Diário de Classe

O lugar da presunção de inocência: uma questão de princípio

Autor

  • Jefferson de Carvalho Gomes

    é doutorando em Direito pela Universidade Estácio de Sá (bolsista Prosup-Capes) mestre em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis (bolsista Prosup-Capes) especialista em Criminologia Direito e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos e advogado.

2 de outubro de 2021, 8h01

A presente coluna busca analisar o papel da presunção inocência no processo penal brasileiro. No centro do debate político-jurídico dos últimos anos, esse instituto vem sendo atacado frontalmente pelos mais diversos atores jurídicos, chegando a ser relativizado pelo Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento do HC 126.292/SP. Na oportunidade, conseguiu-se chegar à inusitada interpretação de que se poderia prender com uma decisão colegiada de segunda instância, atribuindo sentido totalmente diverso ao conceito de trânsito em julgado.

De simples mirada no texto constitucional, sobretudo no que se refere aos direitos fundamentais ligados ao processo penal, tem-se claramente como abertura deste rol de garantias a previsão de que ninguém será privado de sua liberdade sem o devido processo legal[2]. Mas o que pode ser entendido como devido processo legal? Gilmar Ferreira Mendes define o conceito como sendo "um conjunto de princípios de uma ordem constitucional fundada na legalidade e na proteção das liberdades". O professor e Ministro do Supremo Tribunal Federal também considera que o devido processo possui um "valor instrumental, como um mecanismo adequado para assegurar que as leis sejam aplicadas de forma imparcial e equânime"[3].

Logo, diante de tais considerações, percebe-se claramente que o processo penal, além de mero instrumento para a punição, deve ser visto como a garantia de que um cidadão jamais poderá ter a sua liberdade cerceada sem que seja submetido ao devido processo legal penal. Nesse sentido, bem coloca o professor Jacinto Coutinho[4] que a própria função do processo é ser "a salvaguarda do cidadão contra o abuso de poder". Coutinho cita a reflexão de Gian Domenico Pisapia, para quem "diz-se justamente que o grau de civilidade de um povo se mede sobretudo pelo modo com o qual são salvaguardados os direitos e as liberdades do imputado no processo penal"[5].  

Sendo assim, pode-se concluir, portanto, que o devido processo penal é aquele que respeita toda a ordem de princípios e garantias constitucionais, mesma condição de possibilidade para que seja cerceada a liberdade na ótica de um Estado Democrático de Direito. Eis então o ponto de encontro que a presunção de inocência possui diante deste devido processo penal. A presunção de inocência, portanto, é o verdadeiro fundamento epistêmico deste devido processo penal (legal), eis que não há como se pensar em um processo que pode culminar no cerceamento da liberdade de uma pessoa, sem que seja considerado o seu princípio maior: o de que ninguém pode ser considerado culpado até que se tenha uma sentença condenatória (transitada em julgado e que respeite o devido processo legal).

E como princípio a presunção de inocência deve ser considera, pois como bem coloca Lenio Streck: "o princípio é elemento instituidor, o elemento que existencializa a regra que ele instituiu"[6]. Logo, resta evidente que a presunção de inocência vai muito além do que é pensado por parcela da comunidade jurídica, como simples regra de tratamento ao acusado no processo penal, mas sim verdadeira norma, que vincula(rá) a todos os atores participantes do processo. São os princípios que legitimam e determinam os vetores a serem utilizados por seus intérpretes no âmbito da prestação jurisdicional.

Eis então a principal razão pela qual o Supremo Tribunal Federal jamais poderia ter alcançado o resultado que alcançou quando do julgamento do HC 126.292/SP. Segundo o entendimento de 2016, passou-se a aceitar que uma simples decisão colegiada de 2º grau de jurisdição fosse suficiente para a decretação da prisão de uma pessoa, desafiando o próprio texto constitucional, que taxativamente coloca como marco temporal para a formação da culpabilidade, o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

A prisão é sempre tratada como a extrema ratio do processo penal, tanto porque há sempre de se pautar pelo princípio da presunção de inocência, garantido pela Constituição, em seu artigo 5º, LVII ou ainda pelo aperfeiçoamento do próprio princípio, no art. 282, §6º, do Código de Processo Penal. O que coloca o posicionamento de 2016, do STF, numa verdadeira contradição, afinal a hipótese que se colocava a partir do HC 126.292/SP era justamente a de execução provisória, o que claramente é e tem de ser vedado no processo penal.

Eis então o leitmotiv que culminou na interposição das ADC's 43, 44 e 54, que foram as responsáveis por restabelecer o respeito aos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos e sobretudo, porque não dizer, o ressuscitamento da presunção de inocência. A questão que se pôs a partir da equivocada decisão de 2016, do Supremo, é justamente a que é debatida há muito pelo professor Lenio Streck, em sua Crítica Hermenêutica do Direito: a de que o intérprete não é o dono dos sentidos, e que para se interpretar, necessariamente há que se permitir que o texto diga algo ao intérprete.

Razão esta, que faz com que ao analisar a questão posta pelo STF, no julgamento do HC 126.292/SP, Streck[7] observe que

"Há que se admitir que a tese de que é possível prender a partir de segundo grau é uma tese moral. Não é uma tese jurídica. A tese moral é a de que que 'devemos combater a impunidade'. Ou devemos 'atender ao clamor das ruas' (o que é isso — o clamor?). Mas pergunto: uma lei e a própria CF podem ceder a esses argumentos? Então podemos substituir a lei pela moral ou por argumentos de clamor social, que é tão fácil de captar como dizer que em 193 a presunção de inocência não é como no Brasil? Sim? Não? Isso é verificável?"

Sendo a presunção de inocência um princípio, e como defendido aqui neste texto, o verdadeiro fundamento epistêmico do processo penal, jamais poderá admitir-se qualquer interpretação que fuja do texto constitucional (ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória), sendo certo que o ocorrido no plenário do STF em 2016, fugiu e muito do que é Direito e se converteu em pura teoria política do poder (Streck).

A importância do restabelecimento da presunção de inocência a partir do julgamento das ADC's 43, 44 e 54, se dá justamente pelo fato de que "um país que confunde direito penal com política social de controle de massas está com seríssimos problemas de compreensão sobre o próprio sentido do Direito"[8]

Portanto, mantenhamo-nos vigilantes para que os predadores do Direito não tentem atacar novamente, pois somente a partir de um Judiciário que respeite a ordem constitucional e não sucumba à “voz das ruas” é que teremos a segurança jurídica que é tão cara ao Estado Democrático de Direito.

[2] Art. 5º, LIV, CRFB.

[3] MENDES, Gilmar Ferreira. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2014. p.429.

[4] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Observações sobre a propedêutica processual penal. Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2019. p.116.

[5] PISAPIA, Gian Domenico. Compendio di procedura penale. 4ª ed. Pádua: Cedam, 1985. p. 26 apud COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. op cit.

[6] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento, 2020. p. 375.

[7] STRECK, Lenio Luiz. O dia que a Constituição foi julgada: a história das ADC’s 43, 44 e 54. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. p. 96.

[8] Ibidem.

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