Opinião

Uma crítica fundamentada à proposta de regulação centralizada das criptomoedas

Autor

  • Fernando Lopes

    é advogado membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico consultor jurídico do projeto Cyberskies e professor da pós-graduação em Investimentos e Blockchain da EA Banking School.

28 de novembro de 2021, 13h13

Introdução
O deputado Áureo Ribeiro, autor de projeto de lei [1] que visa a regulamentar o mercado de criptoativos, afirmou que sua iniciativa irá "atrair mais investidores internacionais ao país".

Todavia, o parlamentar ignora que a ausência predominante de regulação desse mercado no âmbito internacional se deve à falta de consenso sobre a própria possibilidade epistemológica de se regulamentar um mercado que foi originalmente pensado para ser autorregulado.

Além disso, não apenas o deputado, mas a maioria da população desconhece que o atual modelo regulatório estatal está em crise, sendo considerado por autores como Gunther Teubner e Jurgen Habermas [2], por exemplo, inapropriado para regular, inclusive, os mercados já existentes, como o financeiro.

Não custa lembrar, a propósito, que o bitcoin surge no auge da crise econômica de 2008, crise essa gerada pela ineficiência do modelo regulatório do Estado, entre outros fatores.

Mas, se esse déficit epistemológico já não fosse suficiente, o projeto tem como seu principal fundamento sugestão da Febraban, que, como é de conhecimento público, não tem qualquer interesse no sucesso do mercado de criptoativos.

Com efeito, o mercado de criptoativos foi criado para eliminação dos intermediários financeiros, sendo a Febraban órgão representante desses intermediários!

Vejamos a proposta da Febraban: "Determinamos que a prestação de serviços de ativos virtuais deve observar diretrizes segundo parâmetros a serem estabelecidos pelo órgão regulador, conforme sugerido por vários participantes do mercado, inclusive a Federação Brasileira de Bancos (Febraban)".

Ao ler o trecho acima, a pergunta retórica que não quer calar é a seguinte: qual órgão regulador? Não há, por certo, qualquer órgão regulador para o mercado de criptoativos. De fato, é óbvio que pela expressão "órgão regulador" a Febraban significa duas autarquias submetidas a regime especial, isto é: o Banco Central e a Comissão de Valores Mobiliários.

O curioso é que, contrariamente aos interesses da Febraban, tanto o Banco Central quanto a CVM têm se recusado a regulamentar o mercado de criptoativos, visto possuírem conhecimento de que tal incumbência não lhes é reservada. Com efeito, esses órgãos foram criados para propósitos muito específicos: regulação do mercado financeiro, no caso do Banco Central, e do mercado de valores mobiliários, no caso da CVM.

Portanto, caso um criptoativo seja utilizado para representar um ativo financeiro ou valor mobiliário, ter-se-á, independentemente de nova lei, a incidência das normas já aplicáveis aos respectivos mercados.

Nesse sentido, ao não diferenciar o conceito de criptoativo do conceito de ativo financeiro ou de valor mobiliário, o projeto traz apenas mais insegurança para investidores e empreendedores.

E se isso já não bastasse, pretende-se utilizar um conceito de significado desconhecido como elemento objetivo de novos tipos penais, atentando-se contra fundamentos constitucionais basilares, que se expressam, por exemplo, no princípio da taxatividade.

1) Um projeto que diz regulamentar, mas que não regulamenta absolutamente nada
Assim como o projeto apresentado pelo deputado federal Alexandre Frota, o projeto do deputado Áureo Ribeiro não regulamenta absolutamente nada, mas apenas atribui competências exóticas para a CVM e para o Banco Central, órgãos que não foram criados para regulamentação do mercado de criptoativos.

Nesse sentido este trecho do projeto: "Outro ponto relevante da norma é não invadir o espaço organizacional do Poder Executivo, deixando a este a definição de qual será o órgão ou entidade da Administração Pública Federal com competência para regular o mercado dos ativos virtuais e dos seus prestadores de serviços".

Ora, como não há atualmente qualquer órgão do Poder Executivo com competência para regular o mercado de criptoativos, máxime o fato de que sequer há consenso sobre o significado desse conceito, o projeto de lei do deputado Áureo Ribeiro se resume a determinar que o Banco Central e a CVM regulamentem o mercado de criptoativos, tal como já sugerido pelo deputado Alexandre Frota, conforme afirmado alhures, ignorando-se que a criação desses órgãos tem justificativa bem delineada em lei.

Tanto isso é verdade que a sugestão do deputado Alexandre Frota é expressamente reconhecida no projeto do deputado Áureo Ribeiro: "E como forma de minimizar os riscos de arbitragem regulatória, caracterizada pela prática do agente tentar encontrar a norma que lhe cause menos custos de observância das regras ou custos tributários, proporcionamos ao regulamento a possibilidade de determinar as hipóteses em que as atividades ou operações caracterizadoras de prestação de serviços de ativos virtuais serão incluídas no mercado de câmbio ou em que deverão se submeter à regulamentação de capitais brasileiros no exterior e capitais estrangeiros no país. Tudo isso em linha com o contido no PL nº 2.140, de 2021, de autoria do Deputado Alexandre Frota".

Ademais, tais órgãos não possuem estrutura técnica para regulação de bens ou direitos não enquadrados como ativos financeiros ou valores mobiliários. Os funcionários públicos desses órgãos são muito bem treinados acerca do funcionamento do mercado financeiro e do mercado de capitais, o que já é muito, sendo absurdo exigir ainda que entendam de um mercado de índole não estatal, como o mercado de criptoativos.

