Opinião

A indispensabilidade do exercício da advocacia para o ingresso na magistratura

Autor

  • Fernando Mil Homens Moreira

    é advogado doutor em Direito Processual Civil pela Universidade de São Paulo (USP) pesquisador visitante na Harvard University e na Yale University pós-graduado em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito da Università degli Studi di Milano (Statale) graduado em Direito pela USP e ex-assessor de ministro do STJ de ministro do STF e da Presidência do STF.

27 de novembro de 2021, 11h11

Desde a Emenda Constitucional 45/2004, o inciso I do artigo 93 da CF prevê que o concurso para o ingresso na magistratura de primeiro grau de jurisdição terá a participação da OAB em todas as fases, sendo requisito indispensável a quem se candidatar 1) ser "bacharel em Direito"; e 2) comprovar ter, no mínimo, "três anos de atividade jurídica".

Já o artigo 94 da CF estabelece que 10% dos desembargadores dos Tribunais Regionais Federais, dos tribunais dos estados e do Distrito Federal devem ingressar na magistratura mediante criteriosa seleção [1] pública a ser realizado pela OAB entre os advogados que comprovem preencher os requisitos objetivos [2]  "de notório saber jurídico e de reputação ilibada, com mais de dez anos de efetiva atividade profissional"; regra análoga que é aplicada também para os integrantes do Ministério Público em relação aos outros 10% das referidas vagas.

Como já se pode perceber, enquanto o artigo 93 da CF prevê como requisito para ingresso no primeiro grau da magistratura só "três anos de atividade jurídica", o artigo seguinte da CF exige também para o ingresso na magistratura, de segundo grau, que os advogados tenham "mais de dez anos de efetiva atividade profissional", isto é, mais de dez anos de efetivo exercício da advocacia. Nos parece que há uma incongruência no texto constitucional ao tratar do requisito da experiência profissional para o ingresso na magistratura, especialmente porque o artigo 133 da CF prevê que "o advogado é indispensável à administração da justiça", ou seja que a advocacia é essencial à função jurisdicional do Estado.

Isso porque, primeiro, "atividade jurídica", prevista no inciso I do artigo 93 da CF, não é sinônimo de "exercício da advocacia", previsto no caput do artigo 94 da CF, como, assim, por exemplo, afirma José Afonso da Silva: "Essa questão provém da redação dada ao inciso I (do artigo 93 da CF) pela Emenda Constitucional45/2004, que, ao falar em 'bacharel em Direito' e em 'atividade jurídica', mostra que outros profissionais, que não advogados, podem inscrever-se no concurso para ingresso na Magistratura, desde que sejam bacharéis em Direito e exerçam atividade jurídica por um período mínimo de três anos: promotores de justiça, delegados de polícia, escrivães judiciais, notários, registradores públicos" [3]. Aliás, no STF há o entendimento de que a referida "atividade jurídica" pode, até mesmo, ser a exercida "em cargo não-privativo de bacharel em Direito, desde que, ausentes dúvidas acerca da natureza eminentemente jurídica das funções desempenhadas" (Pleno, MS 27.604, relator ministro Ayres Britto, DJe 9/2/2011).

A esse respeito, embora a redação original da PEC 96-A/1992, que viria a se tornar a atual EC 45/2004, não previsse o requisito da "atividade jurídica" para o ingresso na magistratura, durante a longa tramitação dessa proposição ela recebeu diversos substitutivos, tais como o do deputado Neuton Lima, pelo qual o inciso I do artigo 93 da CF passaria a exigir para o ingresso na magistratura de primeiro grau a prévia "experiência forense de cinco anos" [4] e igualmente, entre outras, a proposição do deputado José Antonio, segundo a qual o referido requisito seria de "no mínimo, cinco anos de exercício da advocacia" [5], tendo a relatora da PEC 96-A/1992, a deputada Zulaiê Cobra, ao discorrer sobre as medidas para "aprimoramento da magistratura", acolhida em parte a "inovação […] sugerida pelo Deputado Neuton Lima", justificando, para tanto, que "o despreparo dos juízes iniciantes é um fato hoje facilmente constatado e decorrente da proliferação desordenada de faculdades de direito por todo o País" [6] e, por isso, incluído no substitutivo por ela apresentado, na redação do inciso I do artigo 93 da CF, o requisito de "três anos de atividade privativa de bacharel em direito" [7] para o ingresso na magistratura, redação que viria depois a ser novamente alterada até a aprovação do texto da atual EC 45/2004, para ficar tal qual como é hoje.

