Território Aduaneiro

Mercadorias, bens... E a 'janela suja' no Direito Aduaneiro brasileiro

Autor

  • Rosaldo Trevisan

    é doutor em Direito (UFPR) professor assessor/consultor da Organização Mundial das Aduanas (OMA) do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI) auditor-fiscal da Receita Federal membro especialista do Carf e membro da Junta Diretiva da Academia Internacional de Direito Aduaneiro (Icla).

30 de novembro de 2021, 8h00

A história que introduz o texto desta semana, por mim levemente adaptada e abreviada, é bem conhecida, ainda que paire controvérsia sobre quem seja seu efetivo autor [1].

Spacca
A mulher olha pela janela da sala e fala para o marido que o novo vizinho deve ser bem desleixado e que não sabe nem lavar roupa, porque o lençol estendido em seu varal está todo sujo. O marido observa o lençol no varal, pela mesma janela, e acena com a cabeça, em silêncio. E o mesmo comentário é feito no dia seguinte, e nos outros que o sucedem, a semana toda.

No entanto, em um belo dia de sol, a mulher comenta com o marido que o vizinho finalmente havia aprendido a lavar roupas, porque o lençol no varal estava limpo e reluzente. Em resposta, o marido informa que naquele dia ele havia limpado os vidros da janela da sala, pela manhã.

No Direito Aduaneiro brasileiro, temos várias "janelas sujas", sendo a mais conhecida a que se refere ao termo "mercadoria", que é de uso corrente, internacionalmente [2], com acepção ampla e reluzente, mas que acaba contaminada por visões às vezes empoeiradas, em nosso país.

Dispunha a Constituição Federal de 1946, em seu artigo 15, I, que competia à União decretar impostos sobre "importação de mercadorias" [3], tendo sido a terminologia alterada para "produtos estrangeiros" no artigo 7º da Emenda Constitucional 18/1965, que reformou o sistema tributário.

A Emenda 18/1965 deve ser analisada em conjunto com o Código Tributário Nacional (CTN — Lei 5.172/1966) e a Lei Aduaneira (DL 37/1966), que foram elaborados em um mesmo contexto, e contaram, inclusive, com a participação de membro comum: Gerson Augusto da Silva, figura relevante da história tributária e aduaneira do país, que, na década de 60 do século passado, já tinha experiência e familiaridade com a terminologia aduaneira adotada internacionalmente [4].

De tal familiaridade, brota o fato de o DL 37/1966, fruto de comissão presidida por Gerson, ao tratar da incidência do imposto de importação, ter utilizado a terminologia classicamente adotada no país e no exterior ("mercadoria" — artigo 1º), enquanto o CTN acabou reproduzindo o termo usado na Emenda 18/1965 ("produto" — artigo 19). A análise do texto e do contexto dessas normas revela que não desejou o legislador aduaneiro restringir a incidência àquilo que havia sido transacionado em operação de compra e venda por comerciantes, com fito de lucro e habitualidade (definição de "mercadoria" então utilizada na legislação brasileira referente ao imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias).

Observando-se o texto original do DL 37/1966, são facilmente localizados artigos em que não faria sentido algum entender que foi adotada definição restritiva de mercadoria (v.g. o artigo 70, que mencionou "mercadoria em unidade ou em quantidade sem destinação comercial", ou o artigo 106, III, "b", que tratou de "chegada ao país de bagagem e bens de passageiro fora dos prazos regulamentares, quando se tratar de mercadoria sujeita a tributação"). Aliás, fosse o imposto de importação incidente apenas sobre a definição restritiva de mercadoria, não haveria necessidade de concessão de isenção a bagagem de viajantes, ou a remessas postais entre pessoas físicas, sem finalidade comercial, e também não seria possível despachar (artigo 44) ou mesmo apreender (artigo 105) o que não se enquadrasse como "mercadoria".

