Observatório constitucional

Precisamos (continuar a) falar sobre regulação de conteúdo nas redes sociais

Autor

  • Ana Beatriz Robalinho

    é doutoranda (J.S.D.) e mestre (LL.M.) em Direito pela Yale Law School mestre em Direito Público pela Universidade de São Paulo (USP) graduada em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) professora do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) advogada e consultora em Direito Público.

2 de outubro de 2021, 8h00

I
No último dia 6, num cenário aquecido pela iminência das manifestações em favor do governo agendadas para o feriado da independência, o presidente Jair Bolsonaro editou a Medida Provisória nº 1.068/2021. A medida promovia alterações na Lei nº 12.965/2014, que estabeleceu o Marco Civil da Internet. Em seu trecho mais polêmico, a medida estabelecia restrições à moderação de conteúdo realizada por redes sociais como Facebook, Twitter e Youtube quando excluem manifestações, suspendem ou bloqueiam usuários.

As reações à medida provisória foram imediatas. Na mídia, especialistas denunciaram a medida como uma tentativa transparente do presidente de proteger a si mesmo, bem como os membros de seu governo e seus apoiadores, da ação moderadora das redes sociais na disseminação de discursos ilegais e de fake news [1]. Sete ações diretas de inconstitucionalidade foram propostas perante o Supremo Tribunal Federal, por partidos políticos das mais diversas orientações e pela Ordem dos Advogados do Brasil, pugnando pela suspensão imediata da medida em razão de múltiplas violações à Constituição [2]. No Legislativo, cresceu rapidamente um movimento clamando pela devolução sumária da MP ao Executivo, sem sequer debatê-la no Congresso.

Não é surpreendente, portanto, que a medida tenha sofrido uma morte rápida. Quase concomitantemente, a ministra Rosa Weber, relatora das ADIs no STF, proferiu decisão suspendendo a eficácia da MP [3], e o senador Rodrigo Pacheco, presidente do Senado Federal, devolveu ao executivo o texto, em espécie de rejeição sumária de seu conteúdo [4]. Em sua decisão, a ministra Rosa Weber destacou o não preenchimento dos requisitos constitucionais da urgência e relevância para justificar a suspensão da medida. Na mesma linha, o presidente do Senado Federal destacou que a medida tratava de temas estranhos à própria natureza da medida provisória, e concluiu que a mera tramitação da medida violaria a Constituição [5].

É indiscutível, por um lado, que o governo pretendia, através da MP, blindar seus apoiadores da censura das redes sociais, promovendo a disseminação de informações falsas, inclusive atentatórias à saúde pública e aos valores democráticos; e por outro lado, que a MP carecia dos requisitos constitucionais necessários para tramitar, se mostrando instrumento inadequado para promover as alterações que pretendia em uma lei que foi aprovada após estudos aprofundados e amplo debate público, como o Marco Civil da Internet. No entanto, a execução sumária da MP nº 1.068/2021 foi também uma perda lamentável da oportunidade de aprofundar o debate sobre a regulação de conteúdo nas redes sociais — assunto que domina rodas acadêmicas e profissionais no mundo todo, e que gera consequências muito mais complexas do que os ataques à MP fazem, à primeira vista, parecer.

O presente artigo se propõe a apontar algumas dessas complexidades, situando o Brasil no debate global sobre liberdade de expressão e internet, e destacando os espaços em que a atuação do Estado pode ser bem vinda enquanto metarregulação do discurso para fomentar a liberdade de expressão. Não serão explorados, aqui, os inúmeros aspectos nos quais as provisões da MP são reprováveis e contraproducentes à proteção da liberdade de expressão — isso já foi feito com propriedade em outros espaços. O objetivo é sugerir que o debate sobre o tema deve permanecer aquecido.

