Opinião

De Marcia Barbosa a Mariana Ferrer: o amadurecimento da proteção da vítima

Autores

  • Fernanda Frizzo Bragato

    é pesquisadora do CNPq mestra e doutora em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) pós-doutora pelo Birkbeck College of University of London coordenadora do programa de pós-graduação em Direito e professora da Unisinos professora visitante Fulbright na Cardozo Law School e coordenadora do Núcleo de Direitos Humanos da Unisinos.

  • Guilherme Carneiro de Rezende

    é mestre em Direito pela Universidade Vale dos Sinos (Unisinos) especialista em Direito Processual em Direito Público com ênfase em Direito Penal e em Direito das Relações Sociais professor de Direito Processual Penal na Escola da Magistratura do Estado do Paraná no Centro Universitário Assis Gurgacz na pós-graduação na Faculdade Unyleya e de Direito Institucional e Processo Penal no Estratégia Carreira Jurídica ex-defensor público da União ex-procurador da Fazenda Nacional e promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná.

26 de novembro de 2021, 7h14

Neste mês foi publicada a Lei 14.245, que prevê punição para atos contra a dignidade de vítimas de violência sexual e das testemunhas do processo durante julgamentos. A norma vertente resulta do Projeto de Lei 5.096/2020, de autoria da deputada Lídice da Mata (PSB-BA) e outros, que foi apresentado em 5 de novembro de 2020 [1] e aprovado no Senado Federal em pauta dedicada exclusivamente a proposições da bancada feminina, para marcar o encerramento do Outubro Rosa [2].

O ano de 2020 foi marcado por tristes fatos. O Brasil amargava centenas de milhares de mortos com a Covid-19, mas, para além da pandemia, fomos apresentados ao massacre promovido em audiência contra a jovem Mariana Ferrer, uma digital influencer que teria sido vítima de estupro no estado de Santa Catarina [3]. O acusado foi posteriormente absolvido em primeira instância, decisão que foi confirmada pelo Tribunal de Justiça catarino [4].

A tecnologia, ao mesmo tempo em que propiciou contornar a crise sanitária e as medidas de isolamento, realizando atos processuais de modo remoto, revelou os bastidores de uma triste realidade, que não se pode negar aconteça no dia a dia do sistema de Justiça do Brasil, aqui incluídas as delegacias de polícia e os fóruns de tribunais: o fenômeno da revitimização. A questão certamente se agrava quando agregamos o componente de gênero.

O Estado chamou a si a responsabilidade pela aplicação da lei penal ao caso concreto, vedando, inclusive, a vingança privada, ao tipificar a conduta de exercício arbitrário das próprias razões, conforme artigo 345, do CP. Nesse contexto, afastou-se a vítima do conflito penal, estabelecido e mantido, de modo impessoal, apenas entre o Estado-juiz, o Estado-acusação, o Ministério Público e o acusado.

A vítima permaneceu à margem do conflito durante muito tempo. Reservou-se a ela o papel meramente "testemunhal", por assim dizer: o de simplesmente contar em juízo o que presenciou sobre os fatos. O cenário sofreu algumas importantes alterações no decorrer dos últimos 80 anos — adotando como referência a promulgação do Código de Processo Penal —, principalmente a partir de 1995, com a edição da Lei 9.099/95, posteriormente com a Lei 11.340/06 (a Lei Maria da Penha) e depois com a Lei 11.690/08, que instituiu uma microrreforma no CPP.

Paralelamente, a jurisprudência da Corte IDH muito avançou no trato da vítima de violação de direitos humanos, reconhecendo a existência de um direito de ver investigado, processado e punido o autor dos fatos [5]. Ela avança substancialmente no trato da vítima, reconhecendo um ponto de convergência entre o Direito Penal e os direitos humanos [6]: os direitos humanos não se prestam única e exclusivamente a resguardar o indivíduo da atuação do Estado. Não representam sempre uma abstenção (um não fazer), reclamam, nalgumas ocasiões, um agir estatal (um fazer) que objetiva a proteção de direitos [7]. A vítima recupera um espaço no conflito penal.

A despeito de toda esta evolução, infelizmente o episódio envolvendo Mariana Ferrer, aqui projetando outras tantas mulheres, que são revitimizadas nas instâncias de controle, calhou vir à tona em pleno ano de 2020.

A Lei Mariana Ferrer prevê uma majorante ao crime de coação no curso do processo (parágrafo único, do artigo 344, do CP), além de estabelecer nos artigos 400-A e 474-A do CPP e §1º-A do artigo 81 da Lei 9.099/95 que as partes e demais sujeitos processuais presentes na audiência deverão zelar pela integridade física e psicológica da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, cabendo ao juiz garantir o cumprimento dessas obrigações.

Não se pode olvidar que além de enfrentar as agruras do crime, a vítima ainda passa por um verdadeiro calvário nas (ditas) instâncias formais de controle, desde o registro do boletim de ocorrência até a prolação da sentença, eis que, a teor do artigo 201 do CPP, deve obrigatoriamente ser ouvida em juízo. As 100 Regras de Brasília [8] asseveram a necessidade de que se estimulem medidas adequadas para mitigar os efeitos negativos do delito, indicando-os (esses efeitos) como sendo a vitimização primária.