Nas décadas de 70 e 80 do século passado, dois grandes temas aduaneiros foram disciplinados internacionalmente: a valoração aduaneira (na Rodada Tóquio de negociações comerciais, em 1979) e a classificação de mercadorias (no âmbito do Conselho de Cooperação Aduaneira, em 1983). No acordo sobre valoração aduaneira, celebrado em textos autênticos nos idiomas inglês, francês e espanhol, a terminologia empregada foi, respectivamente, "customs value of imported goods", "valeur en douane des marchandises importées" e "valor en aduana de las mercancías importadas" (o que foi mantido, posteriormente, no acordo de valoração aduaneira da Rodada Uruguai, em 1994).

Na convenção do sistema harmonizado (SH), sobre classificação, com textos autênticos em inglês e francês, manteve-se a terminologia goods (com a variante commodity), em inglês, e marchandises, em francês, tendo a tradução oficial em língua portuguesa, na promulgação efetuada pelo Decreto 97.409/1988, aclarado a opção terminológica logo no título: "Convenção Internacional sobre o Sistema Harmonizado de Designação e de Codificação de Mercadorias". E a convenção do SH surge exatamente para minimizar a "babel" terminológica na descrição das mercadorias nos diferentes idiomas [5], criando uma classificação numérica, de caráter internacional, que inclui na categoria de "mercadorias" o que alguns países poderiam não admitir em um conceito restritivo (v.g. animais vivos, gás e energia elétrica).

É importante recordar que se um tratado internacional foi autenticado em dois ou mais idiomas, seu texto faz igualmente fé em cada um deles (a não ser que o tratado disponha ou as partes concordem que prevaleça um texto determinado). Pelo menos é isso o que determina expressamente o artigo 33 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados entre Estados (CVDT — no Brasil, promulgada pelo Decreto 7.030/2009), um dos diplomas mais relevantes do Direito Internacional, que traz ainda importante presunção em seu artigo 33, 3: "Presume-se que os termos do tratado têm o mesmo sentido nos diversos textos autênticos".

Assim, aquilo que o texto em inglês designa por goods tem exatamente o mesmo significado do que o texto em francês designa por marchandises, ou o espanhol qualifica por mercancías. E, em uma eventual tradução para o português, deve-se ter consciência de que, qualquer que seja a palavra escolhida (bens, mercadorias, produtos, coisas, objetos…) [6], o significado será o mesmo.

Digo isso porque, curiosamente, o Brasil fez opções diferentes de tradução nos dois principais tratados internacionais aduaneiros deste século, a Convenção Internacional para a Simplificação e a Harmonização dos Regimes Aduaneiros "Convenção de Quioto Revisada", da Organização Mundial das Aduanas (CQR/OMA), e o Acordo sobre a Facilitação do Comércio, da Organização Mundial do Comércio (AFC/OMC).

A CQR/OMA, que tem textos autênticos em inglês e francês, usa, predominantemente, goods (inglês) e marchandises (francês), tendo o Decreto 10.276/2020, que a promulga, no Brasil, traduzido oficialmente esses termos, em geral, como "mercadorias". No entanto, na tradução oficial do AFC/OMC, com tem textos autênticos em inglês, francês e espanhol, usando, igualmente, goods (inglês) e marchandises (francês), além de mercancías (espanhol), foi utilizada a palavra "bens", na versão promulgada pelo Decreto 9.326/2018, no Brasil.

Tendo em conta que em ambos os tratados (CQR/OMA e AFC/OMC) a regulamentação se refere a um mesmo instituto basilar do Direito Aduaneiro, só nos resta concluir que aquilo que um decreto traduziu como "bens" e o outro traduziu como "mercadorias" são, em verdade, termos sinônimos, no linguajar internacional aduaneiro.

Portanto, pode escolher a terminologia que deseja utilizar em uma operação de importação (v.g., "mercadorias", como o DL 37/1966 e as traduções oficiais da CQR/OMA, do AVA/GATT e do SH; ou "bens", como a tradução oficial do AFC/OMC) [7]. Aliás, o Código Aduaneiro do Mercosul, aprovado pela decisão CMC 27/2010, definiu "mercadoria" (artigo 3º) como "todo bem suscetível de um destino aduaneiro".