II
A internet mudou radicalmente a forma através da qual as pessoas se comunicam. Consequentemente, a regulação da comunicação mudou. A liberdade de expressão é compreendida como um princípio porque sempre houve a percepção de que alguma restrição ao discurso é necessária. Mas a formação de uma esfera pública digital trouxe novos desafios à realização da liberdade de expressão.

Jack Balkin sintetiza esses novos desafios na transformação da dinâmica da liberdade de expressão, de uma relação binária entre o Estado e os cidadãos que produzem discurso, para uma relação triangular: agora, além do Estado e dos cidadãos, estão incluídas na dinâmica as empresas que constituem a infraestrutura da internet [6]. Essa inclusão significa que a doutrina tradicional da liberdade de expressão, pautada na regulação, pelo Estado, do discurso dos cidadãos, se mostra insuficiente e inadequada para o século 21.

Na nova dinâmica, a relação direta entre o Estado e os cidadãos fica em segundo plano, e duas outras relações são fundamentais — a relação entre o Estado e as empresas da infraestrutura da internet, pautada por um tipo de [meta]regulação (que Balkin chama de "new-school", oposta à regulamentação tradicional, ou "old-school", que o Estado exerce diretamente sobre os cidadãos), e a relação entre as empresas de estrutura da internet e os cidadãos, pautada por uma regulação privada (que Balkin chama de governança privada) [7].

A razão pela qual a regulação tradicional é deixada de lado é simples: no âmbito da internet, o Estado não possui capacidade, técnica ou estrutural, de controlar todo o discurso de seus cidadãos — a escala é imensa, com milhões de pessoas falando ao mesmo tempo, e numa velocidade vertiginosa. Na internet, o discurso é concomitante e instantâneo, uma realidade completamente diferente daquela do século 20, em que o acesso ao fórum público era mediado por editores de jornais e livros, e difusores de conteúdo na televisão e no rádio. 

Quando o Estado se torna incapaz de regular diretamente o discurso de seus cidadãos, ele passa a regula-lo indiretamente, utilizando as empresas de infraestrutura da internet para controlar o discurso proferido online. Concomitantemente, as empresas de infraestrutura da internet exercem sua própria regulação. Livres de qualquer interferência estatal, essas empresas possuem suas regras internas de funcionamento e convívio elaboradas internamente e impostas aos seus usuários. Essa dupla função, normativa e executiva, é o que faz Balkin chamar o que as empresas exercem sobre seus usuários de governança [8].

Os problemas da regulação do discurso na internet começam na governança privada das empresas de infraestrutura. Essa governança, que existe sem qualquer interferência do Estado, tem objetivos, mas esses não se coadunam com os valores da liberdade de expressão. As multinacionais que controlam as mídias sociais não regulam o discurso de seus usuários para promover a participação democrática, a igual contribuição na produção da cultura ou o crescimento e a difusão do conhecimento humano [9]. Elas regulam o discurso de seus usuários porque desejam manter um ambiente confortável e atrativo para os demais usuários, de modo que o maior número de pessoas possível queira ingressar, produzir e consumir conteúdo naquela plataforma [10].

Isso não quer dizer que os objetivos das empresas não sirvam, em parte, aos propósitos constitucionais de promoção da liberdade de expressão. Em busca de um ambiente agradável para sua comunidade de usuários, elas bloqueiam de forma eficiente a promulgação de discursos ilegais e proibidos, a pornografia, o terrorismo, o discurso de ódio, e uma grande quantidade de notícias falsas. No entanto, o alinhamento entre essas empresas e objetivos constitucionalmente relevantes não é completo, e nem são suas práticas.

O Wall Street Journal lançou recentemente uma série investigativa chamada de "The Facebook Files" [11], destacando más práticas da rede social em relação à moderação do discurso de seus usuários, inclusive a displicência com a propagação do discurso antivacina em sua plataforma [12], e o tratamento especial e tolerante com usuários famosos que violam recorrentemente os seus termos de uso [13].

