Limite Penal

O que é necessário para que o processo penal proteja as mulheres?

Autor

  • Janaina Matida

    é professora de Direito Probatório da Universidad Alberto Hurtado (Chile) doutora em Direito pela Universitat de Girona (Espanha) e consultora jurídica em temática da prova penal.

26 de novembro de 2021, 20h20

Ontem foi o Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra a Mulher. Desde 1999, a ONU escolheu a data de 25 de novembro para rememorar a luta pela erradicação de todas as formas de violência contra a mulher, de modo a homenagear Patria, Minerva e María Teresa, conhecidas como Irmãs Mirabal. Isso porque, em 25 de novembro de 1960, as três irmãs foram espancadas e estranguladas até a morte em razão de seu ativismo com vistas a recuperar as liberdades políticas do povo dominicano, então usurpadas pela ditadura de Rafael Trujillo. Nem mesmo a vida atravessada por prisões, estupros e múltiplas violências foi capaz de enfraquecer o engajamento político das três irmãs.

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A celebração dessa data, por si só, já seria motivo bastante para escrever a coluna de hoje, mas é inegável que, no decorrer da semana, o processo penal brasileiro ganhou novos e importantes capítulos no que refere à temática de gênero. Farei um apanhado dos últimos acontecimentos, sem qualquer pretensão mais ambiciosa de oferecer conclusões definitivas.

Capítulo Márcia Barbosa de Souza
Na quarta-feira, 24 de novembro, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH a partir de agora) publicou a sentença que condenou o Estado brasileiro pela omissa atuação no feminicídio de Márcia Barbosa de Souza. Márcia era uma mulher negra, de apenas 20 anos, brutalmente assassinada pelo à época deputado estadual da Paraíba, Aércio Pereira de Lima. Na noite de 17 de junho de 1998, a vítima foi ao encontro do feminicida em um quarto do Motel Trevo. O encontro foi confirmado por testemunhas e também por chamadas telefônicas que a vítima realizou a familiares a partir do celular de Aércio. Depois de a matar, Aércio providenciou o descarte do corpo de Márcia em terreno baldio às aforas de João Pessoa. De acordo com o informado pela sentença, "na manhã de 18 de junho de 1998, um transeunte observou que alguém jogava o corpo de uma pessoa, posteriormente identificada como Márcia Barbosa de Souza, de um veículo a um terreno baldio no Altiplano Cabo Branco, próximo à cidade de João Pessoa, no estado da Paraíba. No momento em que acharam o corpo, Márcia Barbosa de Souza apresentava escoriações na parte frontal de seu rosto, no nariz e na boca. Além disso, seus lábios, nariz e dorso apresentavam equimose de cor azul violeta e seu corpo tinha vestígios de areia. Por outra parte, durante a autopsia, revelou-se que a cavidade cranial, torácica abdominal e pescoço apresentavam hemorragia interna e, como causa da morte, determinou-se a asfixia por sufocamento, resultante de ação mecânica" (tradução livre, p. 23).

Portanto, ao feminicídio soma-se a ocultação de cadáver. Apesar da fartura do conjunto probatório, composto por diversos elementos que com sobra demonstravam materialidade e autoria, Aércio Pereira conseguiu esconder-se atrás da imunidade parlamentar por tempo demais. No total, nove anos separaram o feminicídio da condenação do réu a 16 anos (homicídio qualificado e ocultação de cadáver) em primeira instância. A defesa de Aércio desenvolveu-se, portanto, em duas estratégias mestras: imunidade parlamentar e exploração de estereótipos de gênero.

No que refere à imunidade parlamentar, importa anotar que a sua configuração legal ao tempo do fato condicionava a instauração de processo penal contra deputados à autorização da Assembleia Legislativa estadual. Desta feita, os dois pedidos formulados pelo Ministério Público para que a imunidade de Aércio fosse levantada foram prontamente negados. A ausência de motivação destas decisões revelou a utilização perversa do instituto, que tem sua razão de ser no asseguramento das condições para o desembaraçado exercício de mandatos políticos, mas que acabou servindo a atrasar o acesso à justiça aos familiares da vítima. A CIDH acertadamente sublinhou isso na sentença: "À luz da finalidade da imunidade processual — a preservação da ordem parlamentar — o exame do fumus persecutionis supõe um estudo da gravidade, a natureza e as circunstâncias dos fatos imputados, pois a resposta ao requerimento de levantamento da imunidade parlamentar não pode derivar de uma atuação arbitrária da câmara legislativa, que ignore a natureza do conflito e as necessidades de proteção dos interesses e direitos em jogo. O Tribunal recorda que o dever de motivar é exigível a qualquer autoridade pública, seja administrativa, legislativa ou judicial, cujas decisões possam afetar os direito das pessoas, que adote essas decisões com pleno respeito às garantias de devido processo legal" [1].

