Opinião

O curso de Direito nos EUA: metodologia, seleção de alunos, formato e professores

Autor

  • Rodrigo Caramori Petry

    é advogado consultor jurídico professor de Direito Tributário doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP) mestre em Direito Econômico e Social e membro do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT).

25 de novembro de 2021, 12h11

1) Organização do sistema de ensino superior
Apesar de algumas semelhanças, há muitas diferenças entre o ensino do Direito nos Estados Unidos da América e no Brasil, desde a forma e requisitos de admissão à faculdade, formato do curso e currículo, até mesmo os materiais didáticos e métodos de ensino, assim como o regime de trabalho e remuneração dos professores. Neste artigo serão explorados esses aspectos.

Spacca
Os cursos superiores de Direito nos EUA geralmente são lecionados nas chamadas "escolas de Direito" (law schools) dentro da estrutura de universidades; mas podem também ser lecionados em faculdades isoladas de Direito (law colleges) ou reunidas a outras faculdades cuja estrutura ainda não seja equiparada a uma universidade. O curso de Direito nos EUA ganha diversos nomes (school of law, college of law, law center ou faculty of law), mas geralmente é adotado o nome law school.

2) Formas de admissão dos estudantes
Nos EUA o curso de Direito equivale a uma pós-graduação, na qual o formado obtém o chamado graduate degree. O curso de Direito só pode ser cursado pelo aluno aprovado em teste específico (Law School Admission Test, ou LSAT), que só pode ser feito após o candidato ter cursado outra faculdade que dura geralmente quatro anos (obtendo o undergraduate degree). Além disso, exige-se que o candidato tenha obtido boas notas nesse curso. A seleção de alunos é rigorosa.

As melhores escolas de Direito nos EUA exigem também que os candidatos sejam avaliados em formulários de perguntas e respostas curtas nos quais devem justificar as razões do interesse pelo curso de Direito e quais são seus objetivos pessoais e profissionais. Além dessa avaliação personalizada, os candidatos ao curso de Direito precisam apresentar duas cartas de recomendação (letters of recommendation) assinadas por professores anteriores, que atestem a seriedade e características pessoais do candidato. Há uma avaliação global e histórica do aluno.

Os candidatos ao curso de Direito nos EUA geralmente escolhem cursar faculdades que lhes darão um suporte teórico ao estudo do Direito, como: Ciência Política, História, Filosofia, Jornalismo, Economia, Contabilidade, Negócios (Administração) e até Matemática. Mas existem também cursos de bacharelado em áreas diretamente relacionadas às disciplinas jurídicas especializadas, como, por exemplos: bachelor of Arts in Criminal Justice (bacharelado em Justiça Criminal), bachelor of Arts in Human Rights Practice (bacharelado em Prática dos Direitos Humanos), e até mesmo existe um bachelor of Arts in Law (bacharelado em Direito) na modalidade online [1], que pretende oferecer uma base jurídica aos estudantes que desejam depois fazer um curso de Direito (Juris Doctor).

Nesse sistema norte-americano os estudantes assim precisam conquistar um bacharelado em Artes (bachelor of Arts degree) ou em Ciências (bachelor of Science degree) antes de cursar e obter o grau em Direito (Juris Doctor degree). O estudante que escolhe um bacharelado ligado ao Direito pode acumular assim sete anos de estudos na área jurídica ao se formar em Direito.

O diploma de bachelor of Laws (bacharel em Direito) é concedido na Inglaterra e em outros países de língua inglesa, mas não no mesmo formato que nos EUA. Nas universidades da Europa continental (Itália, Espanha, Portugal, outros), assim como no Brasil, o curso de Direito é um bacharelado de quatro ou cinco anos, e não pós-graduação de três anos como nos EUA, e essa característica do curso nos EUA é única na América e Europa, informa Otavio Luiz Rodrigues Junior [2].