Só não pode efetuar a leitura do termo "mercadoria", nesses e em outros tratados (ou em normas nacionais neles calcadas), atribuindo um sentido restritivo inexistente nos textos autênticos aprovados internacionalmente. Caso tenha a tentação de fazê-lo, lembre-se de limpar a janela antes!

 


[1] O leitor está convidado a desvendar esse mistério, sobre a paternidade da história. Lanço uma provável primeira pista, de origem bíblica (Mateus 7:5): "Hipócrita, tire primeiro a viga do seu olho, e então você verá claramente para tirar o cisco do olho do seu irmão".

[2] Sobre a definição de mercadoria, no Direito Aduaneiro Internacional, veja-se, v.g.: TREVISAN, Rosaldo. O Imposto de Importação e o Direito Aduaneiro Internacional. São Paulo: Aduaneiras/LEX, 2017, p. 61-72; e BASALDÚA, Ricardo Xavier. Tributos al Comercio Exterior. 2ª ed. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 2016, p. 52-62.

[3] As Constituições brasileiras de 1937 (artigo 20, I, "a"), 1934 (artigo 6º, I, "a") e 1891 (artigo 9º, § 3º) igualmente se referiam a "importação de mercadorias".

[4] Além de presidir a reforma aduaneira brasileira e o comitê redator do Decreto-Lei 37/1966, e participar da equipe codificadora tributária e do anteprojeto de reforma constitucional tributária de 1965, Gerson Augusto da Silva já havia atuado como consultor da Organização dos Estados Americanos, sendo um dos impulsionadores da criação da Associação Latino-americana de Livre Comércio – ALALC (COSTA E SILVA, Oswaldo. Introdução. A vida e a obra de Gerson Augusto da Silva. In: SILVA, Gerson Augusto da. Estudos de Integração e de Harmonização Tributária. Coleção Gerson Augusto da Silva, n. 8. Brasília: ESAF, 1983, p. 18-34).

[5] Sobre as definições, em geral, e a dificuldade de uniformização terminológica internacional no Direito Aduaneiro: VALLE, Maurício Timm do; TREVISAN, Rosaldo. A "Babel" na tributação do comércio exterior: por um glossário aduaneiro. Revista Novos Estudos Jurídicos. v. 23, n. 2, 2018, p. 599-626. Disponível em: https://siaiap32.univali.br/seer/index.php/nej/article/view/13411.

[6] A Argentina, por exemplo, em seu Código Aduaneiro (Ley 22.415/1981), define "mercadoria" como "…todo objeto que fuere susceptible de ser importado o exportado" (artigo 10).

[7] O temor em utilizar a palavra "mercadorias" com acepção ampla, na legislação que rege as importações, em função do conceito restritivo disseminado nacionalmente na legislação do imposto sobre circulação de mercadorias, acabou gerando ao menos duas situações curiosas. A primeira, de ordem legal, no artigo 1º da Lei 10.865/2004, que praticamente copiou diversos artigos do Regulamento Aduaneiro de 2002 (Decreto 4.543), mas, trocou o uso da palavra "mercadoria" pela confusão entre "bens" e "produtos" no próprio nome das espécies tributárias de mesma incidência: "Artigo 1º Ficam instituídas a Contribuição para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público incidente na Importação de Produtos Estrangeiros ou Serviços — PIS/PASEP-Importação e a Contribuição Social para o Financiamento da Seguridade Social devida pelo Importador de Bens Estrangeiros ou Serviços do Exterior". A segunda, mais polêmica, resultou na Emenda Constitucional 33/2001, que passou, exclusivamente no caso de ICMS devido na importação, a substituir o termo "mercadoria" pela expressão "bem ou mercadoria", no artigo 155, § 2º, IX, "a", da Constituição Federal.

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    é doutor em Direito (UFPR), professor, assessor/consultor da Organização Mundial das Aduanas (OMA), do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI), Auditor-Fiscal da RFB, membro especialista do Carf e membro da Junta Diretiva da Academia Internacional de Direito Aduaneiro (Icla).

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