Opinião

Os equívocos do STF no julgamento da constitucionalidade do artigo 384 da CLT

Autor

  • DESATUALIZADA Igor de Oliveira Zwicker

    é doutorando em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA) mestre em Direitos Fundamentais pela Universidade da Amazônia (Unama) especialista em Economia do Trabalho e Sindicalismo pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Universidade Candido Mendes (Ucam) e em Gestão de Serviços Públicos pela Universidade da Amazônia (Unama) analista judiciário e assistente de juiz do Trabalho substituto no Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região (PA/AP) e professor de Direito.

1 de outubro de 2021, 6h34

O artigo 384 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) dizia que, "em caso de prorrogação do horário normal, será obrigatório um descanso de 15 minutos no mínimo, antes do início do período extraordinário do trabalho". A disposição normativa foi revogada pela Lei n° 13.467/2017 [1], intitulada de reforma trabalhista.

Antes disso, há muito, o pleno do Tribunal Superior do Trabalho uniformizou o entendimento, em incidente de inconstitucionalidade, de que a norma seria constitucional [2], exclusivamente aplicável às mulheres:

"MULHER — INTERVALO DE 15 MINUTOS ANTES DE LABOR EM SOBREJORNADA — CONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 384 DA CLT EM FACE DO ARTIGO 5º, I, DA CF. 1. O artigo 384 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) impõe intervalo de 15 minutos antes de se começar a prestação de horas extras pela trabalhadora mulher. Pretende-se sua não-recepção pela Constituição Federal, dada a plena igualdade de direitos e obrigações entre homens e mulheres decantada pela Carta Política de 1988 (artigo 5º, I), como conquista feminina no campo jurídico. 2  A igualdade jurídica e intelectual entre homens e mulheres não afasta a natural diferenciação fisiológica e psicológica dos sexos, não escapando ao senso comum a patente diferença de compleição física entre homens e mulheres. Analisando o artigo 384 da CLT em seu contexto, verifica-se que se trata de norma legal inserida no capítulo que cuida da proteção do trabalho da mulher e que, versando sobre intervalo intrajornada, possui natureza de norma afeta à medicina e segurança do trabalho, infensa à negociação coletiva, dada a sua indisponibilidade (cfr. Orientação Jurisprudencial 342 da SBDI-1 do TST). 3  O maior desgaste natural da mulher trabalhadora não foi desconsiderado pelo Constituinte de 1988, que garantiu diferentes condições para a obtenção da aposentadoria, com menos idade e tempo de contribuição previdenciária para as mulheres (CF, artigo 201, §7º, I e II). A própria diferenciação temporal da licença-maternidade e paternidade (CF, artigo 7º, XVIII e XIX; ADCT, artigo 10, §1º) deixa claro que o desgaste físico efetivo é da maternidade. A praxe generalizada, ademais, é a de se postergar o gozo da licença-maternidade para depois do parto, o que leva a mulher, nos meses finais da gestação, a um desgaste físico cada vez maior, o que justifica o tratamento diferenciado em termos de jornada de trabalho e período de descanso. 4  Não é demais lembrar que as mulheres que trabalham fora do lar estão sujeitas a dupla jornada de trabalho, pois ainda realizam as atividades domésticas quando retornam à casa. Por mais que se dividam as tarefas domésticas entre o casal, o peso maior da administração da casa e da educação dos filhos acaba recaindo sobre a mulher. 5  Nesse diapasão, levando-se em consideração a máxima albergada pelo princípio da isonomia, de tratar desigualmente os desiguais na medida das suas desigualdades, ao ônus da dupla missão, familiar e profissional, que desempenha a mulher trabalhadora corresponde o bônus da jubilação antecipada e da concessão de vantagens específicas, em função de suas circunstâncias próprias, como é o caso do intervalo de 15 minutos antes de iniciar uma jornada extraordinária, sendo de se rejeitar a pretensa inconstitucionalidade do artigo 384 da CLT. Incidente de inconstitucionalidade em recurso de revista rejeitado".

