Opinião

Cuidados jurídicos com a transversalidade do modelo de negócio das healthtechs

Autores

  • Juliana Oliveira Domingues

    é secretária nacional do Consumidor do Ministério da Justiça e Segurança Pública presidente do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor membro do Comitê Executivo do Consu e professora doutora de Direito Econômico da FDRP-USP com pesquisa de pós-doutorado realizada como visiting-scholar na Universidade de Georgetown (EUA).

  • Emanuele Pezati Franco de Moraes

    é professora de Direito Empresarial da Universidade Ibirapuera mestre e LLM em Direito Civil pela FDRP-USP associada fundadora do Instituto Avançado de Proteção de Dados (Ipad) associada do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (Iberc) e sócia fundadora do escritório Advocacia Especializada Pezati Parceiros.

  • Pietra Daneluzzi Quinelato

    é mestre em Direito pela FDRP-USP professora no curso de Direito das Faculdades Integradas Campos Salles coordenadora da área de Direito Digital do Mansur Murad Advogados especialista em Direito Digital e Proteção de Dados pela EBRADI e ESA-OAB-SP e LLM em Direito e Prática Empresarial pelo CEU Law School.

29 de novembro de 2021, 16h06

Com o nascimento das fintechs e do open banking [1], houve uma verdadeira revolução decorrente da economia 4.0, mesmo diante do nosso complexo sistema regulatório. Quando partimos para a área da saúde, as questões tornam-se ainda mais desafiadoras, pois o arcabouço regulatório do setor de saúde no Brasil é transversal e complexo. Nesse sentido, em um ambiente com poucos incentivos, parecia improvável o interesse dos empreendedores em inovar na área de saúde durante a pandemia.

No entanto, para surpresa de muitos, verifica-se o oposto com base nos dados recentes. Isso porque, em um momento de crise global, observaram-se os incentivos necessários para as ideias inovadoras: o número de healthtechs no Brasil aumentou! Dados apontam que as healthtechs passaram de 542 em 2020 para 945 até setembro de 2021 [2]. Vale destacar que em junho deste ano foi promulgado o Marco Regulatório das Startups e do Empreendedorismo Inovador (Lei Complementar nº 182/2021). Sem entrar no mérito sobre os artigos da lei (objeto de um estudo mais abrangente das autoras), é importante que os empreendedores observem os requisitos delineados no artigo 4° do Marco Regulatório das Startups.

A notícia vem em boa hora. Em adição, denota-se a necessidade de mais pesquisas e estudos que preencham lacunas regulatórias voltadas às melhorias que visam promover a inovação. Da mesma forma, ainda carecem estudos sobre os modelos de negócio no setor da saúde, em que pese, como anteriormente mencionado, eventos recentes terem ampliado esse espaço de discussão. É inegável a importância de healthtechs e o potencial para promoção de melhorias ao bem-estar do consumidor [3].

Da mesma forma, não podemos deixar de mencionar como a retomada dos debates no Conselho de Saúde Suplementar (Consu) pelo Ministério da Saúde e a aprovação da Resolução do Conselho de Saúde Suplementar (Consu) nº 01, de 2021 [4], também oportunizaram espaço para um salto regulatório em favor dos consumidores de planos de saúde, diante dos desafios que enfrentamos na pandemia do vírus Sars-Cov-2.

Ainda, há um espaço não desprezível e uma curva de oportunidades para o crescimento das healthtechs, tal como visto nos seminários da Singularity University Brazil (com a Novartis sobre saúde populacional: prevenção, tratamento e acesso à inovação [5]) e do Instituto Brasileiro de Concorrência e Inovação (Ibci) sobre healthcare antitrust [6].

O mundo respira novas tecnologias [7].  Logo, é importante observar a importância dos dados como ativos econômicos e o poder das novas tecnologias para preencher espaços e promover a competição com mais ofertas aos consumidores [8].

As startups no setor da saúde podem criar mais concorrência, mecanismos eficientes, mais simples e menos burocráticos, para o acesso ao sistema de saúde. A pandemia deixou claro que algumas inovações no setor de saúde foram salutares para evitar aglomerações em hospitais e clínicas, por exemplo, controlando melhor as contaminações com o Sars-Cov-2 [9].

