Opinião

O 'touro de ouro' da B3: entre a intervenção ilegal e o 'jeitinho brasileiro'

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30 de novembro de 2021, 9h13

No último  dia 16, a B3, a bolsa de valores brasileira, instalou com muita pompa e circunstância o polêmico "touro de ouro" em frente à sua sede, no centro histórico da cidade de São Paulo. A obra é "inspirada" na escultura Charging Bull, do artista ítalo-americano Arturo Di Modica. A remoção da escultura gerou discussões apaixonadas nos meios de comunicação e nas redes sociais, e não faltou quem considerasse a decisão da Comissão de Proteção à Paisagem Urbana (CPPU) como fruto da "inveja" de seus membros ou como um "ataque à livre iniciativa" movido por razões "ideológicas".

Essas alegações não se sustentam e são completamente infundadas por vários motivos.

Comecemos pela própria concepção e instalação da escultura Charging Bull em Nova York. A obra foi idealizada por seu autor como um presente à cidade e uma exortação de força após o colapso da bolsa nova-iorquina (New York Stock Exchange — NYSE), em 1987 [1]. Esse crash ficou conhecido como "segunda-feira negra" e foi a maior variação percentual negativa registrada em um único dia no índice Dow Jones, superando até mesmo os colapsos ocorridos durante as crises de 1929 e 2008. Nesse contexto, em um ato de arte de guerrilha, Arturo Di Modica instalou a escultura em frente ao prédio da NYSE na noite do dia 14 de dezembro de 1989 [2]. A obra atraiu a atenção e a curiosidade da população, mas no mesmo dia foi removida para um depósito público pela polícia nova-iorquina a pedido de funcionários da própria NYSE [3].

Posteriormente, foi obtida autorização temporária e a escultura foi reinstalada duas quadras ao sul da NYSE [4]. Essa autorização temporária tem sido renovada desde então. Por se tratar de bem particular exposto no viário público, a legislação local exige autorização da prefeitura de Nova York. Embora seja renovada desde 1989, essa autorização tem caráter precário e a prefeitura ainda conserva a prerrogativa de simplesmente revogá-la ou determinar a remoção para outro local. Inclusive, discute-se na cidade a possibilidade de mudança de local por questões de segurança, haja vista se tratar de local considerado vulnerável a atentados terroristas [5].

Como se percebe facilmente, até mesmo no coração do capitalismo é necessário obter autorização para expor obras de arte de particulares em via pública. No município de São Paulo não é, nem poderia ser, diferente. O requerimento para instalação do "touro de ouro" em frente à sede da B3 foi protocolado perante a subprefeitura da Sé e foi objeto de análise no Processo Administrativo nº 6056.2021/0005279-8. Por meio da Portaria nº 055/SUB-SÉ/GAB/2021, foi autorizada a instalação da escultura na rua 15 de Novembro, em frente ao prédio da bolsa de valores. No entanto, o ato era bastante claro ao exigir que o requerente deveria "obter, antecipadamente, junto a Comissão de Proteção da Paisagem Urbana – CPPU, as autorizações competentes, observando as restrições e recomendações técnicas por ela apresentadas". Contudo, o "touro de ouro" foi instalado sem prévia manifestação da CPPU. Essa foi uma das razões para a determinação de retirada e a imposição de multa [6]. No portal Gestão Urbana da Prefeitura Municipal de São Paulo é possível consultar uma cartilha da Lei Municipal nº 14.223/2006 (Lei Cidade Limpa) na qual o leitor é informado que "instalações temporárias de escultura e arte pública (inseridas em espaço público de forma isolada, com suporte próprio) necessitam de aprovação prévia da CPPU" [7].

Além desse motivo de ordem formal/procedimental, a CPPU avaliou que a ação da B3 teve caráter publicitário, visto que foi realizada em parceria com conhecido empresário e influencer do mundo financeiro que adota como slogan a frase "vai, tourinho!". Ele também se apresenta como CEO da Vai Tourinho S/A nas redes sociais. Percebe-se que, diferentemente do Charging Bull, que não tinha, nem tem, vinculação com corporação ou marca alguma e foi instalado a partir de uma intervenção artística do seu autor na paisagem nova-iorquina, os elementos publicitários preponderam no "touro de ouro" da B3, pois o intuito é promover a companhia e seus parceiros comerciais.

Ora, o artigo 39, inciso I, alínea "a", da Lei Municipal nº 14.223/2006 define como infração a conduta de exibir anúncio sem a necessária licença de anúncio indicativo ou a autorização do anúncio especial, quando for o caso. Por sua vez, o artigo 6º, inciso I, da mesma lei conceitua anúncio como "qualquer veículo de comunicação visual presente na paisagem visível do logradouro público". O mesmo dispositivo classifica os anúncios nas seguintes espécies: a) anúncio indicativo: aquele que visa apenas a identificar, no próprio local da atividade, os estabelecimentos e/ou profissionais que dele fazem uso; b) anúncio publicitário: aquele destinado à veiculação de publicidade, instalado fora do local onde se exerce a atividade; c) anúncio especial: aquele que possui características específicas, com finalidade cultural, eleitoral, educativa ou imobiliária, nos termos do disposto no artigo 19 desta lei.

