se propõe como necessário para qualquer tomada de decisão judicial (e revisional) é a atomização do objeto da prova [2]. Assim, a existência e o valor probatório individualizado dos elementos de juízo devem referir-se à força que se extrai de uma prova relevante para confirmar ou refutar um enunciado fático em discussão [3].
A referência à atomização dos elementos de prova indica a imprescindível abordagem quanto a existência e [4], consequentemente, os graus de consistência/credibilidade. Disso resulta maior enfrentamento quanto a regra do ônus da prova [5], também, no contexto de uma decisão revisional, a indicação do que será, efetivamente, avaliado.
Dito isso, torna-se inconsistente o reconhecimento de uma decisão regular quanto a correta apreciação da formação da culpa do acusado, fundada e exposta apenas pela "suficiência probatória" vista de forma global sem que haja a identificação da existência do material comprobatório sobre todos os elementos que estruturam o próprio crime.
Retornando a decisão em referência, um ponto precisa ser deixado claro: trata-se de impugnação defensiva contra decisão condenatória proferida pelo conselho de sentença [6]. Essa afirmativa ocorre na medida em que conteúdo decisório sobre veredito absolutório possui outra importante característica: o limite da dúvida e, portanto, não foi objeto de análise pela decisão e por esta reflexão.
Logo, a tese central da decisão proferida pela 5ª Turma do STJ versa sobre a existência de elemento de prova capaz de comprovar, de forma individual, "cada um dos elementos essenciais do crime — isto é, de cada factum probandum isoladamente considerado" [7].
Nesse contexto, a classificação e distinção entre o juízo de "natureza antecedente" quando analisa a existência do material probatório e o juízo de "natureza consequente" quando "se refere ao grau de convencimento pessoal do julgador pelo conjunto probatório existente" foram fundamentais para a análise dos limites cognitivos do objeto do recurso contra um veredito condenatório [8].
Ampliamos a ponderação para o conselho de sentença, na medida em que a aferição sobre os referidos juízos se mostra necessária. No entanto, a ausência de fundamentação na tomada de decisão pelos(as) jurados(as), inviabiliza apurar se ambos os juízos foram, efetivamente, observados.
Mas é no espaço revisional que o conteúdo dos juízos se mostra mais aparente e significativo. Logo, na averiguação realizada pelos tribunais, em regra, a aferição do "juízo antecedente" se mostra imprescindível, deixando o "juízo consequente" para alguns casos pontuais. Aquele, portanto, sempre identificará a realização da prestação jurisdicional. Esse, a análise da correta prestação jurisdicional e os limites indicados pela cláusula petrificada da soberania dos veredictos.
O que se extrai da decisão em alusão, para além do caso concreto, é a necessidade de enfrentarmos temas sensíveis e importantes do nosso dia a dia forense:
1) A teoria da prova precisa de maior reflexão. Muitas decisões são tomadas levando em conta o "conjunto" e a "suficiência" probatória. O problema dessas adjetivações com o implemento prático segue no afastamento de análises individuais sobre os próprios elementos de prova, seja no aspecto da existência, seja quanto ao grau de credibilidade/consistência para a comprovação da hipótese fática imputada;
2) Todos os elementos estruturais do crime devem ser objeto de análise material e processual. A constituição do quem vem a ser crime não pode ser reduzida aos critérios materiais da sua própria constituição. Não há como se trabalhar em um sistema de Justiça destituído da integração entre o processo e o Direito Penal. Cada elemento, per si, precisa ser enfrentado em juízo justamente para possibilitar o confronto do ônus da prova aos standards probatórios definidos e outros temas relevantes para uma correta tomada da decisão penal;
3) A soberania dos veredictos como preceito constitucional, deve reservar força de garantia e não o afastamento de prestação jurisdicional pelos tribunais. Na hipótese de decisão condenatória advinda do julgamento perante o Tribunal do Júri, mostra-se imprescindível a reanálise sobre a existência individual dos elementos de prova pertinentes a cada um dos elementos do crime doloso contra a vida. Caso identificada a ausência de estrutura probatória para os elementos essenciais do crime, incidiu o conselho de sentença em error in judicando e, portanto, nada mais coerente do que a realização de novo julgamento perante o seu juiz natural.