No Brasil, o curso de Direito pode ser cursado pelo aluno que saiu do ensino médio, sem precisar fazer outra faculdade antes, e, portanto, o formado em Direito acumula cinco anos de estudos universitários. Para a seleção de um candidato ao curso de Direito no Brasil não são exigidas cartas de recomendação ou formulários de justificativa do interesse do candidato. Basta ao brasileiro ser aprovado em um concurso (vestibular) para o curso de Direito, que preenche as vagas disponíveis, e cujo grau de dificuldade das provas é variável (de fácil até difícil) entre as diversas instituições.

3) Duração e formato do curso de Direito
O curso de Direito nos EUA tem duração de três anos, porém, são cursados em período integral (geralmente manhã-tarde), com aulas de duração variável, de 1h30 até 2h30. As aulas são distribuídas em horários diversos, fixados entre 8h30 e 17h30, na maioria dos casos. Há entre três e quatro horas-aula por dia, e no restante do tempo o aluno deve se dedicar ao estudo individual. As próprias escolas e a American Bar Association recomendam que o aluno dedique entre duas e três horas de estudo individual para cada hora-aula que recebeu em sala (o que resulta em uma pesada carga diária).

Há também alguns cursos de Direito oferecidos nos EUA para estudantes que desejam estudar em apenas um turno (manhã ou noite), mas, nesse caso do part-time law student, a duração do curso é maior, variando de quatro a cinco anos.

Ou seja, ao final do curso de Direito nos EUA o aluno soma um bacharelado (bachelor degree) e uma pós-graduação em Direito (Juris Doctor degree ou J.D.) que é denominada como um "doutorado profissional". Como comenta Otavio Luiz Rodrigues Junior, em tradução literal o Juris Doctor degree é um "grau de doutor em Direito", mas não se confunde com o doutorado em Direito no Brasil, é bem diferente. [3] O Juris Doctor equivale àquilo que é graduação em Direito no Brasil.

Depois de formado no curso de Direito, para exercer a advocacia o "bacharel" norte-americano precisa ser aprovado em um teste profissional aplicado pela "Ordem dos Advogados" dos EUA, a American Bar Association (ABA).

O curso de Direito no Brasil dura cinco anos e são raríssimas as instituições que exigem seja ele cursado parte em período integral, como geralmente é nos EUA. Muitos estudantes brasileiros frequentam o curso à noite, em virtude de trabalharem durante o dia ou fazerem estágios em escritórios de advocacia ou órgãos públicos.

Para exercer a advocacia, assim como é nos EUA, o bacharel em Direito no Brasil precisa ser aprovado em exame profissional, aqui feito pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

4) Ensino presencial divide espaço com o ensino híbrido e online
A American Bar Association (ABA) não concede o seu selo de aprovação a cursos de Direito totalmente online nos EUA, embora existam entidades defendendo a validação de cursos online e o tema permanece polêmico. Entretanto, a ABA já aprovou alguns cursos de Direito na modalidade híbrida, ou seja, cursada pelo aluno uma parte online e outra parte em sala de aula. Ao menos nove cursos de Direito híbridos já foram aprovados pela ABA nos EUA, e preenchem requisitos de qualidade instituídos pela Association of American Law Schools (AALS).

Note-se que alguns estados norte-americanos permitem que estudantes formados em escolas de Direito não credenciadas pela ABA (em cursos totalmente online por exemplo) façam o exame de ordem. Mas, em regra, os estudantes preferem estudar nas escolas que obtiveram o "selo de qualidade ABA", aceito em todos os estados. Empregadores também preferem egressos dessas escolas. Portanto, fazer um curso 100% online nos EUA trará dificuldades de avanço na carreira.