Passados quase 20 anos da vigência da EC 45/2004, é de se questionar se realmente a exigência, prevista no inciso I do artigo 93 da CF, de "três anos de atividade jurídica" para o ingresso na magistratura de primeiro grau foi suficiente para o "aprimoramento da magistratura"; ou se, talvez, seja necessário discutir se deve passar a ser exigido para o ingresso na magistratura de primeiro grau "mais de dez anos de efetiva atividade profissional", seja na advocacia, seja na promotoria, tal como assim exige o artigo 94 da CF para o ingresso na magistratura de segundo grau. Será que nessas quase duas décadas o alegado "despreparo dos juízes iniciantes", no dizer da deputado Zulaiê Cobra, diminuiu, se manteve igual ou aumentou? Será que nesse período acabou ou aumentou a "proliferação desordenada de faculdades de Direito por todo o país"?

Sobre as variações qualitativas do preparo dos juízes iniciantes desde a vigência da EC 45/2004, até hoje se desconhece qualquer estudo a respeito, mas seria salutar para o "aprimoramento da magistratura" se o Departamento de Pesquisas Judiciárias do CNJ ou a própria Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados fizessem ou divulgassem algum estudo nesse sentido.

Todavia, quanto à "proliferação desordenada de faculdades de Direito por todo o país", segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), autarquia federal vinculada ao Ministério da Educação, quando a deputada Zulaiê Cobra fez a referida afirmação, em 1999, havia 362 cursos de graduação em Direito no país [8]; em 2004 esse número saltou para 790 [9]; e em 2019, último ano no qual esses dados foram publicados pelo Inep [10], havia 1.568 cursos de graduação em Direito no Brasil. Aliás, esse crescimento vertiginoso dos cursos de Direito no Brasil levou o então presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Marcus Vinicius Furtado Coêlho, a afirmar em 2014 que no Brasil "temos mais faculdades de Direito do que o resto do mundo juntos" [11], sendo que "no máximo 400 são de boa qualidade" [12], classificando essa situação como um "quadro de estelionato educacional" [13]; o que torna insustentável o argumento de que o atual exame de Ordem seria desnecessário e, até mesmo, justifica a instituição de um subsequente exame ou comprovação de qualificação adicional para se advogar nos tribunais superiores, a exemplo do que já existe, por exemplo, nos Estados Unidos, para se advogar na Suprema Corte [14]; no Reino Unido, onde se exige que os advogados (solicitors) se qualifiquem como barristers para advogarem nos tribunais [15]; e na Itália, onde só se pode ser um avvocato cassazionista, ou seja, habilitado a advogar nos tribunais superiores: 1) após cinco anos de comprovada prática da advocacia e aprovação num exame específico; ou 2) após oito anos de comprovada prática da advocacia e profícua frequência à Scuola Superiore dell'Avvocatura [16].

Por isso, com o devido respeito a quem pensa em sentido contrário, mas não parece consentâneo com o objetivo de "aprimoramento da magistratura"meros "três anos de atividade jurídica", que, repita-se, segundo o STF, poderiam até mesmo absurdamente serem exercidos por não bacharéis em Direito.