Para não perder a oportunidade, devemos ampliar o horizonte da didática decisão proferida pela 5ª Turma do STJ: se o núcleo da tese é caracterizado pelo imprescindível enfrentamento da existência de prova quanto à autoria (através de uma conduta), justamente como elemento essencial do próprio crime, a mesma análise deve ser feita para a decisão de pronúncia. A motivação — problemas anteriores entre vítima e acusados —, por si só, não caracteriza a existência de indícios suficientes de autoria para ensejar a admissibilidade da acusação (tema que também será oportunamente abordado).
Por fim, a decisão do STJ nos traz vários pontos de reflexão, porém, ao nosso sentir, o principal se dirige à necessidade de uma efetiva prestação jurisdicional indicativa da sua responsabilidade e dos limites para toda a tomada de decisão, especialmente, perante o procedimento do Tribunal do Júri.
[1] Súmula 28 do Grupo de Câmeras Criminais do Tribunal de Justiça de Minas Gerais.
[2] Seguindo a concepção atomística de valoração probatória, cada elemento do fato e, consequentemente, da prova deve ser considerado individualmente, com a determinação do seu valor probatório e o contributo do mesmo para a dinâmica da inferência probatória. TUZET, Giovanni. Filosofia della prova giuridica. Torino: G. Giappichelli, 2013, p. 261.
[3] PARDO, Michael S. Trad. Gonzalo Seijas. In Estándares de prueba y prueba científica. Ensayos de epistemoligia jurídica. Coord. Carmen Vázquez. Madrid: Marcial Pons, 2013, p. 101/102. "Esta ‘atomização’ do objeto da prova é necessária, primeiro, porque a conexão indutiva que através de uma generalização empírica estabelece-se entre um dado probatório e uma conclusão só pode ser examinada criticamente se é referida a uma proposição singular, cujo ajuste com a generalização invocada pode ser estabelecida e avaliada." ACCATINO, Daniela. Atomismo y holismo en la justificación probatória. In Isonomía, n. 40, 2014, p. 43/44. (trad. livre).
[4] Esse tema foi abordado em SAMPAIO, Denis. Valoração da Prova Penal. O problema do livre convencimento e a necessidade de fixação do método de constatação probatório como viável controle decisório. Tese de doutoramento apresentada na Faculdade de Lisboa, p. 523 e s.
[5] Seguindo a proposta crítica quanto à análise global e livre dos elementos de prova que não se adaptariam ao ônus da prova dirigido ao standard probatório definido no processo penal. STEIN, Alex. Foundations of Evidence Law. New York: Oxford University Press, 2005, p. 178
[6] Sobre a discussão em relação à recursos de decisões absolutórias, sugerimos a leitura da série de três artigos que publicamos sobre jury nullification (Parte 1, Parte 2 e Parte final), bem como os capítulos 4.1.3 e 13.5.4.1 da obra "Manual do Tribunal do Júri" (PEREIRA E SILVA, Rodrigo Faucz; AVELAR, Daniel Ribeiro Surdi de. Manual do Tribunal do Júri, São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021).
[7] "No caso dos autos, foi precisamente esta última situação que aconteceu: apesar de analisar exaustivamente as provas produzidas ao longo do processo, o TJ/CE não logrou indicar alguma que comprovasse um elemento essencial do crime – qual seja, a autoria -, embora haja prova dos demais (materialidade, dolo e motivo qualificador)." (AgREsp 1.803.562/CE)
[8] Ao nosso ver, como a referência se direciona ao aspecto probatório, muito mais adequado seria a aferição ao grau de consistência, adequação e credibilidade dos elementos de prova quando da análise do juízo de "natureza consequente". Mas são questões para serem analisadas em outra oportunidade.
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