A pandemia da Covid-19 estimulou o incremento de cursos online nos EUA (assim como foi no Brasil) devido à necessária implementação de distanciamento social para barrar a contaminação pelo coronavírus. Durante a pandemia o ensino à distância foi a modalidade pedagógica seguida por praticamente todas as escolas de Direito nos EUA. Com o sucesso da vacinação e o progressivo controle da pandemia, a tendência nos EUA parece ser a de um progressivo avanço do ensino híbrido, como percebe um estudioso do ensino digital, Robert Ubell, em seu livro "Staying online: how to navigate digital higher education" (Routledge: Nova York, 2021, 158 páginas.)

Portanto, há nos EUA um número crescente de instituições planejando retornar com o ensino presencial de forma híbrida com o online. Nesse regime, os estudantes interagem presencialmente em salas de aula na maior parte do tempo, e complementam a carga horária com períodos de atividades online, o que pode trazer benefícios interessantes (economia de tempo e custos para os estudantes, maior acesso aos estudantes que moram afastados dos grandes centros, maior flexibilidade de horários, mais energia para estudar, treinamento no uso de ferramentas digitais etc.).

Alerte-se que para ser eficaz o ensino híbrido precisa de estratégia muito bem estruturada, adaptada e bem executada, com firme exigência e controle de participação dos alunos. Isso inclui a valorização dos professores, com uma remuneração adicional para o aumento de trabalho gerado no ensino digital com metodologias ativas, que exigem um rigoroso trabalho docente extraclasse.

5) Currículo dos cursos de Direito
O currículo mínimo dos cursos de Direito nos EUA recebe uma certa variação, como no Brasil. Centraliza-se na legislação federal, nos entendimentos da Suprema Corte e tribunais federais, e nos aspectos comuns da legislação estadual e local norte-americana. Há disciplinas básicas obrigatórias, ao lado de disciplinas optativas mais especializadas.

Por exemplo, no currículo da Harvard Law School são disciplinas comuns para alunos do primeiro ano: Processo Civil, Direito Constitucional, Contratos, Direito Criminal, Legislação e Regulamentação, Propriedade, Responsabilidade Civil. Já no segundo e terceiro anos o aluno pode escolher entre várias disciplinas de concentração, organizadas em programas amplos de estudo, que ajudam o estudante a definir uma área de atuação: Direito e Governo; Direito e Mudança Social; Direito e Negócios; Direito e História; Justiça Criminal; Direito Internacional e Comparado; Direito, Ciência e Tecnologia.

6) Materiais didáticos e metodologia de ensino
Os cursos de Direito nos EUA se utilizam de ferramentas tecnológicas que disponibilizam informações, orientações, materiais e resultados/notas aos alunos através de portais na internet, e possibilitam uma interação didática entre os alunos e professores. Uma das plataformas pedagógicas mais utilizadas é a Blackboard. Esses "ambientes virtuais de aprendizagem" (AVA) são variados entre as instituições, e também existem na maioria das melhores escolas de Direito no Brasil.

Um material didático muito utilizado nas escolas de Direito nos EUA é o casebook: um livro que deve ser comprado pelo estudante para uso intensivo, geralmente com mais de mil páginas e pesado [4], contendo uma seleção de casos julgados pelos tribunais sobre uma área do Direito, com questões sobre os fatos envolvidos em cada caso, informações relevantes, argumentos jurídicos, fundamentos, e a possível solução do caso. Mas o advogado Devin James Stone alerta que alguns casebooks mais se parecem com uma simples compilação de casos [5]. Livros de doutrina (textbooks) são menos usados, e livros-resumos são "lidos às escondidas" [6] porque sua leitura é desestimulada.

Quanto à metodologia a regra do ensino do Direito nos EUA é o uso de métodos participativos, nos quais o aluno é o protagonista das exposições e debates em sala de aula, servindo o professor como um entrevistador, mediador, orientador e avaliador das discussões. Entre os métodos mais utilizados estão o diálogo socrático (socratic debate), o método do caso (case method), a instrução por pares (peer instruction) e a sala de aula invertida (flipped classroom). Como informa Jordão Violin, nos cursos de Direito dos EUA são raras as aulas expositivas [7]. O aluno precisa se preparar para as aulas, estudando antecipadamente. Há também palestras.