Já a vitimização secundária consiste, segundo o aludido documento, no incremento do dano sofrido pela vítima em decorrência de seu contato com o sistema de Justiça (peritos, policiais, membros do Ministério Público, advogados, juízes). Beristain sublinha que "durante o processo, a vítima é, no mais, um convidado de pedra. Outras vezes, nem convidado" [9].

E é justamente a vitimização secundária que a Lei Mariana Ferrer busca coibir, e que junto à previsão estabelecida pela Lei 11.690/08, que alterou o artigo 201, do CPP, e os estândares propostos pelo SIDH, formam um complexo feixe de proteção da vítima no processo penal.

Há de se celebrar o avanço, que busca a responsabilização de eventuais atos atentatórios à dignidade da vítima, recrudescendo o tratamento, sem cerrar os olhos à necessidade de se capacitar os operadores do Direito, de modo a evitar episódios trágicos como esse.

É evidente que a imposição estabelecida ao magistrado, de garantidor da dignidade da vítima, por assim dizer, com base em seu poder de polícia, não malfere a imparcialidade que se espera do julgador, afinal a providência não interfere na formação de seu convencimento, tampouco faz pender a balança em favor de quem quer que seja.

Ainda no apagar das luzes deste mês de novembro, o Brasil amargou a sua décima condenação perante a Corte IDH no caso de Marcia Barbosa de Souza, também envolvendo violência de gênero [10]. O Estado falhou ao investigar, processar e punir o responsável pelo homicídio da jovem Marcia, ocorrido em João Pessoa em julho de 1998. O agressor, então deputado estadual, arvorou-se em imunidade parlamentar e retardou o avanço da persecução penal, impedindo a sua tempestiva e adequada punição. A CIDH, alertou que "a impunidade dos crimes cometidos envia a mensagem de que a violência contra a mulher é tolerada, o que favorece sua perpetuação e a aceitação social do fenômeno, o sentimento e a sensação de insegurança nas mulheres, assim como uma persistente desconfiança destas no sistema de Justiça" [11].

A tristeza decorrente da impunidade e da perda de uma vida humana revela a esperança de dias melhores, principalmente em virtude do novel precedente, que reafirma a necessidade de proteção da vítima, seja no âmbito do SIDH, seja no plano do Direito doméstico.


[5] O Estado deve iniciar, de ofício e imediatamente, uma investigação séria, capaz de identificar, julgar e punir os responsáveis por violações de direitos humanos (§319, do Caso Fazenda Brasil Verde, §108, do Caso Gomes Lund). No Caso, §220, do Caso Empregados da Fábrica de Fogos, a Corte IDH acrescentou que a investigação deve buscar a determinação da "verdade, a persecução, captura, julgamento e eventual punição dos responsáveis".

[6] Ramos chega a afirmar que se trata da faceta punitiva dos direitos humanos, "que ordena aos Estados que tipifiquem e punam criminalmente os autores de violações de direitos humanos".

[7] No caso Ximenes Lopes vs. Brasil, a Corte Interamericana após traçar importantes considerações acerca do direito à vida, asseverou que "os Estados têm a obrigação de garantir a criação das condições necessárias para que não se produzam violações a este direito inalienável", sublinhando que eles têm o dever de estabelecer "um marco normativo adequado que dissuada qualquer ameaça ao direito à vida". (§125).

[8] Elaboradas com o apoio do Projecto Eurosocial Justiça, por um grupo de trabalho constituído no seio da Conferência Judicial Ibero-americana, na qual também participaram a Associação Ibero-americana de Ministérios Públicos (Aiamp), a Associação Inter americana de Defensores Públicos (Aidef), a Federação Ibero-americana de Ombudsman (FIO) e a União Ibero-americana de Colégios e Agrupamentos de Advogados (Uiba). As Regras de Acesso à Justiça das Pessoas em Condição de Vulnerabilidade foram aprovadas pela 14ª Conferência Judicial Ibero-americana, que teve lugar em Brasília durante os dias 4 a 6 de março de 2008. As outras Redes antes citadas iniciaram o processo para as submeter à aprovação dos seus respectivos órgãos de governo. Disponível em: https://www.anadep.org.br/wtksite/100-Regras-de-Brasilia-versao-reduzida.pdf. Acesso em: 23 fev. 2021.

[9] BERISTAIN, Antonio. Nova criminologia à luz do direito penal e da vitimologia. Brasília: Universidade de Brasília, 2000. 194 p. p. 105.

[11] COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Marcia Barbosa de Souza e familiares. Relatório de mérito 10/19. Disponível em: https://oas.org/pt/cidh/decisiones/corte/2019/3.%20BR%2012.263%20Barbosa.docx. Acesso em 10 de junho de 2021.

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    é pesquisadora do CNPq, mestra e doutora em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), pós-doutora pelo Birkbeck College of University of London, coordenadora do programa de pós-graduação em Direito e professora da Unisinos, professora visitante Fulbright na Cardozo Law School e coordenadora do Núcleo de Direitos Humanos da Unisinos.

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    é mestre em Direito pela Universidade Vale dos Sinos (Unisinos), especialista em Direito Processual, em Direito Público com ênfase em Direito Penal e em Direito das Relações Sociais, professor de Direito Processual Penal na Escola da Magistratura do Estado do Paraná, no Centro Universitário Assis Gurgacz, na pós-graduação na Faculdade Unyleya e de Direito Institucional e Processo Penal no Estratégia Carreira Jurídica, ex-defensor público da União, ex-procurador da Fazenda Nacional e promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná.

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