Opinião

A gangorra etária nas cadeiras do Supremo

Autor

  • Herick Feijó Mendes

    é advogado mestrando em Segurança Pública Cidadania e Direitos Humanos (UERR) especialista em Direito Público e ex-membro da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais (CFOAB).

26 de novembro de 2021, 16h04

A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, na terça-feira (23/11), aprovou a PEC 159/2019, cuja redação propõe a redução da idade de aposentadoria obrigatória de ministros do STF, proposta pela deputada Bia Kicis. A PEC, suscintamente, visa a alterar a idade para a aposentadoria compulsória de 75 para 70 anos de idade, sem incluir qualquer norma de transição, cabendo supor, com certa tranquilidade interpretativa, que a norma incidirá sobre os atuais ministros da Suprema Corte septuagenário.

Da leitura do teor da PEC, da forma que foi aprovada pela CCJ, relembro da "túnica rígida do passado inexaurível, pesado, sufocante" citada por Raymundo Faoro. E, de fato, medidas tais possuem perspectiva de um período pretérito atordoante ou de similaridade aos países autocratas. Aliás, a própria justificativa confessa o incômodo com decisões judiciais, eis que a temática é tratada como "questão relevante para a prestação jurisdicional".

Discordar das mais variadas medidas judiciais é natural ao sistema democrático, e aqui não farei maiores digressões sobre judicialização da política ou do famigerado ativismo judicial, sob uma perspectiva de autocontenção da corte e dos vetores do pós-positivismo, considerando que a minha preocupação reside na utilização de mecanismos político-legais-constitucionais para suplantar as garantias institucionais, como elemento típico do constitucionalismo abusivo.

Na primeira oportunidade em que se alterou critérios de idade (a famosa PEC da bengala  EC 88/2015), atingindo os ministros da mais alta corte brasileira, discutia-se sobre a imposição dos ministros que já se encontravam no cargo serem novamente sabatinados. O STF, por meio da ADI 5.316, iniciou o debate dando ênfase à independência e à imparcialidade do Poder Judiciário como predicados necessários à garantia da justiça e do Estado de democrático de Direito.

Bruno Bodart explica que "o ato de julgar, por natureza, desperta antipatias e paixões diversas, decorrentes dos interesses envolvidos na causa. O julgador não pode depender da aprovação política dos membros de outros Poderes para permanecer na magistratura, porque a própria Constituição exige que ele seja independente" [1].

Com a PEC da Bengala, portanto, buscava-se realizar novas sabatinas aos ministros para, politicamente, possibilitar um rearranjo nas estruturas institucionais, ou seja, submeter os ministros à nova aprovação levaria a determinadas reprovações, de modo a fazer surgir novas vagas a serem preenchidas pelo então presidente da República.

Percebe-se que a ciranda etária brasileira pressupõe o descontentamento com decisões judiciais, atrelada ao desejo de modificar a composição da corte sob o ideal de criar um perfil psicográfico com a identidade do governante, como se a Suprema Corte fosse uma extensão da dicção do Executivo ou Legislativo. 

Essa pretensão pode ser representada por diversos mosaicos, como a convocação de novas constituintes, aumento do quantitativo de ministros (chavismo), protelação da sabatina para o presidente sucessor realize nova indicação (Marrick Garland  Obama vs Trump) e alteração do fator etário com rompimento imediato.

Importante a reflexão realizada por Gerardo Blyde, oposicionista do chavismo, ao dizer que se "o Judiciário for controlado pelo governo, o governo não estará sujeito a nenhuma forma de controle" [2].

A instituição de maior relevância judicante da República não pode ser vista, singelamente, como território de alocação de agentes afetos à perspectiva político-partidária ou, quando mais grave, a partir de um olhar de que as decisões sejam exclusivamente favoráveis ao nomeante — decisão boa é a que me defere.