O grande objetivo do curso de Direito nos EUA é instrumental, voltado à prática e solução de problemas: fazer o aluno ir aprendendo a pensar como um advogado (learning to think like a lawyer).

7) Regime de trabalho e remuneração dos professores de Direito
A seleção de professores nas escolas de Direito nos EUA não exige de todos o título de doutor em Ciência Jurídica (Juridical Science Doctor, J.S.D) ou doutor em Filosofia (PhD), e assim diversos juízes e advogados são também admitidos à docência, trabalhando em tempo parcial. Porém, os professores em tempo integral são os preferidos pelas instituições e também pelos alunos.

Como esclarece Jordão Violin, são duas as principais razões dessa preferência pela docência em período integral nos EUA: 1) a remuneração é muito boa, sendo comum que um professor de Direito em tempo integral ganhe um salário equiparado ao de um juiz; e 2) professores em tempo integral costumam produzir melhores resultados na docência e pesquisa, são mais eficazes [8].

Já no Brasil é comum a contratação de professores no regime horista, que paga por hora-aula em sala, com aulas distribuídas em apenas alguns horários na semana. Assim, geralmente os professores brasileiros em faculdades de Direito (sobretudo privadas) precisam se dedicar intensamente a outra profissão jurídica, já que os salários docentes são baixos e desestimulantes.

Prejudica-se, assim, o nível de dedicação do professor aos métodos de ensino e avaliação. Essa é a regra, salvo algumas faculdades privadas de elite e em boa parte das faculdades públicas. Isso precisa mudar urgentemente se quisermos melhorar o ensino jurídico no Brasil como um todo. Buscar alguma inspiração no sistema norte-americano, com adaptações, pode ser um bom começo.

 


[1] Curso agora oferecido pela University of Arizona, na Faculdade de Direito, que aceita alunos em meio-período. Disponível em: <https://online.arizona.edu/programs/undergraduate/online-bachelor-arts-law-ba>. Acesso: 15/11/2021.

[2] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Como se produz um jurista? O modelo norte-americano (Parte 21). In Revista Consultor Jurídico, 15/07/2015. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2015-jul-15/direito-comparado-produz-jurista-modelo-norte-americano-parte-21>. Acesso: 15/11/2021.

[3] Op. Cit.

[4] JAMES, Andrea. Books a weighty issue for law schools. In Seattle PI, 10/09/2008. Disponível em: <https://www.seattlepi.com/business/article/Books-a-weighty-issue-for-law-schools-1284858.php>. Acesso: 20/11/2021.

[5] STONE, Devin James (Legal Eagle). Why You Should Buy Used Casebooks In Law School. Youtube, 20/09/2018. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=BO8vtlAd21Q>. Acesso: 21/11/2021.

[6] GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito e educação jurídica nos Estados Unidos. In Revista Sequência, nº 48, julho/2004, p. 29-40.  

[7] VIOLIN, Jordão. Direito nos EUA e o método socrático. In JOTA, 05/11/2018, p. 02. Disponível em: <https://www.jota.info/carreira/direito-nos-eua-e-o-metodo-socratico-05112018>. Acesso: 20/11/2021.

[8] VIOLIN, Jordão. Estrutura e corpo docente: o que esperar de uma faculdade de Direito norte-americana? In JOTA, 10/12/2018, p. 02. Disponível em: <https://www.jota.info/carreira/estrutura-e-corpo-docente-o-que-esperar-de-uma-faculdade-de-direito-norte-americana-10122018>. Acesso: 20/11/2021.

Autores

  • Brave

    é doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Econômico e Social pela PUCPR, membro associado do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT), advogado, consultor e professor de Direito Tributário.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!