Por outro lado, a governança privada das empresas de infraestrutura da internet acontece num ambiente despido das garantias constitucionais procedimentais mais básicas. Não há transparência, muito menos contraditório e ampla defesa. As decisões sobre que conteúdos bloquear são tomadas, e posteriormente revisadas, em uma máquina burocrática inacessível ao usuário, que muitas vezes sequer é notificado antes do fato. A accountability é praticamente inexistente. Balkin compara a burocracia das empresas de infraestrutura da internet aos regimes governamentais autocráticos do século 19 [14].

O desalinhamento entre os objetivos e as práticas das empresas de infraestrutura da internet e os do Estado — que, pautados por princípios constitucionais, buscam dar maior expressão aos valores da liberdade de expressão e garantir o contraditório e a ampla defesa — impulsiona a (meta)regulação estatal daquelas, buscando coagi-las a regular o discurso dos usuários de acordo com objetivos públicos. Essa é a "nova escola" da regulação do discurso, e é sobre ela que o debate no Brasil precisa avançar.

III
O debate sobre moderação de conteúdo no Brasil começa pelo Marco Civil da Internet. A Lei nº 12.965/2014 estabelece as diretrizes básicas de regulação da internet, e é celebrado por ter sido aprovado após um amplo debate público, como destaca o primoroso relatório elaborado pelo Internetlab sobre moderação do conteúdo [15]. No entanto, o relatório também reconhece que o marco civil não se debruça de forma relevante sobre a regulação de conteúdo, que sequer estava no radar do debate público travado no Brasil na época de sua aprovação [16]. O que opera no Brasil hoje é a governança privada pura — cada empresa de infraestrutura, cada rede social, estabelece e aplica suas próprias regras e procedimentos para regulação do discurso dos usuários.

É claro que o Judiciário não está fechado aos usuários de redes sociais que se sintam violados em seus direitos constitucionais. No entanto, argumentar que os usuários podem recorrer ao Judiciário, como foi feito diversas vezes ao longo das últimas semanas no ímpeto de desmerecer todos os aspectos da MP 1.068/2021, é ignorar o problema de escala, já mencionado aqui, que é a razão de ser da mudança paradigmática da estrutura de regulação do discurso no mundo contemporâneo: os Estados, e consequentemente suas cortes, não possuem estrutura suficiente para abarcar todos os casos de censura e supressão de discurso gerados no âmbito da internet.

A percepção de que a maior parte das controvérsias envolvendo a liberdade de expressão na internet precisam ser resolvidas fora da estrutura tradicional da burocracia estatal é um dos elementos centrais da "nova escola" de regulação. Essa percepção é o que leva os Estados a coagir, através de leis, as empresas de infraestrutura da internet a adaptar seus procedimentos internos a diretrizes constitucionais mínimas e objetivos de interesse público.

Essa tem sido a tendência no âmbito da União Europeia, por exemplo. Após as eleições presidenciais americanas de 2016, as preocupações com o problema das fake news levaram a Alemanha a adotar a NetzDG, uma lei que faz imposições drásticas sobre as empresas de infraestrutura, não apenas para combater discursos inaceitáveis (determinando, por exemplo, que após a notificação inicial de um conteúdo suspeito, o mesmo deve ser analisado e excluído em 24 horas), mas também para garantir direitos procedimentais mínimos para os cidadãos afetados (para os quais a remoção do conteúdo deve ser justificada por escrito) [17].

As garantias procedimentais em particular são uma preocupação mais do que justificada na doutrina de moderação de conteúdo, e um bom caminho para o Brasil começar a pensar em como garantir mais liberdade de expressão a seus cidadãos no âmbito da internet. Em um artigo voltado à exposição de boas práticas de regulação de conteúdo nas redes sociais, Balkin observou que uma técnica inteligente da "nova escola" é condicionar a "imunidade de intermediário" de que gozam as redes sociais (que não são responsabilizadas, via de regra, pelos danos causados pelo discurso de seus usuários) à implantação de garantias do devido processo legal e transparência nos procedimentos internos de regulação de discurso [18]. No Brasil, o marco civil concede a imunidade sem pedir nada em troca.