E, diante da nossa complexidade jurídica, é muito importante que os empreendedores e investidores desses modelos de negócios disruptivos ingressem no mercado de uma forma juridicamente adequada. Não é demais reafirmar que a área da saúde é uma das mais reguladas no Brasil e envolve valores importantes para a sociedade. Temos, por exemplo, diversas autoridades que de alguma forma desempenham atuação no setor: o Ministério da Saúde, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Superintendência de Seguros Privados, os conselhos federais e regionais de classe (Medicina, Enfermagem, Psicologia etc.), a Agência Nacional de Saúde Suplementar e as diversas autoridades que atuam na proteção e defesa do consumidor no Brasil (Secretaria Nacional do Consumidor  Senacon, do Ministério da Justiça e Segurança Pública  em âmbito federal, Procons em âmbito estadual e municipal). Também é importante observar o microssistema jurídico que regula o espaço virtual dos serviços do setor da saúde baseados em software ou plataformas digitais com a incidências do Marco Civil da Internet (MCI), Lei 12.965/14, e da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), Lei 13.709/18.

As healthtechs que utilizam plataformas digitais também devem ter a sua atuação baseada como serviços de saúde, seguindo as normativas das diversas autoridades competentes, uma vez que inexiste regulamentação específica para software médico no Brasil. Presentes a assimetria informacional para o empresário e o usuário (consumidor), também é importante pensar em formas de se mitigar as falhas de mercado e externalidades negativas para os profissionais de saúde e população em geral.

Ainda que a Lei de Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019), em seu artigo 4°, tenha primado por destacar a importância do princípio constitucional da livre iniciativa [10], "excessos" regulatórios geram custos de transação aos novos modelos de negócio gerando um natural desincentivo ao empreendedorismo.

Trata-se de momento importante em que os reguladores e os agentes públicos precisam trabalhar juntos em um ambiente para a promoção da inovação de forma a não eliminar soluções inovadoras. De outro lado, os agentes privados não podem se eximir dos cuidados jurídicos e respeito ao nosso arcabouço jurídico aplicável. Portanto, para o sucesso das healthtechs, as propostas devem ser juridicamente plausíveis e analisadas de forma transversal de modo a encaixar o modelo de negócios ao enquadramento regulatório brasileiro.

Por esse motivo, chama-se a atenção para a "transversalidade regulatória" como ideal para desenhar juridicamente e adequadamente os modelos de negócio envolvendo novas tecnologias na área de saúde. Isso exige visão holística das propostas de novos modelos de negócio no mercado e suas eventuais particularidades regulatórias. É uma visão transversal que maximizará a probabilidade de êxito das medidas disruptivas das healthtechs.

 


[1] Resolução BCB nº 32, de 29 de outubro de 2020. Estabelece os requisitos técnicos e procedimentos operacionais para a implementação no País do Sistema Financeiro Aberto (Open Banking).

[2] Brasil. Jornal Valor econômico. Disponível em: <https://valor.globo.com/empresas/noticia/2021/11/01/pandemia-acelera-negocios-de-startups-na-area-da-saude.ghtml> Acesso em: 12 de novembro de 2021. No mesmo sentido vale conferir os dados da pesquisa CBInsights: https://www.cbinsights.com/research/report/healthcare-trends-q3-2021/. Acesso em: 27 de outubro de 2021.

[3] Para mais informações sobre o tema, veja 1º Fórum Intersetorial de Saúde Digital — proteção e privacidade de dados em saúde, promovido pelo Ministério da Economia e Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, com a correalização da ABIMED e do GIZ Brasil e participação de Juliana Oliveira Domingues, Celina Maria Ferro de Oliveira, Lucas Câmara, Eduardo Marques e Paula Carsalade Rabello. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=xlxT9pCZ8Dw. Acesso em 16 nov. 2021.