A questão chegou Ao Supremo Tribunal Federal, que assim decidiu [3]:

"Recurso extraordinário. Repercussão geral reconhecida. Direito do Trabalho e Constitucional. Recepção do artigo 384 da Consolidação das Leis do Trabalho pela Constituição Federal de 1988. Constitucionalidade do intervalo de 15 minutos para mulheres trabalhadoras antes da jornada extraordinária. Ausência de ofensa ao princípio da isonomia. Mantida a decisão do Tribunal Superior do Trabalho. Recurso não provido. 1  O assunto corresponde ao Tema nº 528 da Gestão por Temas da Repercussão Geral do portal do Supremo Tribunal Federal na internet. 2  O princípio da igualdade não é absoluto, sendo mister a verificação da correlação lógica entre a situação de discriminação apresentada e a razão do tratamento desigual. 3  A Constituição Federal de 1988 utilizou-se de alguns critérios para um tratamento diferenciado entre homens e mulheres: 1) em primeiro lugar, levou em consideração a histórica exclusão da mulher do mercado regular de trabalho e impôs ao Estado a obrigação de implantar políticas públicas, administrativas e/ou legislativas de natureza protetora no âmbito do direito do trabalho; 2) considerou existir um componente orgânico a justificar o tratamento diferenciado, em virtude da menor resistência física da mulher; e 3) observou um componente social, pelo fato de ser comum o acúmulo pela mulher de atividades no lar e no ambiente de trabalho — o que é uma realidade e, portanto, deve ser levado em consideração na interpretação da norma. 4  Esses parâmetros constitucionais são legitimadores de um tratamento diferenciado desde que esse sirva, como na hipótese, para ampliar os direitos fundamentais sociais e que se observe a proporcionalidade na compensação das diferenças. 5  Recurso extraordinário não provido, com a fixação das teses jurídicas de que o artigo 384 da CLT foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988 e de que a norma se aplica a todas as mulheres trabalhadoras".

Posteriormente, o STF anulou o julgamento por ausência de intimação dos defensores do embargante [4].

Eis que, na sessão virtual de 3 a 14 de setembro, o Plenário do STF (acórdão ainda não disponível), por unanimidade, apreciando o Tema 528 da repercussão geral, negou provimento ao recurso extraordinário e fixou a seguinte tese:

"O artigo 384 da CLT, em relação ao período anterior à edição da Lei n° 13.467/2017, foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, aplicando-se a todas as mulheres trabalhadoras".

Primeiro equívoco: interpretação em desfavor da mulher
Aqui não me refiro ao julgamento final. Refiro-me aos votos dos ministros Luiz Fux e Marco Aurélio, à época vencidos.

O ministro Luiz Fux entendeu que "proteção desta sorte cria um discrímen que, por via oblíqua, sem se dizer, acaba gerando um ônus para o mercado de trabalho em relação às mulheres".

O ministro Marco Aurélio entendeu que a proteção, "num mercado impiedoso, num livre mercado, a colocação da mão de obra feminina em segundo plano, sugere a preterição".

Se é assim, não há por que proteger a mulher, descumprindo não só o histórico, mas todo o arcabouço normativo de direitos humanos internacionais, que ostentam posição hierárquico-normativa de constitucionalidade ou supralegalidade, se internalizados, a depender do quórum do artigo 5º, §3º, da Constituição da República, e direitos fundamentais internos de proteção à mulher, que são muitos.

Sabemos que proteção gera ônus — ônus financeiro, ônus social, entre outros. Mas esse é o ônus da inserção, é o ônus de ações afirmativas, é o ônus de tratar os desiguais na medida da sua desigualdade, sem criar igualdades que não reconheçam as diferenças e ou diferenças que produzam, (retro)alimentem ou que reproduzam desigualdades, no dizer do sociólogo Boaventura de Sousa Santos.

Resumidamente, como bem colocou a ministra Rosa Weber, que aderiu à tese (prevalente) do relator, ministro Dias Toffoli, "deixar de admitir uma mulher porque, em sendo mulher, terá quinze minutos de intervalo antes de começar a jornada de trabalho afrontará, sim, o direito fundamental. A não admissão irá afrontar".

