Diário de Classe

As lições dos clássicos demiurgos ao realismo à brasileira

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27 de novembro de 2021, 8h00

Embora perpasse um tema complexo, uma boa e sintética definição para o realismo jurídico é aquela que o coloca como uma postura de viés não cognitivista — como clareia o professor Lenio Streck em seu "Dicionário de Hermenêutica" [1] —, em que o Direito seria justamente aquilo que os tribunais ou seus intérpretes dizem que ele é. O Direito estaria, por assim dizer, mais aproximado de uma técnica, e se realizaria através da própria decisão. E é por essa razão que pode ser compreendido, também, no arcabouço do positivismo fático que, ao tentar superar o formalismo, enveredou a toda sorte de decisionismos e discricionariedades.

É evidente que, para além de ser esse um problema posto àqueles estudiosos do Direito — eis que diz respeito a (ausência de) critérios para a tomada de decisão —, é também um problema republicano. Afinal de contas, não apenas babeliza justamente aquilo que nos civiliza, mas faz também do instrumento de contenção do poder — que é o Direito — o seu oposto.

A partir dessas muito resumidas: 1) conceituação do realismo jurídico; e 2) análise de seus reflexos —, parece evidente que, a menos que a opção político-jurídica não perpasse justamente um paradigma democrático e intersubjetivo, sua prática deve ser refutada. Republicanamente, não há saída, eis que pensar diferente implicaria uma espécie de metamomento, em que a opção fosse mais inclinada ao autoritarismo que à própria democracia. Assim, uma vez admitido o exercício horizontalizado do poder político — que é o núcleo de todo sistema democrático —, já não seria mais possível defender ou naturalizar a prática jurídica em que o Direito será aquilo que os juízes dizem que é, confundindo, portanto, a autonomia do próprio Direito com a autonomia dos tribunais ou, no limite, com a pessoalizada autonomia de seus atores institucionais.

A questão proposta neste pequeno ensaio, portanto, não observa ou discute se o realismo jurídico pode ser considerado uma postura aceitável e bem-vinda ou, de modo pessimista, uma ruim e inexorável prática observada na cotidianidade de nossos tribunais. Esse debate, em que pese sua importância, é facilmente superado justamente pelo encaixe paradigmático. Se falamos a partir de um modelo democrático, práticas como essa são ululantemente ruins para a comunidade política em que se manifestam. Não há alternativa positiva. Qual é, então, o debate?

Penso que uma das possibilidades de abordagem — e essa discussão tem perpassado as aulas de mestrado e doutorado capitaneadas pelo professor Lenio Streck não apenas na Unisinos, mas também na Estácio — gira em torno das razões que põem boa parte da comunidade jurídica refratária à preocupação com a decisão, endossando, assim, a discricionariedade e toda sorte de ativismos.

Ensaiar uma resposta a esse problema, claro, não é tarefa fácil, mas uma possível chave explicativa passa — ou pode passar — pela reconstrução de nossa história institucional, por um lado, e por uma série de condicionantes próprias de nossa formação, por outro. Nessa segunda trilha, uma atenta leitura dos chamados demiurgos do Brasil — embora atualmente contestados pela contemporaneidade das Ciências Sociais por aqui — pode oferecer interessantes insights argumentativos.

Vejamos, por exemplo e nesse sentido, a tese freyreana contida em "Casa Grande & Senzala", projetando uma autoritária relação de submissão entre — digamos assim — andares de cima e de baixo — aliás, tão presentes também na construção do patriarcado brasileiro de Raimundo Faoro e seus estamentos. E o que isso tem a ver com o debate? Muita coisa. Refutar o passado — que jamais vem objetificado numa espécie de engessamento de sentidos — é sempre uma tarefa dolorida. Claro. Implica desconstruir mundo — e aqui falamos justamente de um mundo autoritário e estamental na sua gênese, em que as coisas são, evidentemente, postas pela autoridade. Por isso mesmo, não parece haver meras coincidências nesta tríade composta por positivismo-autoritarismo-realismo…

Mas sigamos. Na sequência dessa correlação — e não por outra razão —, talvez tenhamos no incompleto processo de construção da democracia brasileira de Florestan Fernandes — ou na democracia que não foi de Murilo de Carvalho —, também outra boa trilha para abrir a clareira deste tema. De um lado, o processo de horizontalização do poder no Brasil teria ficado carente de um desfecho efetivamente democrático pela ausência, no fim das contas, de uma espécie de revolução popular — colocando-se mais como um remanejo do poder que, no limite, permaneceu verticalizado. Na outra ponta, o mesmo enredo retorna, mas agora a partir de uma nova roupagem: a república veio no século 19, é verdade, mas chegou de golpe e sem o povo.

Mais uma vez, qual a relação? Ora, o momento seminal de nossa democracia — aliás, interrompida sistematicamente, e talvez não por acaso — assinalou claramente uma certa tibieza no regime, notadamente, também autoritário. Ou seja: o "nome da coisa" era república, mas o seu funcionamento não era republicano, permitindo retomar o argumento de nossa pequena tese, mas problematizado, agora, como uma interrogação: se nos constituímos como nação naturalizando uma república a partir de mecanismos autoritários, não é perfeitamente possível olhar no retrovisor e também naturalizar o Direito como aquilo que os tribunais dizem que é?

Esse é o ponto, ou a hipótese para um problema jurídico, com grandes implicações também democráticas. Desconstruir esse mundo erguido no passado, com reflexos no nosso presente, é a tarefa que se impõe, portanto. E será dolorosa. Tem sido. Afinal, como se disse numa dessas aulas citadas ao longo do texto, o processo civilizatório é um parto.


[1] Remeto o eventual leitor interessado no tema ao verbete "Realismo Jurídico", de STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica. Quarenta temas fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito, 2017.

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  • Brave

    é doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, em estágio pós-doutoral com bolsa Capes na mesma instituição e integrante do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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