Opinião

Nova Lei de Improbidade: atipicidade, prescrição e direito superveniente

Autor

  • Ricardo de Barros Leonel

    é mestre doutor livre docente e professor associado do Departamento de Direito Processual da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e promotor de Justiça em São Paulo.

29 de novembro de 2021, 17h05

1) Direito sancionador: doutrina e jurisprudência recente
Embora tenha abordado parcialmente o tema em outro texto [1], é imprescindível trazer considerações em complementação.

A Lei 14.230/2021, que alterou a Lei de Improbidade Administrativa (LIA — Lei 8429/92), tem suscitado discussão sobre a aplicação retroativa de normas mais benéficas (abolitio criminis ou lex mitior).

A tese da retroatividade parte do seguinte: 1) a lei benéfica opera retroativamente; 2) esta é uma projeção do Direito Sancionador; 3) cuida-se de exigência da isonomia.

O STJ ainda não se pronunciou de modo específico sobre o tema.

Em pronunciamentos anteriores, entretanto, já afirmou o STJ que: 1) a tutela da probidade administrativa se situa no campo do Direito Sancionador [2]; 2) no processo administrativo disciplinar aplica-se a retroatividade benéfica [3]; 3) há posição anterior no sentido de que "a diferença ontológica entre a sanção administrativa e a penal permite transpor com reservas o princípio da retroatividade" [4].

Por outro lado, indica a doutrina nacional que a tutela da probidade administrativa está inserida no Direito Sancionador  [5].

Falar em Direito Sancionador significa tratar do exercício do poder punitivo (ius puniendi) do Estado, que se apresenta por variadas vestes. No Direito Penal, no Administrativo Disciplinar, no Eleitoral, na legislação anticorrupção (Lei 12.846/2013) e na tutela da probidade administrativa.

Em campos específicos, pela atividade fiscalizatória do Estado, não jurisdicional, também se revela o poder sancionatório. V.g. na atuação dos Tribunais de Contas, ou quando a Administração Pública, exercendo o poder de polícia, realiza fiscalizações ambientais, trabalhistas ou sanitárias, com processos administrativos e sanções.

2) Cuidados na transposição de conceitos
A visão amplificada do Direito Sancionador tem apoio na doutrina europeia, notadamente espanhola [6]. Isso decorreu da Constituição espanhola de 1978. Tal carta possui um capítulo sobre "direitos e liberdades", com uma seção sobre "direitos fundamentais e liberdades públicas". Nesta, há o artigo 25, com três itens, cuidando em bloco e sem qualquer distinção (esse dado é de extrema relevância, como se verá adiante), dos limites ao exercício do poder punitivo estatal, ocorra ele na esfera judicial (Direito Penal propriamente dito), ou na esfera administrativa (aplicação de punições pela Administração Pública).

Daí se assentou, lá, que no Direito Penal e no Direito Administrativo Sancionador aplicam-se as mesmas garantias [7].

O conhecimento do Direito estrangeiro é inegavelmente útil. Propicia ideias, experiências, reflexões e elementos para a evolução.

É um lapso, entretanto, realizar transposição de conceitos e estruturas.

Concepções e institutos devem ser vistos e compreendidos em seu próprio contexto. Importações sem ressalvas, adaptações e ajustes funcionam como transplantes mal conduzidos: poderão levar à rejeição, pelo corpo, do novo tecido, com males maiores que os que se pretende curar [8].

Não se pode, na comparação jurídica, desconsiderar a realidade normativa nacional.

Nos sistemas estrangeiros, do qual o espanhol é um exemplo emblemático, há dois caminhos para o exercício do poder punitivo estatal. Um, é a sanção penal (aplicada pela autoridade jurisdicional). Outro é a sanção administrativa (aplicada pela autoridade administrativa). Não há terceira via. E, pela regra constitucional (espanhola), as garantias aplicáveis aos dois sistemas (judicial e administrativo) são as mesmas.

3) Realidade normativa nacional
Ao contrário da Espanha, berço da teoria do Direito Sancionador, há, aqui, uma terceira via. O Direito Sancionador, aqui, contempla o Direito Penal, o Direito Administrativo (aplicação de sanções pela autoridade administrativa) e a aplicação de sanções em juízo na moldura normativa da tutela da probidade administrativa.

