Limite Penal

Outra vez sobre o reconhecimento fotográfico

Autores

  • Janaina Matida

    é professora de Direito Probatório da Universidad Alberto Hurtado (Chile) doutora em Direito pela Universitat de Girona (Espanha) e consultora jurídica em temática da prova penal.

  • William Cecconello

    é professor de Psicologia da Faculdade Imed e doutor em Psicologia pela PUC-RS.

1 de outubro de 2021, 22h02

"Viver novamente a vida que eu tinha, andar tranquilo, de cabeça erguida, igual sempre andei por aí [1](Tiago Vianna Gomes).

Spacca
"Eu tô me sentindo meio triste, inseguro com toda essa situação. Tenho medo de ter que voltar pra prisão, mesmo comprovando a minha inocência, mostrando provas de que eu estava trabalhando, eu tenho medo da justiça falhar mais uma vez e eu ser preso [2]" (João Luiz da Silva Oliveira).

"Depois que passei por essa grande trapalhada e falta de cuidado dos agentes públicos, e viver e ver uma realidade que nunca pensei em vivenciar, cheguei à conclusão de que, para quem pede a prisão, errar não é nada, já que não tem que responder em Juízo por esse erro, então cai na banalidade onde só se olham números e pré-julgam com seus preconceitos. Se fizessem o mínimo de investigação sobre minha pessoa veriam que não tenho o perfil do acusado, mas preferem olhar a pessoa preta que mora no subúrbio e já acusar de um crime em outro município, sem prova alguma. O que percebo hoje em dia é que a Justiça é muito mais uma burocracia do que justiça de fato, no modelo atual feita para ser lenta, para humilhar culpados e inocentes. Será que se eu morasse de frente ao mar, na zona sul, e minha pele fosse branca, esse erro teria acontecido? [3]" (Raoni Lázaro Barbosa).

"Depois desse tempo todo que passei lá dentro e vendo o que está acontecendo com esses outros jovens, como João, Jeferson, Raoni e Alberto, me dá um nó na garganta e questiono: isso nunca vai acabar? Nós, jovens negros, estaremos sempre correndo o risco de sermos privados da nossa liberdade a qualquer momento? De qualquer jeito?Isso nunca vai acabar? Somos nós que temos que criar provar para provar nossa inocência e não Estado? Por quê?!! [4]" (Ângelo Gustavo Pereira Nobre).

Tiago, João Luiz, Raoni e Ângelo Gustavo tiveram suas trajetórias atravessadas por fatos semelhantes: são inocentes que injustamente foram tragados pelo nosso sistema de Justiça. As frases com as quais decidimos dar início à coluna de hoje representam seus anseios, medos, sua revolta e seus justificados questionamentos. Todos eles são negros. Todos eles tiveram suas vidas prejudicadas por um erro do sistema de Justiça. Todos eles foram vítimas de falso reconhecimento.

Na véspera do Dia Internacional das Condenações Injustas (Wrongful Conviction Day, 2 de outubro) é mais do que oportuno reforçar que todos eles merecem ter as suas vozes ouvidas, suas vidas consideradas. É dever da sociedade refletir sobre as práticas que conduzem às condenações injustas e, no que refere àqueles que atuam no sistema de Justiça, não há como se eximirem do fato de que as condenações injustas são produto de uma cadeia de irregularidades cometidas por uns, aproveitadas e chanceladas por outros. Cuidar seriamente de evitar condenações injustas demandará um giro comportamental que, entre outras coisas, deverá conduzir ao abandono da lógica das investigações a jato que se contentam com verdadeiros vazios probatórios. É preciso rumar para o desenvolvimento de uma investigação epistemicamente orientada que não ofereça injustificado protagonismo a uma única prova, muito menos quando é irregularmente produzida.