Nota-se que a distinção fundamental entre o anúncio indicativo e o anúncio publicitário diz respeito ao local de instalação. Em um caso, o próprio local da atividade. No outro, qualquer local distinto desse. De certa forma, o anúncio especial pode ser considerado um anúncio instalado fora do local da atividade que não se reveste de finalidade publicitária, havendo predomínio das finalidades culturais, eleitorais, educativos ou imobiliários. O objetivo da Lei Municipal nº 14.223/2006 foi evitar a proliferação desordenada de anúncios publicitários pela cidade, na medida em que seu artigo 18 proíbe a colocação de anúncio publicitário nos imóveis públicos e privados, edificados ou não.

Na situação examinada, percebe-se que o legislador se valeu de termos conscientemente amplos, de modo que o "touro de ouro" também poderia ser enquadrado como um anúncio, pois se trata evidentemente de "veículo de comunicação visual". Em tese, o "touro de ouro" poderia ser enquadrado como anúncio especial com finalidade cultural. No entanto, o artigo 19, inciso I, da Lei Municipal nº 14.223/2006 limita as hipóteses e os termos em que esse instrumento poderá ser utilizado. Segundo o dispositivo, haverá finalidade cultural "quando for integrante de programas culturais, de apresentações de espetáculos artísticos e culturais por agremiações carnavalescas no sambódromo, de plano de embelezamento da cidade ou alusivo a data de valor histórico, não podendo sua veiculação ser superior a 30 dias, conforme decreto específico do Executivo, que definirá o projeto urbanístico próprio". O "touro de ouro" não se amolda a nenhum desses casos. Entretanto, conferindo o benefício da dúvida e considerando se tratar de situação limítrofe entre a obra de arte patrocinada e o anúncio dissimulado, a CPPU é foro apropriado para dirimir dúvidas quanto ao caráter artístico da intervenção na paisagem urbana, conforme informado na já citada cartilha da Lei Cidade Limpa [8]. No mesmo documento, consta o alerta de que "a arte pública não poderá fazer referência a marcas ou produtos comerciais".

O "touro de ouro" é um elemento visual que acompanha a carreira do parceiro da B3 no mercado financeiro há bastante tempo. É slogan, marca e nome empresarial de sociedades em que ele figura como sócio e administrador. De fato, o touro é um símbolo genérico amplamente conhecido no mercado financeiro que representa o chamado bull market, isto é, o mercado em alta [9]. Entretanto, enquanto o mundialmente famoso touro nova-iorquino tem cor bronze, o touro em frente à bolsa brasileira tem cor dourada. Essa circunstância não é irrelevante nem aleatória. O "touro de ouro" é um signo distintivo da atividade empresarial de um dos patrocinadores da escultura, símbolo que inegavelmente remete a sua pessoa e às suas atividades empresariais.

Ainda que se discorde da CPPU, a conclusão do colegiado não pode ser reputada como "absurda" ou fundada em um suposto pendor "intervencionista", "estatista" ou "comunista" (sic) de seus membros. Trata-se de interpretação legítima do texto legal e de apreciação razoável dos fatos trazidos ao exame da Administração Pública. Ademais, mesmo se não houvesse finalidade publicitária no "touro de ouro", ainda remanesceria o fato de que não houve manifestação prévia da CPPU tal como foi exigido na Portaria nº 055/SUB-SÉ/GAB/2021. A observância de regras e procedimentos impessoais é o que separa um Estado patrimonialista de um verdadeiro Estado de Direito.

Para expor escultura de propriedade particular em via pública, é comum que as normas locais exijam a obtenção de autorização do poder público. É assim em Nova York. É assim também em São Paulo. Tentar contornar a exigência sob o pretexto de que seria "mera burocracia" é uma forma de atuação mais sofisticada do velho "jeitinho brasileiro", tão criticado e censurado, que não é outra coisa senão o apela a fórmulas emocionais e sentimentais para afastar o cumprimento das regras gerais e abstratas [10]. Não podendo questionar a legalidade da decisão do CPPU, acusam-se seus membros de "inveja" e de agir com base em preferências "ideológicas" pessoais. O fato é que o "touro de ouro" foi instalado na Rua 15 de Novembro sem pronunciamento prévio do CPPU e tem evidente finalidade publicitária, o que contraria a legislação municipal. Ignorar isso é puro inconformismo político que não encontra respaldo no ordenamento jurídico-urbanístico vigente.


[1] Disponível em: https://www.phillips.com/article/37187333/arturo-di-modica-charging-bull Acesso em 28 de novembro de 2021.

[8] "Em caso de dúvida quanto ao caráter artístico da intervenção, a CPPU poderá ser consultada". Disponível em: https://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/wp-content/uploads/2016/10/Cartilha-Lei-Cidade-Limpa.pdf. Acesso em 29 de novembro de 2021.

[9] O oposto seria o "bear market", simbolizado pelo urso e que faria referência aos mercados em queda. As origens dessas expressões estariam na forma de ataque desses animais. O touro ataca "de baixo para cima". Por sua vez, o urso ataca "de cima para baixo".

[10] DAMATTA, Roberto. "O que faz o brasil, Brasil?" Rio de Janeiro: Rocco, 1989

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