Opinião

A Lei do Superendividamento e o olhar do Poder Judiciário

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26 de novembro de 2021, 15h11

O superendividamento é tema de análises doutrinárias no Brasil há algum tempo, fortalecido por duas grandes questões, o debate estrangeiro muito adiantado em relação ao nosso e, noutra ponta, a nossa própria questão econômica geral, influenciada, naturalmente, pela questão específica das famílias brasileiras. Essa situação das famílias cada vez mais afogadas em dívidas se agrava na pandemia da Covid-19.

No pior clima, se criou o ambiente perfeito para que enfim se aprovasse legislação a respeito do superendividamento. A Lei nº 14.181, de 1º de julho de 2021, altera diversos artigos do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990), além de inserir um capítulo inteiro no CDC falando sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento. Para além disso, também insere previsão nova no Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003).

A nova previsão legal considera a importância do acesso à informação adequada, fortalecendo previsões já existentes no CDC, mas também considera o que a doutrina já considerava, que na nossa sociedade do consumo a informação é um instrumento claro para que haja consumo, ainda que esse consumo seja feito num sentido que despreze a situação do consumidor. Considera-se, então, que a proteção das relações de consumo dos males do excesso de endividamento acaba sendo a saída para um movimento mais sadio, inclusive ambientalmente.

Em agosto passado, a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) divulgou pesquisa sobre endividamento e inadimplência do consumidor em que se informava que cerca de 72,9% das famílias brasileiras se encontravam com dívidas. A mesma pesquisa afirmou que cerca de 25,6% das famílias não estava conseguindo quitar suas dívidas, ou seja, em situação de atraso [1].

O processo de superendividamento, para além do impacto na economia geral e nas relações financeiras intrafamiliares, acaba por adentrar nas questões sociais e psicológicas dessa relação. O sujeito que acaba superendividado, sendo o provedor ou a provedora de uma casa, ou mesmo sendo um dependente eventual dessas relações, acaba por se anular direta e indiretamente nessas questões. Trata-se de sujeito sem possibilidades, principalmente em contextos como o que temos passado, de forte necessidade de reforço financeiro dentro dos lares.

O §1º do artigo 54-A do CDC, inserido pela Lei do Superendividamento, conceitua o superendividamento como "a impossibilidade manifesta do consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial". Mesmo abarcando quaisquer compromissos financeiros assumidos em decorrência da relação de consumo, há regras em relação a quais dívidas devem ser devidamente protegidas e tratadas no limite dessa lei.

Por exemplo, é claro que aqui falamos de dívidas decorrentes de relação de consumo, então, dessa forma, não se abarcam as dívidas fiscais. Outro ponto é que, na forma do que a doutrina anterior já apontava, aqui apenas estão abrangidos os superendividados que contraíram suas dívidas em duas circunstâncias, aqueles que se endividaram em função de fatores externos, como o desemprego ou uma redução salarial (endividado passivo) ou aquele que agiu impulsivamente, sem má-fé, sem fiscalizar seus gastos, e se viu em uma situação em que não conseguia mais pagar suas dívidas (endividado ativo inconsciente).

O que não está abrangido é o endividado doutrinariamente tratado como ativo consciente, que é o sujeito que contrai dívidas já na intenção de não pagá-las, de fato, não cabendo colocá-lo no mesmo patamar dos demais. Dentro dessas possibilidades não abarcadas está, inclusive, a aquisição de produtos de luxo de alto valor, o que seria, de fato, um contrassenso com a realidade nacional e com o espírito dessa lei.

A lei insere novos princípios (artigo 4º do CDC), cria novos instrumentos para a política nacional das relações de consumo (artigo 5º do CDC), oferta novos direitos básicos ao consumidor (artigo 6º do CDC), além de ampliar o rol de cláusulas abusivas (artigo 51 do CDC). Também fala da oferta de informações adicionais no fornecimento de crédito e na venda a prazo (artigo 54-B do CDC), das proibições no momento da oferta de crédito (artigo 54-C), dos deveres do fornecedor na contratação de crédito consciente (artigo 54-D do CDC), do tratamento de contratos conexos, coligados ou interdependentes (artigo 54-F do CDC) e de práticas abusivas específicas para o fornecedor de produto ou serviço que envolva crédito (artigo 54-G do CDC).