Ademais, na experiência espanhola as garantias do Direito Sancionador (Administrativo e Penal) têm sua disciplina unificada na Constituição.

No Brasil existem garantias que estão na Constituição em sentido geral. É o que ocorre, por exemplo, em relação ao devido processo legal (artigo 5º, LIV), bem como o contraditório e a ampla defesa (artigo 5º, LV). Há outras que a Carta circunscreve especificamente ao Direito Penal.

É o que se dá com o artigo 5º, XXXIX (legalidade estrita, tipicidade e anterioridade, falando expressamente o dispositivo em "crime") e XL (irretroatividade, ressalvada a retroação da lei "penal" mais benéfica).

A ideia de tipicidade, legalidade estrita e irretroatividade da lei sancionatória (não penal) decorre, contudo, do artigo 37, §4º, da CF (não do artigo 5º, XXXIX e XL), que, além de conter o postulado fundamental da tutela da probidade administrativa, estipula que os seus tipos (ilícitos e sanções) serão previstos em lei, "sem prejuízo da ação penal cabível".

Disso se extrai que a disciplina específica do Direito Sancionador na tutela da probidade administrativa não se identifica completamente com a disciplina do Direito Penal. Existe uma área em que as garantias são comuns, mas existe uma outra em que há distinção. O regime do Direito Penal não se aplica automaticamente e sem reservas à tutela da probidade [9].

O quadro acima resulta de normas constitucionais originárias. Não pode ser alterado pela lei infraconstitucional.

Ademais, no cotejo entre garantias que têm diferente regime e diversos campos de aplicação (artigo 5º, XXXIX e XL, e artigo 37, §4º), não são aceitáveis soluções que não promovam sua harmonização.

Uma das regras de hermenêutica mais conhecidas diz que a lei não tem palavras inúteis. Inclusive a "lei" constitucional [10].

A correta exegese indica que a retroatividade da lei mais benéfica se circunscreve ao Direito Penal (artigo 5º, XL da CF). Não se aplica à tutela da probidade. O artigo 37, §4º, da CF não tem tal previsão.

Raciocinar com premissas do Direito estrangeiro, aqui, é desconhecer a ordem constitucional brasileira.

Permita-se a boa ironia. Veículos automotores têm a mesma função no nosso país e naqueles que adotam a chamada "mão inglesa". Contudo, há posição diferente do condutor e regras distintas quanto à mão de direção. Desconhecer esse dado não se traduz em qualquer melhora, acarretando acidentes.

Não convence, por outro lado, dizer que a retroação, na tutela da probidade, se funda na isonomia, evitando injustiças. Essa é uma forma de fraudar a aplicação da lei sem declará-la inconstitucional.

A isonomia quanto a certo regime jurídico deve ser verificada em relação ao seu tempo de incidência e àqueles (sujeitos) que, então, se submetiam a ela. Não quanto à disciplina superveniente. Comparar o que ocorreu no passado (vigência da lei anterior) com o que se verifica no presente (lei nova) é por lado a lado situações heterogêneas. Seria como cotejar água e vinho esperando que a ambos ocorram as mesmas reações químicas.

Todos que no passado incorreram em ilícitos devem ter o mesmo tratamento. Segue-se a lei vigente na época em que a conduta foi praticada.

4) Atenção aos desdobramentos
Claro que a aplicação da sanção só pode ocorrer se ela está em vigor.

Na tutela constitucional da probidade administrativa tem-se a legalidade, a tipicidade, a irretroatividade e a eficácia para o futuro (artigo 37, §4º, da CF), sem a retroatividade da lei mais benéfica.

A atipicidade superveniente objetiva (exclusão do fato ilícito) ou subjetiva (exigência de dolo em lugar da culpa) significa que eventos passados (vigência da lei anterior) não podem ser punidos (deixa de existir, para eles, previsão de sanção).

A ocorrência ou não de tais fatos é uma dúvida objetiva, para a qual é cabível a tutela declaratória.