Um cenário ligeiramente distinto também merece atenção, tendo em vista que ao se utilizar de mecanismos de alteração etária é possível, também, evitar que ministros sejam nomeados em determinado período (elevação da idade, por exemplo), alterando-se as regras do jogo abruptamente, seja para favorecer ou desfavorecer o chefe de Estado por fatores político-ideológicos ou de "convergências" alheias ao ideal democrático.

Retroagindo algumas décadas, é possível visualizar como as garantias institucionais, à luz do panorama político-ideológico, foram extirpadas por conveniência ao que não era agradável ao regime. O Ato Institucional nº 05/68 nos faz intelectualizar o tronco simbólico e histórico da PEC 159/2019, pois o AI-5 para além de suspender a garantia da vitaliciedade dos magistrados, outorgou ao presidente da República a faculdade, mediante decreto, de aposentar juízes (§1º do artigo 6º).

Com a PEC da bengala (EC 88/2015), a ex-presidente Dilma Rousseff restou impossibilitada de indicar cinco ministros ao Supremo até 2018 (com o impeachment, assumira o ex-presidente Michel Temer); lado outro, caso devolva-se a bengala, o atual presidente, Jair Bolsonaro, poderá indicar mais dois novos ministros ao STF.

De plano, pode-se antever violações patentes à Lei Fundamental de 1988, a exemplo da separação dos poderes, da independência do Judiciário e, sobretudo, da clara e evidente manifestação do constitucionalismo abusivo. Entre as principais características, a abusividade constitucional se utiliza de mecanismos legais e constitucionais para esvaziar ou enfraquecer os demais poderes, sempre que não compactuem com seus propósitos (MC- ADPF 622/DF).

Não obstante, extraio que da proposta poderia se aproveitar o mínimo de intenção republicana que lá o tenha, desde que os preceitos gerais de direito, da segurança normativa e de previsibilidade fossem aplicados, preservando-se o plexo de justeza da instituição metodicamente protegida constitucionalmente, prescrevendo bases transitórias e de conformação, já que a PEC, impondo novo limite etário a menor, com eficácia imediata, seria um verdadeiro ato legislativo concreto de aposentação imperativa, não o sendo  diferentemente do AI-5 , ato de execução facultativa.

Daí surgir uma verdadeira interferência no Poder Judiciário, pois, ao se legitimar esse tipo de ato legislativo de cunho evidentemente concreto, a cada descontentamento com a "prestação jurisdicional", bastaria reduzir a idade da compulsória para alterar o arranjo judicante poder-se-ia escolher os julgadores a cada legislatura. A PEC trata de características voltadas ao RPPS, ou seja, previdência, e, se estamos a falar de regime previdenciário (contida a idade), é preciso se obedecer a uma premissa inerente, eis que previdência advém de previsão: condição daquilo que é previdente, que prevê ou busca evitar previamente transtornos.

Se para a retirada do presidente da República, como chefe e membro de poder, só se pode utilizar dos mecanismos constitucionais pré-estabelecidos (eleições, impedimento ou crime comum  estes dois últimos aplicados aos ministros do STF), da mesma forma o é com os demais poderes, sob pena da ciranda etária na Suprema Corte, com aposentadoria compulsória e imediata, configurar-se verdadeira sobreposição ao funcionamento de outro poder.

A gangorra da bengala não pode ser uma aventura casuística que zombe da Lei Fundamental, a pretexto de afagar interesses momentâneos e relegar as garantias institucionais da Suprema Corte e de seus membros (imparcialidade, independência, segurança jurídica, previsibilidade), deixando-se esvaziar a discussão de fatores realmente relevantes à sua composição, como o critério de escolha, procedimentos ou, talvez, de uma nova reformulação para indicação de ministros.

Autores

  • é advogado, mestrando em Segurança Pública, Cidadania e Direitos Humanos, especialista em Direito Público, presidente da Comissão de Estudos Constitucionais (Seccional RR) e membro da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais (CFOAB).

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