[4] Assim, as "[…] ações devem ser elaboradas conforme as melhores práticas regulatórias, com participação dos atores interessados: representantes de planos de saúde, de prestadores de serviços e de consumidores, estes últimos sob coordenação da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon). […] Portanto, a Resolução do Conselho de Saúde Suplementar (Cons) nº 01, de 2021 […] traz oportunidade para o aprofundar o diálogo entre todos os atores interessados e aperfeiçoara a regulação em benefício não apenas dos consumidores, mas da sustentabilidade do setor de saúde suplementar." Veja-se: DOMINGUES, Juliana O; MOECH, Frederico F. A defesa do consumidor e a Resolução do Conselho de Saúde Suplementar (Consu)  Nova Resolução traz oportunidade para aperfeiçoar o atendimento dos consumidores de planos de saúde. Disponível em: < https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/a-defesa-do-consumidor-e-a-resolucao-do-conselho-de-saude-suplementar/> Acesso em: 11 de set. 2021.

[5] Seminário realizado em 14 de julho de 2021 com a participação de Renato Garcia, André Medici, Enro Harzheim e Juliana Oliveira Domingues. Disponível em: https://cloud.e.animaeducacao.com.br/su-novartis-w4. Acesso em: 17 nov. 2021.

[6] Seminário realizado em 29 de setembro de 2021 com a participação de Eduardo Gaban, Frederic Marty, Tatiana Aranovich, Vinicius Klein e Theodosia Stavroulaki. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?app=desktop&v=fvB9nBOXYdY&feature=youtu.be. Acesso em: 17 nov. 2021.

[7] Disponível para consulta em: https://www.cbinsights.com/research/report/healthcare-trends-q3-2021/. Acesso em: 27 out. 2021.

[8] "O mercado digital maximizou a importância dos dados como ativos econômicos essenciais para garantir a entrada e a competição. Os dados pessoais tornaram-se destaque nas discussões jurídicas atualmente, considerando a nova percepção do poder da tecnologia e o fato de que há possíveis espaços não cobertos por regulação que podem permitir que empresas – e até mesmo os próprios agentes públicos – possam violar a privacidade dos cidadãos. […] Portanto, vemos a necessidade de tratar de forma interdisciplinar os assuntos. Essa análise perpassa ao movimento que observamos no mercado financeiro brasileiro, isto é, a implementação do sistema financeiro aberto ou, como é mais conhecido, o Open Banking".  DOMINGUES, Juliana O; PARAVELA, Tatyana. Migalhas de Proteção de dados. Open banking: o futuro do sistema financeiro aberto no Brasil na perspectiva do Consumidor. Disponível em< https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-protecao-de-dados/350766/open-banking-o-futuro-do-sistema-financeiro-aberto-no-brasil> Acesso em: 20 de out. de 2021.

[9] A Lei 13.989/2020, por exemplo, dispôs sobre a autorização do uso da telemedicina durante a pandemia do Sars-Cov-2, estabelecendo que caberá ao Conselho Federal de Medicina regular a sua utilização após esse período de crise sanitária emergencial. Já a Resolução 634/2020 do Conselho Federal de Enfermagem autorizou a teleconsulta de enfermagem como forma de combate à pandemia provocada pelo Sars-Cov-2 mediante consultas, esclarecimentos, encaminhamentos e orientações com uso de meios tecnológicos. 

[10] DOMINGUES, Juliana Oliveira; GABAN, SANTACRUZ, André; Eduardo Molan. Declaração de Direitos de Liberdade Econômica — Comentários à Lei 13.874/2019. São Paulo: Juspodivm, 2020.

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    professora doutora de Direito Econômico da USP (FDRP-USP). Procuradora-chefe do Cade. Ex-secretária nacional do consumidor do Ministério da Justiça e Segurança Pública (2020/2022). Ex-presidente do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor (2020/2022) e do Conselho Nacional de Combate à Pirataria (CNCP).

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    é professora de Direito Empresarial da Universidade Ibirapuera, mestre e LLM em Direito Civil pela FDRP-USP, associada fundadora do Instituto Avançado de Proteção de Dados (Ipad), associada do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (Iberc) e sócia fundadora do escritório Advocacia Especializada Pezati Parceiros.

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    é mestre em Direito pela FDRP-USP, professora no curso de Direito das Faculdades Integradas Campos Salles, coordenadora da área de Direito Digital do Mansur Murad Advogados, especialista em Direito Digital e Proteção de Dados pela EBRADI e ESA-OAB-SP e LLM em Direito e Prática Empresarial pelo CEU Law School.

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