A pretensão condenatória, apresentada nas ações de improbidade, contém (como, ademais, ocorre em qualquer demanda condenatória) o pedido de declaração (para eliminação da dúvida objetiva) e o de aplicação da sanção legal.

A lei nova mais benéfica torna inviável a aplicação da sanção, que deixou de existir ao tempo do julgamento. Mas não elimina o interesse no pronunciamento judicial declaratório, para o alcance de certeza quanto à dúvida trazida na inicial.

A atipicidade superveniente, na improbidade, não é razão para sentença de improcedência, mas, sim, para pronunciamento declaratório.

Confirmada a ocorrência dos fatos, deve haver sentença de parcial procedência (declaração de que os atos de improbidade ocorreram e são reconhecidos no julgamento, sem aplicação da sanção, que deixou ser prevista para aquela situação).

E por que não a extinção do processo sem exame do mérito? Existe interesse na sentença declaratória? Qual o sentido da declaração sem sanção?

O interesse de agir (utilidade do provimento declaratório) reside na certeza (eliminação da dúvida objetiva), com consequências importantes.

Note-se: a sentença de improcedência por atipicidade superveniente, além de se pautar (erroneamente) na aplicação retroativa da "lei penal" mais benéfica (em caso que de lei penal não trata), se traduzirá em certificação da legalidade de conduta de agente público (que na verdade era ilegal).

O agente beneficiado com a improcedência, punido administrativamente com a perda do cargo em processo disciplinar (prática de falta funcional tipificada como improbidade), pleiteará e alcançará reintegração no cargo, com recebimento de "atrasados" do período em que esteve desvinculado do serviço público.

Duplo benefício. Primeiro, ao não ser punido. Segundo, ao ser reintegrado e receber "pagamentos" sem ter trabalhado.

Tal resultado contraria o senso comum, até mesmo num país como o nosso, em que as incongruências são tantas que, por vezes, parecem não mais enrubescer as faces daqueles que as protagonizam.

5) Prescrição retroativa intercorrente
No caso do novo regime da prescrição, a pretensa possibilidade de sua aplicação retroativa parte de premissas insustentáveis.

A nova lei estipula um novo regime, com prescrição em oito anos contados da data do fato. Há interrupções por força da propositura da demanda e de decisões condenatórias ou confirmatórias de condenação em instâncias inferiores. Além disso, uma vez interrompido o prazo se reduz para quatro anos, aplicável entre os marcos interruptivos (artigo 23 e §§ da LIA, redução Lei 14.230).

Prescrição é a perda da exigibilidade do direito, que nasceu com a sua violação. Além disso, a prescrição intercorrente, nada obstante o aspecto de Direito material acima referido, tem sentido processual. Sua aplicação se deve à desídia, negligência, inércia injustificável, de quem pode agir, mas não o faz para promover a tutela ao direito.

Aplicar retroativamente o novo regime é penalizar o autor que não incorreu em omissão ou inércia: sua conduta processual foi conforme ao regime que antes vigorava. E ainda que fosse possível a retroação (apenas por apego ao argumento), não seria ela automática. Seria necessário identificar desídia na condução do processo pelo autor.

O novo regime prescricional (que gera dúvidas no plano da constitucionalidade, embora não haja espaço, neste momento, para abordá-las) só pode ser aplicado para situações futuras, já sob a vigência da nova lei.

6) Conclusão
A alteração legislativa é recente e merece mais tempo de reflexão.

Não se pode, contudo, partir de premissas distintas do cenário do ordenamento brasileiro na exegese do novo sistema. Como se este tivesse sido criado num ambiente em que a moldura constitucional não fosse a nossa, mas, sim, a de outro país.

Também é importante que aqueles que se propunham a interpretar as novas disposições, e a aplicá-las, tenham a exata dimensão das consequências da sua opção hermenêutica.

É necessário destacar que a premissa equivocada da aplicação retroativa, que traz como resultado a absolvição, induzirá a desdobramentos também no plano administrativo (o exemplo que chama a atenção é o da reintegração de autores de atos ilícitos ao serviço público, com o recebimento de "pagamentos atrasados").