Isso porque, como uma das justificativas para aprovação da EC 45/2004 para alterar o inciso I do artigo 93 da CF foi o "aprimoramento da magistratura", não parece crível que meros "três anos de atividade jurídica" e, até mesmo, exercidos por não bacharéis em Direito, sejam tempo suficiente para se atingir o referido objetivo, especialmente porque uma das causas para o alegado "despreparo dos juízes iniciantes", isto é, a "proliferação desordenada de faculdades de Direito por todo o país", cresceu em progressão geométrica desde então; o que torna muito improvável que esse contínuo crescimento exponencial da "proliferação desordenada de faculdades de Direito por todo o país" tenha causado o efeito logicamente inverso de aumentar o nível de preparo dos juízes iniciantes desde 2004 para cá.

Realmente, uma interpretação sistemática dos artigos 94, 129, 133 e 134 da CF e diante da "proliferação desordenada de faculdades de Direito por todo o país" nos últimos 20 anos, desacompanhada da indispensável boa qualidade do ensino pela grande maioria dessas faculdades, leva a crer que é o efetivo exercício da advocacia por mais de dez anos ou o mesmo prazo como promotor de Justiça que podem conferir vivência e experiência profissionais mínimas a um melhor exercício da judicatura pelos juízes iniciantes na carreira, munus que exige a grave responsabilidade de alterar o destino e a vida das outras pessoas a cobrar, por isso, o melhor preparo possível de quem desempenha essa função.

Por isso, talvez seja necessário resgatar o Zeitgeist da tramitação da EC 45/2004 quanto ao objetivo do "aprimoramento da magistratura" e alterar o inciso I do artigo 93 da CF, para que fique sistematicamente harmônico com os artigos 94, 129, 133 e 134 da Carta.

Daí porque é de se louvar a iniciativa do deputado Fabio Trad, ao apresentar a PEC 25/2011, que tramita na CCJ, que "dá nova redação ao inciso I, do artigo 93, e ao §3º, do artigo 129, ambos da Constituição Federal, para exigir dos candidatos ao ingresso na magistratura e promotoria de justiça cinco anos de efetiva prática forense" [17].

Todavia, sugere-se ao deputado, com o devido respeito, refletir se não seria melhor para o "aprimoramento da magistratura" que a nova redação do inciso I do artigo 93 da CF passe a exigir "mais de dez anos de efetiva atividade profissional" (vide artigo 94 da CF), isto é, de comprovado exercício da advocacia por mais de dez anos.

 


[1] A esse respeito, concordamos integralmente com o eminente doutor Duílio Piato Júnior, de que se não trata de uma eleição, mas de uma criteriosa seleção: "Em primeiro, discordo que seja caso de ELEIÇÃO à lista sêxtupla, como bradam alguns, inclusive querendo que sejam feitas eleições diretas e outros. Entendo tratar-se de um momento de SELEÇÃO. É o momento onde a Classe deve SELECIONAR os nomes dentro de seus quadros, analisando os critérios necessários: 1) Se a advogado possui conhecimento jurídico; 2) Se a reputação é ilibada; 3) Se tem aptidão para a função publica, não busca simplesmente um emprego, por estar frustrado na sua carreira como advogado; 4) Se já prestou serviços a classe dentro da estrutura da OAB, em qualquer um de seus seguimentos; 5) Se defenderá as prerrogativas dos Advogados quanto estiver dentro do Poder Judiciário, mostrando que tem compromisso com a Classe; 6) e, se tem compromisso com a Classe dos Advogados. Entendo ser impossível admitir na lista sêxtupla pessoa (advogado (a)) que jamais dedicou uma hora de seu tempo a favor da Classe, seja em cargo eletivo ou nas Comissões da OAB. […]. Neste sentido, o Quinto Constitucional não é caso de eleição, mas o momento de selecionar um Advogado, ou advogada, que vai oxigenar a mentalidade do Poder Judiciário com os conhecimentos das dificuldades da Advocacia, que é quem sente as necessidades da população, dos Advogados, e é quem intermedia os direitos do Cidadão e o Poder Público. Além da pessoa selecionada ter prestado serviços para a OAB temos que ter certeza que ela não busca apenas uma segurança financeira, com a intenção de se colocar e ter um salário.
[…] A Seleção de Advogados para participarem da lista sêxtupla tem que ser pontuada em critérios objetivos. Não apenas em amizades e interesses de grupos, autoridades e pessoas. Parentes de Diretores da Ordem e do Alto Escalão do Poder Judiciário devem ser vetados de plano. A ordem não pode servir de trampolim para este tipo de ascensão meteórica de irmãos, filhos ou sobrinhos." (
http://duiliopiatoadvogados.com.br/artigos/445-quinto-constitucional. Acesso em 26 de novembro de 2021).