Entendemos ser, uma vez mais [5], oportuno tratar do reconhecimento porque os cuidados sinalizados como necessários pelo memorável voto do ministro Rogerio Schietti no julgamento do HC 598.886/SC continuam a ser sistematicamente ignorados pelos atores do sistema de Justiça criminal. Os recentes casos de erros no reconhecimento são representativos de práticas que se repetem nas delegacias Brasil afora. Essas práticas envolvem o emprego de fotografias em álbum de suspeitos, fotos de redes sociais, fotos exibidas às vítimas/testemunhas de maneira informal através de envio por mensagem de WhatsApp ("Olá, pegamos o sujeito. Aqui vai uma foto… A senhora poderia passar na delegacia para reconhecê-lo?"). Estas práticas recebem justificadas críticas por parte dos que se debruçam sobre a memória humana. O reconhecimento de alguém como autor de um delito depende do acesso à memória da vítima/testemunha. Quando se emprega métodos inerentemente sugestivos como o "álbum de suspeitos", simplesmente não há como se confiar no apontamento que lhe sobrevenha. Mas as críticas mais que justificadas dirigidas às odiosas práticas já mencionadas não devem ser apressadamente estendidas a todo e qualquer uso de fotografia. Vejamos o porquê.

1) Memória humana e irrepetibilidade do reconhecimento
A memória humana foi moldada com uma função especifica: aprender. Por ser especializada em aprender, a memória é maleável, de forma que sempre que uma informação é recuperada da memória, ela passa a se encontrar em um estado transiente em que novas informações podem ser inseridas à memória original. No que refere ao reconhecimento de pessoas, a maleabilidade e a função de aprender geram um efeito não desprezível: quando um rosto é apresentado a uma vítima e esta o reconhece como sendo autor do crime, seu cérebro "aprende" que o rosto reconhecido é o rosto visto no local do crime [6]. Assim, todo reconhecimento é impactado diretamente por reconhecimentos anteriores, sendo o primeiro reconhecimento a oportunidade em que se pode ter acesso à memória mais livre de contaminações possível [7]. Ou seja, um reconhecimento feito em Juízo utilizando métodos adequados não tem a capacidade de remediar os efeitos de um primeiro reconhecimento irregularmente produzido. Sendo o primeiro reconhecimento primordial para a identificação de autoria, é preciso zelar pela sua adequada realização.

2) O alinhamento justo como condição necessária
A literatura tem apresentado que o método mais confiável para a apresentação do suspeito é o alinhamento (ou line-up) no qual o suspeito é apresentado com outros não suspeitos (geralmente cinco). O alinhamento deve ser justo, deve servir a proteger inocentes do risco de serem injustamente escolhidos. Por isso, há que se cuidar que o suspeito não se destaque dos demais, e todos os rostos presentes devem ser compatíveis com a descrição oferecida pela vítima/testemunha. O alinhamento justo não se reduz a mero requisito numérico ou condição de pluralidade de sujeitos. A ausência de destaque, por assim dizer, é o que serve à proteção do inocente que porventura integre uma fila: o que se deve evitar é que outros fatores (ex.: roupa de presidiário, algemas, roupas de outros integrantes da fila que notoriamente são funcionários da Justiça…) alheios à recordação que a vítima/testemunha reteve do culpado contribuam à seleção.

3) Reconhecimentos irregulares
Nem é preciso dizer que, no Brasil, no mais das vezes, quando o alinhamento é realizado, ele é realizado com pouco rigor como etapa subsequente a um primeiro reconhecimento por meio do qual exibiu-se um único rosto à vítima/testemunha. A inerente sugestionabilidade do show up é seguida de um procedimento que serve a otimizar o falso reconhecimento. É dizer: a vítima/testemunha já viu a fotografia de um único suspeito e agora é chamada a apontá-lo junto com outros sujeitos. A familiaridade do rosto do suspeito, causada pelo recoconhecimento anterior, desempenhará um papel crucial no falso reconhecimento.

O show-up é o procedimento mais inadequado para o reconhecimento. Pesquisas têm apontado que, dentre todas as formas de reconhecimento, o show-up é a que possui maior risco de reconhecimento falso [8]. Isto ocorre por que no show-up a vítima/testemunha deve comparar o rosto apresentado (suspeito), com o rosto visto na cena do crime. Assim, se o cérebro da testemunha julgar que o suspeito é suficientemente parecido à memória do autor do crime, o "reconhecimento" acontece. A ausência de comparação entre uma pluralidade de rostos semelhantes com o rosto do culpado incrementa as chances de que um inocente parecido preencha, sozinho, a lacuna que a vítima/testemunha tem ânsia por conseguir solucionar.

