Opinião

A radical guinada sobre a gravação clandestina

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1 de outubro de 2021, 20h36

Com a entrada em vigor do denominado pacote "anticrime" (Lei nº 13.964/19), houve uma radical guinada de posição quanto à possibilidade da gravação clandestina, realizada por um dos interlocutores da conversa, servir como prova acusatória em sede de processo penal. Isso porque o parágrafo 4º do artigo 8º-A da Lei nº 9.296/96 [1] é cristalino em afirmar que tal meio de prova será válido apenas para uso de matéria defensiva quando realizado sem prévio conhecimento de tal ação por parte das autoridades investigativas.

A matéria é de singular importância e exemplarmente abordada em recente julgado do Superior Tribunal de Justiça que, não obstante sua clareza, tem gerado confusões em sua interpretação. Nesse sentido, o Habeas Corpus nº 512.290/RJ, julgado em 18/8/2020 pela 6ª Turma do STJ, afirmou que "a gravação ambiental realizada pelo colaborador premiado, um dos interlocutores da conversa, sem consentimento dos outros, é lícita, ainda que obtida sem autorização judicial, e pode ser validamente utilizada como meio de prova no processo penal (…)".

No voto condutor, assim manifestou-se a corte: "É mister ressaltar, ainda, que a Lei n° 9.296, de 24/7/1996, mesmo com as invocações trazidas pela Lei n° 13.964/2019, não dispôs sobre a necessidade de autorização judicial para a gravação de diálogo por um dos seus comunicadores (…) remanesce a reserva jurisdicional apenas aos casos relacionados à captação por terceiros, sem conhecimento dos comunicadores (…)".

Como facilmente se percebe do julgado acima, o caso analisado mostra a licitude de uma gravação clandestina realizada por colaborador que havia sido combinada, antes, com o Ministério Público e demais agentes da segurança pública ("Se agente lotada em agência de inteligência, sob identidade falsa, apenas representou o ofendido nas negociações da extorsão, sem se introduzir ou se infiltrar na organização criminosa com o propósito de identificar e angariar a confiança de seus membros ou obter provas sobre a estrutura e o funcionamento do bando, não há falar em infiltração policial").

Significa dizer que a gravação lá examinada se legitimou para fins de prova acusatória na medida em que, antes de sua execução, cientes estavam as autoridades e, consequentemente, respeitados estariam os limites normativos do dispositivo em comento.

Situação absolutamente diversa, entretanto, é aquela em que um dos interlocutores, sem a prévia comunicação às autoridades competentes, realiza a gravação para, posteriormente, de tal prova se valer o Ministério Público e Poder Judiciário para fins condenatórios.

A partir desse quadro teremos, inegavelmente, uma prova ilegítima para oferecimento de denúncia e decisão condenatória. Primeiro, porque a lei é expressa quanto ao assunto. Tal gravação valerá apenas para fins defensivos e, nesse diapasão, nem há que se contra-argumentar sobre a posição do Supremo Tribunal Federal em momentos anteriores à promulgação da lei. Isso porque uma vez promulgada, a jurisprudência anterior, que caminhava em sentido contrário, nada mais vale  sob pena de abandono principiológico do valor da lei federal para o sistema jurídico brasileiro.

Outra posição a ser rechaçada, mas que comumente se encontra em jurisprudência e pareceres do Ministério Público, é a aquela em que se afirma a validade da gravação enquanto prova acusatória na medida em que sua captação não constitui um ilícito penal. Sem sombra de dúvida  por força do artigo 10-A [2], da Lei nº 9.296/96 , a gravação é lícita — mas, pelo viés processual que aqui interessa, a ilegitimidade na utilização de uma prova não deriva, necessariamente, da criminalização do agente que a captou. Pelo contrário, a superficialidade de se concluir pela legitimidade de utilização da gravação clandestina para fins acusatórios, em desacordo com os limites do já mencionado artigo 8º (prévia comunicação aos órgãos investigativos), apenas porque o agente que a captou não cometeu um crime, é manifesta, contrariando a básica distinção entre as diversas espécies de ilícito existentes em nosso ordenamento jurídico.

No caso, ainda que o interlocutor responsável pela medida não tenha praticado fato típico e, mais, ainda que de tal prova possa se valer para fins de ressarcimento civil [3], o fato é que, para uma finalidade específica — acusação em processo criminal — o lícito se torna ilegítimo.

Tal conclusão é primária, pois, para fins acusatórios em sede de processo penal, inúmeros são os exemplos de atos lícitos mas, ainda assim, ilegítimos para a acusação. Como melhor exemplo é possível mencionar o instituto da revelia civil que, naquela área, produz efeitos de uma confissão em relação aos fatos que, por sua vez, de nada serve para embasar uma denúncia ou sentença condenatória penal.

Enfim, licitude e ilegitimidade não se excluem. Muitas vezes, caminham de mãos dadas. Não bastasse o exemplo acima, uma segunda questão que reforça o raciocínio aqui desenvolvido versa sobre a distinção entre dois momentos diferentes no que toca à prova em si, quais sejam sua: a) obtenção; e b) utilização processual.

Se analisarmos todas as hipóteses que surgem dessa diferença será fácil percebermos que nem toda prova obtida ilicitamente será ilegítima, assim como nem toda aquela obtida licitamente será adequada. Uma interceptação telefônica clandestina, por exemplo, configura uma ilicitude penal na obtenção do material. Entretanto, será validada para fins defensivos criminais e absolvição de alguém injustamente acusado. Ilícita na obtenção, legítima na utilização.

Ao contrário, uma gravação clandestina, sem prévia comunicação à autoridade investigativa, que é exatamente o objeto do presente artigo, não será fato típico, mas, por força expressa de lei, ilegítima em sua utilização para fins acusatórios.

Enfim, a ausência de fato típico na obtenção da prova jamais se confundirá, em relação de causa e efeito, com sua legitimidade de utilização processual, e em breve saberemos, ante a incrível quantidade de decisões que ainda legitimam a utilização da prova declarada inválida pela norma federal, a posição final de nossos tribunais superiores.


[1] "Artigo 8º-A. §4º – A captação ambiental feita por um dos interlocutores sem o prévio conhecimento da autoridade policial ou do Ministério Público poderá ser utilizada, em matéria de defesa, quando demonstrada a integridade da gravação". 

[2] "Artigo 10-A – Realizar captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos para investigação ou instrução criminal sem autorização judicial, quando esta for exigida: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa. §1º Não há crime se a captação é realizada por um dos interlocutores. §1º Não há crime se a captação é realizada por um dos interlocutores".

[3] "Código de Processo Civil, artigo 422 – Qualquer reprodução mecânica, como a fotográfica, a cinematográfica, a fonográfica ou de outra espécie, tem aptidão para fazer prova dos fatos ou das coisas representadas, se a sua conformidade com o documento original não for impugnada por aquele contra quem foi produzida".

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  • Brave

    é advogado criminalista, especialista em Direito Penal Econômico, mestre em Ciências Criminais e sócio-fundador de Daniel Gerber Advogados.

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