[2] Explica José Afonso da Silva que: "Esse requisito de notável saber, exigido pela Constituição, refere-se especialmente à habilitação científica em alto grau nas matérias sobre que o Tribunal tem de pronunciar-se, jus dicere, o que supõe nos nomeados a competência e sabedoria que no conhecimento do Direito devem ter os jurisconsultos". (Comentário Contextual à Constituição. 6.ª ed., São Paulo: Malheiros, 2009, p. 533).
Em seguida, o mesmo constitucionalista cita Castro Nunes, segundo o qual "Não bastam, porém, a graduação científica e a competência profissional presumida do diploma; se é notável o saber jurídico que se requer, por seu sentido excepcional, é porque o candidato deve ser portador de notoriedade, relevo, renome, fama, e sua competência ser digna de nota, notória, reconhecida pelo consenso geral da opinião jurídica do país e adequada à função." (Ibidem).
Quanto ao requisito da reputação ilibada, José Afonso afirma que ela "é outra notoriedade que se requer, mas agora no campo da Ética, do comportamento humano. Ou, como diz ainda Castro Nunes, 'é a boa fama, a perfeita idoneidade moral'" (Ibidem). E arremata, "Vale dizer, os requisitos não podem ser de mera apreciação subjetiva […] São requisitos objetivos e até comprováveis especialmente pela atuação do candidato, por sua produção jurídica e pela estima pública." (Ibidem).

[3] Comentário Contextual à Constituição. 6.ª ed., São Paulo: Malheiros, 2009, p. 508.

[4] Emenda 28-CE/1999, Diário da Câmara dos Deputados, 14/12/1999. Disponível em https://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD0019991214SA2090000.PDF#page=43. Acesso em 26 de novembro de 2021.

[5] Emenda 43-CE/1999, Diário da Câmara dos Deputados, Suplemento, 14/12/1999. Disponível em https://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD0019991214SA2090000.PDF#page=175. Acesso em 26 de novembro de 2021.

[6] Diário da Câmara dos Deputados, Suplemento, 14/12/1999. Disponível em https://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD0019991214SA2090000.PDF#page=259. Acesso em 26 de novembro de 2021.

[7] Diário da Câmara dos Deputados, Suplemento, 14/12/1999. Disponível em https://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD0019991214SA2090000.PDF#page=276. Acesso em 26 de novembro de 2021.

[8] Sinopse Estatística da Educação Superior 1999 – Parte 1, item 3.2. Disponível em https://download.inep.gov.br/download/censo/1999/superior/miolo1_Sinopse_Superior99.pdf. Acesso em 26 de novembro de 2021.

[9] Sinopse Estatística da Educação Superior 2004, item 3.2. Disponível em https://download.inep.gov.br/download/superior/2004/Sinopse_2004_010206.zip. Acesso em 26 de novembro de 2021.

Autores

  • é advogado, doutor em Direito Processual Civil pela Universidade de São Paulo (USP), pesquisador visitante na Harvard University e na Yale University, pós-graduado em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito da Università degli Studi di Milano (Statale) e graduado em Direito pela USP. Foi assessor de ministro do STJ, de ministro do STF e da Presidência do STF.

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