Em 2003, com o término da legislatura, o órgão acusatório pôde, finalmente, propor ação penal. Já em fase de instrução, a defesa passou a empreender esforços para, por um lado, direcionar a atenção dos jurados para o caráter e comportamentos de Márcia, por outro, para retratar o réu como um "cidadão de bem", um "pai de família que se deixou levar pelos encantos de uma jovem" [2]. Foram anexadas mais de 150 páginas de reportagens que se referiam à prática de prostituição, uso de drogas, depressão e suposto suicídio, muito embora o exame toxicológico realizado na vítima tivesse registrado apenas "uma quantidade não significativa de substâncias" [3].

O deslocamento do foco para os comportamentos e caráter da vítima em detrimento da atenção que deveria ser conferida ao acusado não foi, contudo, um problema isolado da instrução. O inquérito também foi orientado por estereótipos de gênero. É o que se depreende da reiteração das perguntas feitas às testemunhas sobre a sexualidade e uso de drogas de Márcia, tudo a evidenciar a lógica enviesada que responsabiliza a vítima pelo mal sofrido.

De acordo com a CIDH, faltou-se com a diligência devida porque a investigação careceu de perspectiva de gênero. As falhas investigativas e a demora na prestação jurisdicional ocasionaram sofrimentos evitáveis aos pais da vítima, que tiveram de engolir o fato de que nenhuma pena seria cumprida pelo seu algoz, dada à sua morte (ele infartou à espera do julgamento do recurso à condenação interposto pela defesa). Como se isso não bastasse, Aércio Pereira de Lima teve seu corpo velado na Assembleia Legislativa estadual, em cerimônia que contou com todas as honrarias bem como com a presença de diversas autoridades de João Pessoa. Após análise detida do caso, a CIDH condenou o Brasil e lhe impôs uma série de providências. Entre elas, a elaboração de protocolo para investigação específica para os casos de feminicídio. Serão uma espécie de novas lentes, capazes de auxiliar investigadores míopes a enxergar o que sistematicamente ignoram.

Capítulo Lei Mariana Ferrer
Na segunda-feira, dia 22 de novembro, foi promulgada a Lei 14.245/2021, apelidada de Lei Mariana Ferrer. Tal referência deve-se ao fato de que ela traz alterações nos Códigos Penal e de Processo Penal e na Lei dos Juizados Especiais precisamente no que refere ao tratamento conferido às vítimas e testemunhas. As imagens da audiência da Mariana junto aos demais atores processuais — todos homens — chocou a todos. A extrema agressividade que o advogado da defesa dirigiu à Mariana não encontrou resistência bastante dos demais presentes, nem mesmo do magistrado. Sem entrar no mérito sobre se Mariana foi ou não vítima de estupro, não sobrevive qualquer dúvida sobre a sua condição de vítima de um processo penal inapto, incapaz de oferecer freios à violência de um advogado cujo exercício de defesa desbordou os limites impostos pelo dever de respeito e urbanidade. Enquanto Mariana chorava e seu agressor aumentava o tom, os outros assistiram a humilhação, realizando algumas poucas e tímidas intervenções. Foram estas as cenas que impulsionaram as alterações legislativas.

No entanto, as alterações legislativas vão além e é nisso que se mostram preocupantes. Sob o pretexto de tratar das vítimas de violência sexual (daí o nome e sobrenome da Lei), a nova lei acaba abarcando as vítimas em geral: "Art 400-A. Na audiência de instrução e julgamento, e, em especial, nas que apurem crimes contra a dignidade sexual, todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato deverão zelar pela integridade física e psicológica da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, cabendo ao juiz garantir o cumprimento do disposto neste artigo, vedadas:
I – a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos;
II – a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas.

Art. 474-A. Durante a instrução em plenário, todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato deverão respeitar a dignidade da vítima sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, cabendo ao juiz presidente garantir o cumprimento do disposto neste artigo, vedadas:
I – a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos;
II – a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas.