Uma vez considerado que o mercado de criptoativos transcende em muito o próprio conceito de criptoativos, tratando-se de inovação tecnológica sem precedentes na história da humanidade, a aprovação desse projeto, tal como está, coloca em risco o desenvolvimento econômico e tecnológico do Brasil, em um momento no qual a 4ª revolução industrial surge para alterar a hegemonia dos Estados nacionais.

2) O inespecífico conceito de criptoativos e a tentativa de positivar a insegurança
Ao propor projeto de lei sobre tema tão inespecífico, contribui o já referido deputado para positivação da insegurança jurídica, o que, além de afastar investidores do Brasil, estagnará o empreendedorismo em novo âmbito tecnológico. Isso porque o significado do conceito de criptoativo possui características que o professor de Oxford Frederick Schauer denomina como atributos da inespecificidade [3].

Tecnicamente, a positivação de um conceito tão inespecífico como o de criptoativos aumentará sobremaneira a insegurança jurídica, mediante a propagação de inúmeros casos de sobreinclusão ou subinclusão normativa [4].

Para piorar, o projeto manifestamente adota como critério de definição de criptoativos o ontológico, invés do funcional, fazendo com que sejam incluídos no conceito de criptoativos ativos digitais, que sequer possuem a qualidade da descentralização, isto é: a possibilidade de negociação por meio da internet sem uso de intermediários, característica fundamental do conceito de criptoativos.

Assim, por exemplo, o artigo 3º do respectivo projeto de lei: "Artigo 3º — Para os efeitos desta lei, considera-se ativo virtual a representação digital de valor que pode ser negociada ou transferida por meios eletrônicos e utilizada para realização de pagamentos ou com propósito de investimento, não incluídos (…)".

Ora, há décadas existem "ativos virtuais representativos de valores" sendo negociados e transferidos por meios eletrônicos, que não se enquadram no conceito de criptoativos, mas que poderão ser classificados como se o fossem (sobreinclusão normativa), uma vez aprovado o projeto, o que não se espera.

Diversamente do mencionado no projeto em comento, o que caracteriza um bem como criptoativo não é o fato de representar valores e de poder ser negociado por meios eletrônicos, mas o fato de poder ser negociado por meios eletrônicos sem a existência de intermediários, o que é muito diferente.

Tanto que Satoshi Nakamoto, ao criar o primeiro e mais importante criptoativo, ou seja, o bitcoin, deixou bem claro que os principais benefícios de sua criação seriam perdidos, caso fosse necessário o uso de intermediários para, por exemplo, resolver o problema do gasto duplo.

Ou seja, tudo se resume na possibilidade de negociação de ativos digitais representativos de valor por meio da internet, mas sem o uso de intermediários.

Em outros termos, ativos digitais que não podem ser transferidos pela internet sem o uso de intermediários não são criptoativos e não deveriam estar disciplinados em projeto de lei que visa disciplinar criptoativos!

Por isso que, no âmbito internaciona,l é altamente controversa a possibilidade de criação de normas regulatórias para o mercado de criptoativos, pelo menos no contexto da atual epistemologia regulatória, de natureza centralizada.

3) O projeto já nasce defasado
Após uma leitura atenta do projeto e tendo por base as considerações acima, verifica-se que o deputado Áureo Ribeiro não pretende, de fato, regular o mercado de criptoativos, mas a intermediação criada artificialmente para este mercado, em especial, pelas chamadas corretoras centralizadas, que atuam como custodiantes de chaves privadas.

O problema é que sob o pretexto de regular a atividade desses "custodiantes de chaves privadas", o projeto traz insegurança para o verdadeiro mercado de criptoativos, caracterizado pela atuação de automated market makers, pelo uso de atomic swaps, pela tokenização de bens móveis ou imóveis (cryptoproperties).

Lamentavelmente, a ânsia na satisfação de interesses menores, como os da Febraban, contribuirá para atrasar ainda mais o desenvolvimento social da população brasileira em época em que se demandam iniciativas capazes de promover o empreendedorismo, a educação tecnológica, o trabalho e a liberdade.

Portanto, antes de elaboração de projetos de lei sobre complexo tema, máxime é a rediscussão e a reformulação do atual modelo regulatório de natureza centralizada, em prol da criação de mecanismos que privilegiem a autorregulação descentralizada, na linha do defendido, por exemplo, por autores como Gunther Teubner.


[2] Para uma síntese da discussão regulatória vide o seguinte artigo da professora Julia Black: https://academic.oup.com/ojls/article-abstract/20/4/597/1595163?redirectedFrom=fulltext

[3] Cf. SCHAUER, Frederick. Playing by the Rules: A Philosophical Examination of Ruled-Based Decision-Making and Law and in Life. Oxford: Clarendon Press, 1991.

[4] Para uma análise da obra de Schauer cf. STRUCHINER, Noel. Para falar de regras: o positivismo conceitual como cenário para uma investigação filosófica acerca dos casos difíceis do direito. Orientador: Danilo Marcondes de Souza Filho. Rio de Janeiro : PUC-Rio, Departamento de Filosofia, 2005.

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    é advogado, professor de tecnologia blockchain e finanças descentralizadas na pós-graduação da EA Banking School, associado fundador do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico e autor e co-autor de livros sobre Direito e tecnologia.

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