Embargos culturais

Apontamentos sobre Luis Martins, o patriarca e o bacharel

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

28 de novembro de 2021, 8h00

Luis Martins (1907-1981) destacou-se como jornalista e romancista. Publicou intensamente no Estado de São Paulo. Deixou-nos um livro fundamental para a compreensão da mentalidade bacharelesca brasileira, "O Patriarca e o Bacharel". Editado pela Alameda, o livro conta com prefácio de Gilberto Freyre e apresentação de Sergio Milliet. Introdução melhor não há.

Spacca
O autor explorou as ambiguidades que os bacharéis viveram na transição do Império para a República. É um livro de um certo modo freudiano. Martins problematiza o remorso vivido por alguns republicanos, que vinham de famílias bem posicionadas no Império. Explica, no início, a opção metodológica que tomou.

Luis Martins tem como núcleo da narrativa a trajetória de bacharéis que viveram espremidos entre os dois regimes. Joaquim Nabuco (1849-1910) bem ilustra esse paradigma. Uma figura contraditória. É o retrato mais bem acabado da cultura brasileira da segunda metade do século 19, proscênio de patriarcas e bacharéis, marcados por um remorso incurável que os atingia desde o ocaso do Imperador, que deixou o país num vapor noturno, como se fosse um escravo fujão, nas próprias palavras de Sua Majestade.

Era um tempo de escolhas inconciliáveis. Na organização do Estado, Império ou República? Na formulação econômica, agricultura ou indústria? Na literatura, romantismo ou realismo? Na filosofia, o positivismo francês ou o idealismo alemão? Na política, conservadorismo ou liberalismo? Na fixação do regime de trabalho, escravos ou proletários? Na parceria, Inglaterra ou Estados Unidos?

Nabuco foi um monarquista que lutou contra a escravidão, instituição que era um dos esteios da Monarquia; um revolucionário cuja medida da rebeldia era o gesto sublime da conciliação; um admirador de uma Inglaterra ordeira que teimava em se reproduzir em algumas fórmulas norte-americanas; jornalista na Inglaterra e embaixador nos Estados Unidos; filho devoto cuja devoção substancializou-se no abre-te-sésamo de fulgurante carreira política; historiador, publicista, memorialista e diplomata, Joaquim Nabuco é a síntese das tensões que marcaram a passagem da Monarquia para a República. Era amigo de Machado de Assis, com quem trocou cartas.

Afonso Celso de Assis Figueiredo, o Visconde de Ouro Preto (1836-1912), também simboliza essa ambiguidade. Tornou-se monarquista, ao tempo em que todos se tornavam republicanos. Machado de Assis, que tudo viveu, capturou essa ambiguidade nos conflitos entre Pedro e Paulo, personagens centrais de "Esaú e Jacó".

Foi esse tempo contraditório que Luis Martins engatou em "O Patriarca e o Bacharel". Explorou a decadência do patriarcado rural, que enviava os filhos para São Paulo e Recife, onde estudavam Direito e de onde voltavam absolutamente transformados. Alguns, abolicionistas, questionavam a fortuna da família. Ao mesmo tempo, paradoxal, é dessa fortuna que bancavam idas para a Europa; Paris era o sonho do jovem liberal brasileiro. Outros, republicanos, questionavam os fundamentos do poder dos pais.

Há uma inconciliável antinomia entre o velho fazendeiro que "formara o espírito na árdua luta contra a terra, auxiliado pelo braço escravo" e o moço, que "quase não tivera contato com a terra, a não ser na infância solta e livre, onde exercitara passageiramente o sadismo hereditário no lombo infeliz dos molecotes e a libido incipiente nas formas robustas e luzidas das Vênus negras das senzalas". Não me censurem, a expressão é tomada do autor.

O jovem liberal tornado abolicionista e republicano, opondo-se ao pai, conservador, escravocrata e monarquista, migrou para a política, carregando seu canudo de bacharel. O Imperador passa a representar a alegoria paternal, simbolizando um ódio filial, que era coletivo, e também geracional. Tem-se um ponto de partida para uma interpretação psicanalítica do bacharelismo brasileiro da virada do século. Os bacharéis republicanos que liquidaram o pai, nessa leitura, veem-se como pecadores arrependidos. É a teoria do remorso, aplicada à história republicana brasileira. Uma tentativa de explicação freudiana para os dilemas brasileiros. Parece-me uma tentativa exagerada.

Luis Martins, nesse interessante livro, não quer os fatos. O autor busca uma explicação dos fatos. O orgulho autocrático da velha geração cedeu ao ímpeto dos novíssimos. A percepção nacional de D. Pedro II parece refém desse conflito. Há dois perfis (desencontrados) de nosso Imperador. Para os monarquistas, "era bom, liberal, erudito, inteligente, grave, honesto, tolerante e sábio". Para os republicanos históricos "teria sido mau, mesquinho, medíocre, invejoso, pérfido, grotesco, tirânico". O imperador torna-se um problema historiográfico. Qual deles prevalece? Ou será que cada época tem seu D. Pedro II?

A tensão identifica um conflito permanente entre saudosistas e reformistas. Aqueles primeiros, penso, encontram-se desambientados com os tempos presentes. Estes últimos, acho, são desambientados com os tempos passados. O recorrente inconformismo da natureza humana é o pano de fundo desse livro indispensável para aqueles para quem a análise dos fatos é uma tentativa de compreensão. Trata-se de um livro importante para quem nos incomodamos com a arrogância e a prepotência bacharelesca. Essa leitura deve ser complementada com "Aprendizes do Poder", de Sérgio Adorno, que comentarei em breve.

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