Opinião

Um passo além na colaboração premiada: anexos descrevem dúvidas ou suspeitas

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1 de outubro de 2021, 10h11

O instituto da colaboração premiada representou uma importante transformação na forma como investigações e processos criminais são conduzidos no Brasil.

A ruptura do vínculo existente entre os agentes infratores, através da quebra do silêncio e da cumplicidade existentes entre eles, constitui uma estratégia necessária para a persecução à criminalidade moderna. Isso porque os meios de obtenção de prova tradicionais (interceptação telefônica, busca e apreensão etc.) se revelaram insuficientes para avançar sobre a esfera íntima daqueles delitos mais complexos.

Por certo que esse movimento de "americanização" do Direito Penal e Processual Penal ensaia dificuldades, pois é estranha à realidade dos países de tradição romano-germânica a ideia do oferecimento de um benefício ou isenção da pena como contrapartida para a obtenção de informações sobre atividades que deveriam, em tese, ser identificadas pelo próprio Estado e obrigatoriamente responsabilizadas por ele.

Diante disso, questionamentos já formulados quanto a um suposto dilema ético-moral advindo desse fenômeno ou sobre uma possível ilegalidade em se promover a mitigação do dever acusatório de processá-los são campos de debate que, embora ainda ecoem, parecem hoje estar mais interessados em explicar e ajustar essa realidade do que em afastá-la por completo. Assumem esses atores, portanto, um papel de condutores a uma redução de danos causados por tais inovações.

A legislação e a jurisprudência nacionais, por sua vez, também amadureceram com a operacionalização da colaboração premiada. Embora seja um instituto antigo no Brasil, com a sua primeira manifestação ainda em 1990, na Lei de Crimes Hediondos (Lei nº 8.072/1990), foi somente com a Lei de Organizações Criminosas (Lei nº 12.850/2013) e as suas repercussões sobre a operação "lava jato" que um novo olhar passou a ser conferido a ele.

O estabelecimento de limites aos atos judiciais possíveis de serem decretados a partir da palavra do colaborador; a regulação da confidencialidade dessas tratativas, da extensão das informações possíveis de serem obtidas e das penas/regimes possíveis de serem aplicados, bem como a definição do papel do juiz na homologação do acordo e os direitos dos acusados diante deste instrumento, são conquistas voltadas à preservação de uma ordem garantista. A eficácia do instituto não pode ser cega, sendo necessário moldar a sua aplicação a um cenário de preservação aos direitos e garantias fundamentais.

Falta ainda, contudo, um maior controle sobre o próprio conteúdo da colaboração premiada e sobre o uso que pode ser a ele conferido.

Como meio de obtenção de prova que é, muitos dos relatos obtidos a partir da colaboração premiada são objeto de maior escrutínio no âmbito da fase investigativa (decretação de medidas judiciais para a obtenção de provas, requisição de documentos e informações, convocação para prestar esclarecimentos etc.), seja para aprofundá-los, mediante a obtenção de novos ou mais robustos elementos de prova, ou até mesmo para confirmá-los, vez que se tem admitido narrativas sobre situações em que há dúvidas sobre a efetiva ocorrência de um crime ou mesmo suspeitas da sua realização.

Neste último caso, deve haver uma melhor regulação quanto à forma como o fato reportado precisa ser operacionalizado pelos órgãos de persecução penal. Não se concebe que um episódio sobre o qual recaem dúvidas ou suspeitas por parte do próprio colaborador premiado quanto à prática de um crime seja objeto de homologação judicial antes da confirmação da sua natureza, se criminosa ou não.

Faltam a esses relatos a demonstração de sua utilidade, aspecto que foi elevado pela Lei de Organizações Criminosas à condição de pressuposto do acordo de colaboração premiada (artigo 3º-A). Além disso, dadas as repercussões que tal instituto pode ensejar à esfera de liberdades de um terceiro, a boa-fé do colaborador em indicar todos os fatos possivelmente ilícitos para os quais concorreu não pode se converter, de forma descriteriosa, no fundamento para a instauração de uma investigação.

Em tais situações, deve haver uma divisão das etapas do processo de celebração do acordo de colaboração premiada, homologando-se aquilo de criminoso que foi reportado, em relação ao que já poderá haver a instauração de um inquérito policial e, se preenchidos os requisitos legais, a decretação de medidas judiciais, e condicionando a homologação dos fatos sobre os quais recaiam suspeitas ou dúvidas quanto à sua ilegalidade aos resultados de uma investigação preliminar que deverá ser instaurada a partir deles.

Nessa investigação preliminar devem ser colhidos elementos para a verificação da existência, ou não, de um ilícito penal, para o que não pode haver a decretação de medidas judiciais contra o indivíduo apontado, como as medidas de busca e apreensão, as quais carregam consigo todo um constrangimento inerente à sua realização. Somente se verificada a existência da hipótese criminosa, e não mais uma situação dúbia, é que poderá haver a validação desse termo de colaboração no plano judicial, com todas as consequências disso advindas. Não sendo identificada a ilicitude, por outro lado, deve o anexo ser arquivado e preservado o sigilo daquelas informações, que não poderão ser utilizadas, medida fundamental para a proteção do colaborador.

Assim como uma denúncia anônima deve ser objeto de uma investigação preliminar antes da instauração de um inquérito policial, tal como vem entendendo a jurisprudência, os termos de uma colaboração premiada que estejam pautados por fatos sobre os quais recaem dúvidas sobre a efetiva ocorrência de um crime ou suspeitas da sua realização também o devem. Trata-se aqui, pois, de impedir uma indevida transformação da insegurança do delator em certeza da acusação e em constrangimento ilegal para o acusado, realidade que conferirá a este instituto ainda mais credibilidade e segurança jurídica.

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