Art. 81.
§1o-A. Durante a audiência, todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato deverão respeitar a dignidade da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, cabendo ao juiz garantir o cumprimento do disposto neste artigo, vedadas:
I – a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos;
II – a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas".

A expressão "em especial" para referir às vítimas de violência sexual denota que deve-se zelar pela integridade física e psicológica de todas as vítimas, e não apenas das vítimas em processos de violência sexual. E qual o problema, poderia me perguntar o leitor, em se cuidar da integridade de todas as vítimas? Não são as vítimas de outros delitos distintos à violência sexual também merecedoras do cuidado com a sua condição humana? A resposta é afirmativa. Sem dúvidas, leitor. Todas as vítimas… Mas também todos os acusados.

A vitimização que o sistema de justiça impõe não acomete somente as vítimas, mas em importante medida também fere e estigmatiza aquele que senta no banco dos réus. Ignorar a integridade do réu sob a escusa de se zelar pela integridade da vítima não é avançar em perspectiva de gênero, mas fechar os olhos para a perspectiva racial que devemos construir a partir dos estudos antirracistas. A "clientela preferencial" do sistema de justiça é preta e pobre e é sobre esta população que pesará a ênfase do dever de integridade física e psicológica da vítima, porque, o que se está pretendendo chancelar, a contrario sensu, é que o sistema de justiça não tem qualquer dever de integridade física e psicológica daqueles que acusa.

Considero que a Lei 14.245/2021 pode vir a gerar resultados positivos nos processos instaurados em razão de violência de gênero. No entanto, como texto e norma não se confundem, será necessária adequada capacitação dos atores processuais em perspectiva de gênero para que sejam capazes de aplicar as vedações corretamente, impedindo revitimizações (como as que ocorreram nos casos de Mariana Ferrer e Márcia Barbosa de Souza) sem que haja indevido cerceamento à defesa. Caso os artigos sejam corretamente aplicados nos processos por violência de gênero, as proibições trazidas pela nova lei fomentarão o desenvolvimento de uma defesa criminal com perspectiva de gênero, porquanto os advogados, antevendo a exclusão de linhas argumentativas estereotipadas, passarão a preferir explorar argumentos alternativos não enviesados por preconceitos. Contribuir para este mesmo fim é, aliás, a razão de ser da pesquisa que a professora Marina Cerqueira e eu estamos desenvolvendo neste semestre, a convite do Centro de Estudios de Justicia de las Américas (Ceja) em convenio com a Fundação Konrad Adenauer. Nestes casos, creio que o os resultados podem ser positivos, dado que a justiça criminal deve procurar minimizar os efeitos das relações de poder que vitimizam mulheres e outras minorias de gênero em todos os âmbitos sociais.

Justamente porque não podemos perder de vista as relações de poder que produzem múltiplas camadas de opressão na vida em sociedade é que há que se ter parcimônia diante do caráter amplo conferido às vítimas pela legislação em comento, não porque estejamos a negar que todas as vítimas, enquanto pessoas, mereçam tal dever de zelo, mas sim porque é dever dos que defendem um processo penal democrático e humano o cuidado devido a todos, inclusive dos réus. É preciso, pois, rechaçar a configuração de direitos processuais que nos imponha ter de escolher entre um processo penal com perspectiva de gênero e um processo penal antirracista. Honrar o sacrifício das irmãs Mirabal, proteger as mulheres do sofrimentos que vitimaram Mariana Ferrer e Marcia Barbosa de Souza não implica relativizar a condição de pessoa humana de todos aqueles que passam pelo sistema de justiça criminal. Em aula de encerramento do curso do IDDD-EJAP para magistrados, Perfecto Andrés Ibáñez disse: "o processo penal castiga para saber se deve castigar". É isso o que não podemos perder de vista.


[1]. sentença Caso Barbosa de Souza vs. Brasil, CIDH, p. 36

[2]. sentença Caso Barbosa de Souza vs. Brasil, CIDH, p. 46

[3]. sentença Caso Barbosa de Souza vs. Brasil, CIDH, p. 45.

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    é professora de direito probatório da Universidad Alberto Hurtado (Chile), doutora em Direito pela Universitat de Girona (Espanha) e presta consultoria jurídica na temática da prova penal.

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