Para além de tudo isso, o que mais nos chama atenção é a inserção do Capítulo VI-A no Código de Defesa do Consumidor, o capítulo que fala diretamente da questão do tratamento do superendividamento, ofertando ao superendividado a possibilidade de recorrer ao judiciário requerendo a instauração de processo de repactuação de dívidas.

A lei exige que, quando o juiz instaure o processo e chame os credores à audiência conciliatória, que esses compareçam, sob pena de diversas sanções, como a suspensão da exigibilidade da dívida, interrupção de encargos de mora etc. Também exige que, comparecendo e não concordando com o plano de pagamento do consumidor, o credor posteriormente se justifique em não aceitar esse plano de pagamento, seguindo então o processo ritos que podem envolver um administrador para gerenciar o plano de pagamento dessas dívidas, sendo compulsório quando reunidas as condições para a finalização do caso.

Para além disso, a lei também oferta competência aos órgãos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (Procon, Ministério Público, Defensoria Pública, Delegacias de Defesa do Consumidor, Juizados Espaciais Cíveis, organizações civis de defesa do consumidor e agências reguladoras) para que possam realizar administrativamente procedimento no sentido de sanar o superendividamento, influenciando, inclusive, a criação de setores específicos para o tratamento do superendividamento, administrativo ou judicialmente.

Nisso tudo, nossa atenção recai sobre o tratamento do Judiciário aos casos de superendividamento. Vemos com a cautela necessária toda a previsão a respeito do tratamento de questões desse tipo pelo Poder Judiciário, inclusive elogiando iniciativas frutíferas em inúmeros Tribunais de Justiça de todo o Brasil.

Se há questões de hipossuficiência envolvidas nas relações de consumo, em questões de superendividamento essas questões ficam ainda mais aprofundadas, haja vista que temos aqui um consumidor bastante fragilizado ante a situação em que se encontra, fragilizado social e financeiramente e desejando pela sua reinserção nessas relações e de um novo controle da sua vida.

O superendividado abarcado por essa lei não cometeu nenhum crime, pelo contrário, a boa-fé deve fazer parte das relações de consumo que tocam a esse caso, assim não deve ser tratado como um sujeito criminoso, muito menos ser visto como sujeito em iguais condições de comando como os seus credores, e longe de desejar que o Judiciário atue como uma babá, mas o cuidado com esse indivíduo, numa visão específica ou macro, consegue alçar bases a relações de consumo mais sadias e a construção de parâmetros culturais importantes ao consumo, beneficiando credor e devedor, indivíduos, economia e mesmo os seus familiares.

Mais do que ser receptor e tratador dos casos, cabe ao Judiciário reforçar as suas iniciativas no sentido de popularizar a possibilidade de tratativas assim, para que seja da consciência coletiva que há preocupação com qualquer indivíduo de boa-fé que tenha eventualmente se endividado dessa forma. Um olhar atento e cuidadoso do Judiciário pode proporcionar o cumprimento da lei, e já não se espera outra coisa da lei, senão seu cumprimento.

 


[1] LISBOA, Vinícius. CNC: percentual de famílias com dívidas chega a 72,9%. Agência Brasil, Rio de Janeiro, 25 de ago. de 2021. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2021-08/cnc-percentual-de-familias-com-dividas-chega-729>. Acesso em: 20 de out. de 2021.

Autores

  • é advogado, mestre em Planejamento e Dinâmicas Territoriais pela UERN, pesquisa a extinção de estruturas de justiça sob a ótica do direito ao desenvolvimento e teorias sobre vulnerabilidade social.

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