Já mencionamos que o álbum de suspeitos é procedimento inadequado, mas agora cabe dizê-lo em mais detalhe. Como o próprio nome indica, o álbum de suspeitos serve à exibição de vários rostos de pessoas suspeitas da prática de crimes, o que, por si só, já dá a entender que há grandes chances de que o autor do delito está presente. Também é digna de nota a sobrecarga cognitiva que impõe à vítima/testemunha, a quem cabe observar grande quantidade de rostos ao mesmo tempo. Assim, o reconhecimento por álbum de suspeitos também é um procedimento inadequado, uma vez que pode prejudicar a capacidade de a testemunha reconhecer um autor corretamente, e aumenta o risco de um falso reconhecimento.

É imprescindível salientar que neste ponto há uma confusão em termos utilizados por atores do sistema de Justiça. O reconhecimento por show-up ou álbum de suspeitos não devem ser utilizados como sinônimos de reconhecimento fotográfico. Show-up consiste em se exibir apenas um rosto, o que pode ser feito por foto ou presencialmente. O álbum de suspeitos, por sua vez, faz um uso deturpado de fotografias a partir da exibição de múltiplos suspeitos de uma só vez. São práticas que devem ser abolidas porquanto facilitam falsos positivos, como já sinalizado. Mas o recurso a fotografias não precisa, e não deve, ser reduzido a práticas odiosas. Pelo contrário, considerando para o requisito do alinhamento justo, por exemplo, é notória a maior facilidade de se ter à mão cinco fotografias de sujeitos efetivamente semelhantes com o suspeito. As fotografias devem ser padronizadas, todas apresentando a mesma qualidade (o que em nada se confunde com as fotos das redes sociais). Por outro lado, como esperar que cada delegacia de polícia conte com a presença de cinco pessoas semelhantes ao suspeito à disposição da realização de reconhecimentos? É simplesmente irreal supor que o desenho institucional da etapa investigatória possa depender da sorte de se ter disponíveis pessoas com as mesmas características físicas que a vítima/testemunha elencou como sendo as ostentadas pelo suspeito à espera da realização do reconhecimento, delegacias Brasil afora. É precisamente porque há que se assegurar um procedimento que proteja os inocentes do risco de serem falsamente apontados, que devemos considerar a alternativa do reconhecimento fotográfico [9].

4) Construindo um reconhecimento epistemicamente válido: alinhamento, instruções, duplo-cego e ausência de feedback positivo
Aliado ao alinhamento justo é sumamente importante que sejam utilizadas instruções adequadas às vítimas/testemunhas. Vítimas/testemunhas tendem a acreditar que caso não reconheçam um rosto estarão prejudicando o trabalho policial, por essa razão, é importante informar que o autor do delito pode estar ou não entre os rostos e que não reconhecer alguém é, sim, uma resposta possível [10]. Também é importante evitar qualquer feedback confirmatório, como quando o investigador diz à vítima/testemunha que ela apontou a pessoa que a polícia tinha em mente. Feedbacks como esse têm o efeito de inflar o grau de confiança que a vítima originalmente tinha no resultado, de modo que, a partir da confirmação oferecida pelo investigador, ela passa a ter um grau de confiança superior ao que originalmente tinha após ter efetuado o apontamento [11]. Será esse grau de confiança inflado que a vítima/testemunha relatará quando perguntada sobre ele; como sabemos, ele poderá contribuir à injusta condenação de um inocente. Elevados graus de confiança não são, por si só, conclusivos sobre o conteúdo verdadeiro da memória.

Pelo que foi exposto, fica evidente a importância da realização de reconhecimento que observe as condições de: um alinhamento justo, essas, por seu turno combinadas ao oferecimento de instruções adequadas, capazes de prevenir eventual efeito compromisso que a vítima/testemunha seja capaz de sentir, correlacionando a continuidade da investigação ao apontamento de alguém. Além disso, também vimos o quão releva eliminar o oferecimento de feedbacks à vítima/testemunha, pois a flexibilidade da memória ocasiona a maleabilidade do grau de confiança.

A observância da reunião destes conselhos representa condição necessária e não suficiente para que se confira qualquer valor probatório, reduzido que seja, ao reconhecimento efetuado — seja ele presencial ou fotográfico: é condição necessária porque ausentes não se garante mínima confiabilidade ao resultado (dado que o próprio sistema de Justiça estará contribuindo a falsos positivos), é condição insuficiente porque ainda quando todos as recomendações sejam seguidas, como a memória humana é falível, sempre se imporá a necessidade de que aquele reconhecimento seja corroborado por outros elementos probatórios extraídos de fontes independentes.