IV
O tema da regulação de discurso na internet não pode sair de cena com a derrota da MP 1.098/2021, que se deve muito mais ao enfraquecimento político do presidente do que a uma análise pormenorizada das práticas de (meta)regulação propostas no documento. A liberdade de expressão é um valor que integra a identidade constitucional brasileira e, em tempos que a esfera pública digital é uma realidade inevitável, suas garantias e proteções não podem sair de cena no âmbito da internet.

 


[1] C.f. PAIVA, Letícia. MP de Bolsonaro que dificulta remoção de posts é criticada por especialistas e redes. JOTA, 06/09/2021; CORREIA, Ivo. A MP da Mentira. JOTA, 09/09/2021; VIEIRA, Rodrigo. Moderação de conteúdo na internet brasileira: em defesa do Marco Civil. Conjur, 09/09/2021; SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais, fake news e democracia: notas acerca da MP 1.068. Conjur, 13/09/2021.

[2] Ver ADI 6.991/DF (Partido Socialista Brasileiro — PSB), ADI 6.992/DF (Partido Solidariedade — SD), ADI 6.993/DF (Partido da Social Democracia Brasileira — PSDB), ADI 6.994/DF (Partido dos Trabalhadores — PT), ADI 6.995/DF (Partido Novo — NOVO), ADI 6.996/DF (Partido Democrático Trabalhista — PDT), e ADI 6.998/DF (Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil — CFOAB).

[3] ADI 6.991 MC/DF, Rel. Min. Rosa Weber, d. em 14/09/2021.

[4] Sobre a rejeição sumária da Medida Provisória e suas repercussões, v. MELO, Teresa. Devolução de medidas provisórias pelo Congresso Nacional. JOTA, 15/09/2021.

[5] G1. Pacheco devolve ao governo MP que dificulta remoção de fake news das redes sociais. 14/09/2021.

[6] BALKIN, Jack M. Free Speech is a Triangle. Columbia Law Review, vol. 118, n. 7, 2018, p. 2012-2015.

[7] Ibid, p. 2016-2020.

[8] Ibid, p. 2021-2031.

[9] Sobre os valores da Liberdade de Expressão, v. BALKIN, Jack M. Cultural Democracy and the First Amendment. Northwestern University Law Review, vol. 110, 2016.

[10] BALKIN, Free Speech is a Triangle, p. 2023.

[11] The Wall Street Journal. The Facebook Files: A Wall Street Journal Investigation. 15/09/2021.

[12] SCHECHNER, Sam; HORWITZ, Jeff; GLAZER, Emily. How Facebook Hobbled Mark Zuckerberg’s Bid to Get America Vaccinated. The Wall Street Journal, 17/09/2021.

[13] HORWITZ, Jeff. Facebook Says Its Rules Apply to All. Company Documents Reveal a Secret Elite That’s Exempt. The Wall Street Journal, 13/09/2021.

[14] BALKIN, Free Speech is a Triangle, p. 2024.

[15] MONTEIRO, Artur Pericles Lima; CRUZ, Francisco Brito; SILVEIRA, Juliana Fonteles da; VALENTE, Mariana G. Armadilhas e caminhos na regulação da moderação de conteúdo. Diagnósticos & Recomendações (São Paulo: InternetLab, 2021), p. 8-10.

[16] Ibid.

[17] Sobre a aprovação da NetzGD, ver FISCHER, Anthony L. Fake news is bad. Attempts to ban it are worse. VOX, 05/07/2017.

[18] BALKIN, Jack M. How to Regulate (and Not Regulate) Social Media. Knight First Amendment Institute at Colombia University, 25/03/2020.

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