Segundo equívoco: não extensão a homens
O artigo 384 da CLT, embora estivesse no capítulo de proteção à mulher, não tratava de um direito propriamente feminino, mas humano.

Desde 1943, quando a CLT foi decretada por Getúlio Vargas — e até hoje, eis que a disposição normativa se encontra em vigor —, em qualquer trabalho contínuo, cuja duração exceda de seis horas, é obrigatória a concessão de um intervalo para repouso ou alimentação, o qual será, no mínimo, de uma hora, e, não excedendo de seis horas o trabalho, será, entretanto, obrigatório um intervalo de 15 minutos quando a duração ultrapassar quatro horas (artigo 71, caput e §1º).

Ora, o trabalho extraordinário, em uma jornada de oito horas, resta assim configurado: inicia-se com quatro horas, interrompe-se no mínimo uma e no máximo duas horas (intervalo intrajornada), trabalha-se mais quatro horas e, aí, inicia-se o labor extraordinário.

Como se vê, antes do início do labor extraordinário, o empregado ou a empregada, independentemente do sexo, laborou quatro horas seguidas, então tem direito a um intervalo mínimo de 15 minutos.

Poderíamos fixar uma jornada de dez horas sem labor? Poderíamos ter uma jornada de 48 horas semanais (já tivemos, inclusive). A resposta é positiva, se essa for a opção legislativa inicial. Porém, a partir do momento que a disposição normativa fixa um patamar civilizatório mínimo, não há como regredir. É disso que trata o "efeito cliquet" dos direitos humanos; a progressividade do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; a norma-princípio de vedação ao retrocesso social e a cláusula de avanço social contínuo, ambas previstas no artigo 7º, caput, da Constituição da República; e a vedação ao retrocesso socioambiental, considerando, além do artigo 7º, XXII, da Constituição da República, entre outros, o conceito de saúde, fixado nos termos da Constituição da Organização Mundial de Saúde e da Convenção n° 155 da Organização Internacional do Trabalho (essa última com posição hierárquico-normativa de supralegalidade): saúde não é mera ausência de doença ou enfermidade, mas um completo estado de bem-estar físico, mental e social.

Terceiro equívoco: reforma trabalhista
Como vimos, a reforma trabalhista revogou o dispositivo e o STF, ao estabelecer a tese da repercussão geral, julgou a revogação, expressamente, constitucional, ao fixar que o artigo 384 da CLT, em relação ao período anterior à edição da Lei n° 13.467/2017, foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, aplicando-se a todas as mulheres trabalhadoras.

Aqui, o fundamento é o mesmo do tópico anterior: a partir do momento em que a disposição normativa fixa um patamar civilizatório mínimo, não há como regredir. Se o patamar civilizatório mínimo impõe intervalo após quatro horas contínuas de trabalho, o ordenamento jusconstitucional já fixou esse como o patamar, não havendo como, socialmente e socioambientalmente, retroceder.


[1] Faço essa diferença porque "disposição normativa" e "norma" têm significados distintos, sendo a primeira fruto do resultado legislativo (o texto legal), e a segunda, fruto da interpretação judicial (artigo 5º, XXXV, da Constituição da República).

[2] IIN-RR-154000-83.2005.5.12.0046, Tribunal pleno, relator ministro Ives Gandra Martins Filho, DEJT 13/02/2009.

[3] RE 658312, relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal pleno, julgado em 27/11/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-027 DIVULG 09-02-2015 PUBLIC 10-02-2015.

[4] RE 658312 ED, relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal pleno, julgado em 05/08/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-173 DIVULG 02-09-2015 PUBLIC 03-09-2015.

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    é doutorando em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA), mestre em Direitos Fundamentais pela Universidade da Amazônia (Unama), especialista em Economia do Trabalho e Sindicalismo pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Universidade Candido Mendes (Ucam) e em Gestão de Serviços Públicos pela Universidade da Amazônia (Unama), analista judiciário e assistente de juiz do Trabalho substituto no Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região (PA/AP) e professor de Direito.

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