É precisamente porque nos preocupamos com o efetivo alcance dos direitos dos cidadãos quando investigados/processados que esclarecemos que a defesa do reconhecimento fotográfico não implica naturalização de ilegalidades cometidas na investigação. A modalidade fotográfica deve ser explorada como alternativa que pode ser desenvolvida a oferecer resultados epistemicamente confiáveis, mas que, sem dúvidas, devem ter sua produção protocolizada e regulada institucionalmente. Nesse sentido, considerando seriamente a alternativa do reconhecimento fotográfico, novos desafios deverão seriamente enfrentados. A procedência das fotos (há sistemas jurídicos que pagam cidadãos para usar as suas fotos, outros que usam fotos de pessoas que já faleceram, finalmente também os que usam fotos de pessoas internas ao sistema de Justiça), os critérios que justificam sua inclusão em eventual mosaico, a exclusão das fotos dos bancos de fotografias, etc. Esses são os verdadeiros desafios que temos de assumir se queremos evitar as condenações injustas.


[2] Mensagem que um dos autores dessa coluna, Janaina Matida, recebeu de João Luiz, quando perguntou como se sentia com respeito aos processos criminais pelos que responde atualmente. Para conhecer o caso, assistir: https://recordtv.r7.com/balanco-geral-rj/videos/familia-tenta-provar-inocencia-de-tecnico-de-enfermagem-preso-no-rj-06092021

[3] Mensagem que um dos autores dessa coluna, Janaina Matida, recebeu de Raoni, quando perguntou como se sentia com respeito da prisão injusta a que foi submetido por lhe haverem confundido com outro Raoni. Para conhecer mais o caso, assistir: https://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/rio-justica-solta-cientista-preso-apos-ser-confundido-com-miliciano-09092021

[4] Relato oferecido por Ângelo Gustavo ao episódio do Grupo Prerrogativas no YouTube "A tarefa de recivilizar o Brasil, com André Nicolitt".

[5] Os colunistas da Limite Penal já trataram do reconhecimento de pessoas outras ocasiões. Ver: Lopes Jr, A.; Morais da Rosa. A "Memória não é polaroid: precisamos falar sobre reconhecimentos criminais", 2014; Matida, J. "O reconhecimento de pessoas não pode ser porta aberta à seletividade penal", 2020. Matida, J. et al. "A prova de reconhecimento de pessoas não será mais a mesma", 2020. Matida, J.; Nardelli, M.M. "Álbum de suspeitos: uma vez suspeito para sempre suspeito?", 2020.

[6] Cecconello, William Weber, and Lilian Milnitsky Stein. 2020. "Prevenindo Injustiças: Como a Psicologia Do Testemunho Pode Ajudar a Compreender e Prevenir o Falso Reconhecimento de Suspeitos." Avances En Psicologia Latinoamericana 38(1):172—88. doi: 10.12804/revistas.urosario.edu.co/apl/a.6471.

[7] Cecconello, William Weber, Gustavo Noronha Avila, and Lilian Milnitsky Stein. 2018. "A (Ir)Repetibilidade Da Prova Penal Dependente Da Memória: Uma Discussão Com Base Na Psicologia Do Testemunho." Revista Brasileira de Políticas Públicas 8(2):1057—73. doi: 10.5102/rbpp.v8i2.5312.

[8] CLARK, S E. Costs and Benefits of Eyewitness Identification Reform: Psychological Science and Public Policy. Perspectives on Psychological Science, [s. l.], v. 7, n. 3, p. 238—259, 2012. Disponível em: https://doi.org/10.1177/1745691612439584

[9] MATIDA, Janaina,; CECCONELLO, William W. Reconhecimento fotográfico e presunção de inocência. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 7, n. 1, jan./abr. 2021. https://doi.org/10.22197/rbdpp.v7i1.506

[10]. STEBLAY, Nancy K. Lineup instructions. In: B. L. Cutler (Ed.), Reform of eyewitness identification procedures., p. 65—86. Washington: American Psychological Association 2013. https://doi.org/10.1037/14094-004

[11] STEBLAY, Nancy K; WELLS, Gary L; DOUGLASS, Amy Bradfield. The eyewitness post identification feedback effect 15 years later: Theoretical and policy implications. Psychology, Public Policy, and Law. Washington, v.20, n.1 American Psychological Association, 2014. 

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