A visão consequencial não deve ser, por si só, o fundamento para a decisão. Mas, ao decidir, é imperativo que se tenha noção sobre como a opção hermenêutica interferirá na realidade subjacente.

 


[1] Texto publicado em 17.11.2021 neste periódico.

[2] Nesse sentido, v.g., no STJ: AgInt em REsp 798.081-RJ, relator ministro Napoleão Nunes Maia Filho, j. 1º.12.2020; AgInt em REsp, relator ministro Assusete Magalhães, j. 16.08.2021; EREsp 1.496.347/ES, Rel. p/ acórdão Benedito Gonçalves, DJe de 28/04/2021; AgInt nos EDcl no REsp 1910104 /DF, relator ministro Benedito Gonçalves, j. 06.09.2021; AgInt nos EDiv em REsp 1761937/SP, relator ministro Mauro Campbell, j. 19.10.2021; REsp 1.941.236/ES, relator ministro Herman Benjamin, j. 24.08.2021.

[3] Nesse sentido, v.g., no STJ: AgInt no REsp 65.486/RO, relator ministro Mauro Campbell Marques, j. 17.08, 2021; RMS 37.031/SP, relator ministro Regina Helena Costa, j. 08.02.2018.

[4] Cfr. RMS 33.484/RS, relator ministro Herman Benjamin, j. 11.06.2013.

[5] V. o abrangente apanhado de José Roberto Pimenta Oliveira e Dinorá Adealide Musetti Grotti "Direito administrativo sancionador brasileiro: breve evolução, identidade, abrangência e funcionalidades", "in" Interesse público, ano 22, n. 120, mar./abr. 2020, p. 83-126.

[6] Cf. Fábio Medina Osório (Direito administrativo sancionador, São Paulo, RT, 2000, p. 105-109), anotando a crítica lá existente, no sentido de que "a unidade da pretensão punitiva é uma frágil construção teórica, que se situa no campo retórico e não no mundo prático das concretas relações sociais".

[7] Eduardo Garcia de Enterría e Tomás-Ramón Fernandez (Curso de derecho administrativo, II, 10ªed., Thomsom-Civitas, 2006, p. 176), afirmando a construção doutrinária e jurisprudencial a partir da unidade normativa das garantias (artigo 25 da Const. Espanhola), enfatizando, entretanto, que a aplicação das garantias "debe hacerse, dice esa jurisprudencia, ‘com matices'", ou seja, com adaptações, e não de forma automática. Eduardo Enterría enfrenta o tema à luz de importantes precedentes do Tribunal Constitucional da Espanha em outro trabalho (La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional, 4ª ed., Thomson-Civitas, 2006, p. 257-273).

[8] Cf. José Rogério Cruz e Tucci (Direito processual civil: entre comparação e harmonização, Salvador, Juspodium, 2021, p. 13), é preciso "o estudo do direito pela metodologia da comparação não implica, por certo, a importação acrítica e anacrônica de institutos estrangeiros para o direito brasileiro!".

[9] Lembra Fábio Medina Osório, mutatis mutandis (Opus citatum, p. 278), que "se o próprio legislador prevê a irretroatividade da norma administrativa mais favorável, resulta inviável reconhecer sua irretroatividade, pois a igualdade não opera abstratamente, ao arrepio dos critérios legais". Sarah-Merçon Vargas (Teoria do processo judicial punitivo não penal, Salvador, Juspodium, 2018, p. 108-109), ressalta, com apoio na doutrina e na jurisprudência do Tribunal Cosntitucional espanhol, que "a recepção dos princípios de ordem penal pelo Direito Administrativo Sancionador não pode ser feita mecanicamente, sem adaptações e consideração dos aspectos que diferenciam ambos os setores do ordenamento jurídico".

[10] Carlos Maximiliano (Hermenêutica e aplicação do direito, 18ª ed., Rio de Janeiro, 1999, p. 81), por isso, compara o juiz a um violinista, que interpreta e da vida à partitura, sem poder alterá-la.

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    é mestre, doutor, livre docente e professor associado do Departamento de Direito Processual da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e promotor de Justiça em São Paulo.

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