Opinião

Lei 14.245/2021: mais uma derrota para a defesa criminal

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25 de novembro de 2021, 20h35

Na última terça-feira (23/11), foi publicada a Lei 14.245/2021, que trouxe mudanças ao Código Penal, ao Código de Processo Penal e à Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, objetivando, nas palavras do próprio legislador, "coibir a prática de atos atentatórios à dignidade da vítima e de testemunhas e para estabelecer causa de aumento de pena no crime de coação no curso do processo".

O midiático caso da influencer Mariana Ferrer — nome emprestado à lei justamente por esse motivo  lançou os holofotes dos juristas para uma problemática já antiga no processo penal, qual seja: a sobrevitimização ou vitimização secundária  tratamento dispensando às vítimas pelas instâncias formais de controle apto a lhe gerar danos semelhantes ou superiores aos causados pela incidência do delito. 

O presente artigo não pretende negar o famigerado fenômeno da sobrevitimização. Impende, todavia, refletir sobre a real necessidade de criação da Lei 14.245/2021 e ainda se, de fato, ela se presta ao fim anunciado  e reconhecidamente importante  de resgatar a dignidade das vítimas e testemunhas no processo penal. Outrossim, esclarece-se que a tutela dos interesses da vítima não pode implicar afronta aos direitos do acusado, sendo extremamente necessário se buscar uma coexistência harmônica entre os interesses legítimos de ambos os lados.

Em meados do século 20, após as guerras mundiais e o afloramento da temática dos direitos humanos, a vitimologia, justamente por intermédio do estudo da sobrevitimização, demonstrou a importância de se resgatar a dignidade da vítima no processo penal e inaugurou uma fase que historicamente convencionou-se chamar de "redescobrimento" da vítima [1].

Os anseios do movimento vitimológico repercutiram em uma política criminal em favor do ofendido, o que desembocou posteriormente em alterações legislativas. A reconsideração da vítima no âmbito do processo penal contemporâneo é notoriamente perceptível em diplomas internacionais [2] e nacionais.

No Brasil, importantes alterações legislativas foram implementadas com o escopo de proteger os interesses da vítima no processo penal. Enumeraremos, a título meramente exemplificativo, inovações que representaram mudanças significativas no papel desempenhado pela vítima no processo penal. A Lei 9099/95 (Lei do Juizados Especiais Cíveis e Criminais) inaugurou no Brasil a chamada Justiça consensual, outorgando às vítimas a possibilidade de um papel ativo na solução dos conflitos, a exemplo do que ocorre na composição civil dos danos. A Lei 9714/98 (Lei das Penas Alternativas), por seu turno, criou nova modalidade de pena alternativa: prestação pecuniária, cujos valores têm como destinatários a vítima e seus dependentes. Destaca-se ainda a reforma do Código de Processo Penal, operada pelas Leis 11690/08 e 11719/08, que criou inúmeros dispositivos voltados aos interesses das vítimas, a exemplo da norma que determina que o juiz fixe um valor mínimo, a título de indenização pelos danos causados pelo delito, na sentença condenatória (artigo 387, inciso IV, do CPP), garantia de que acusado e vítima ocuparão lugares físicos distintos durante a instrução (artigo 201, §4º, do CPP).           

A vítima, ainda que não habilitada como assistente, tem direitos e deveres no processo penal. A título ilustrativo, citamos seu direito à proteção  efetivado por intermédio do Sistema Nacional de Assistência às Vítimas e Testemunhas Ameaçadas, composto pelos Programas Estaduais de Proteção e pelo Programa Federal Assistência a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas, normatizado pelo Decreto 3.518/00  e à informação, materializado, por exemplo, no direito que assiste às vítimas de serem informadas pelo Poder Judiciário sobre a entrada e saída do acusado na prisão, da data designada para audiência de instrução e da sentença e decisões posteriores que a mantenham ou modifiquem (artigo 201, §2º, do CPPB).

Acreditamos que a dignidade das vítimas e testemunhas estaria garantida se todas essas leis citadas, cujo rol é meramente exemplificativo, fossem aplicadas, e ainda se houvesse efetiva responsabilização dos agentes processuais que descumprissem seus deveres de agir com urbanidade, boa-fé [3] e lealdade processual.

Até coadunamos com a criação de leis que venham a trazer novas medidas enérgicas no combate à sobrevitimização. Já se sugeriu como solução não revitimizadora, por exemplo, que fosse aplicada a oitiva "acolhedora"  uma escuta especializada por intermédio de um depoimento especial nos moldes do que prevê a Lei nº 13.431/2017 em favor da criança e do adolescente  às mulheres vítimas de violência "baseada no seu gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico". Inclusive, conforme as 100 Regras de Brasília sobre Acesso à Justiça, poderíamos enquadrar essas mulheres na categoria das pessoas em condição de vulnerabilidade. Tal medida nos parece muito mais eficaz e inovadora [4].

A importância da valorização da vítima no processo penal não nos permite, contudo, assentir com a (falta de) lógica da Lei 14.245/2021, pois, tal como será doravante demonstrado, ou se trata de normativa despicienda ou então confere espaço para uma inconstitucional limitação do direito fundamental à ampla defesa.

A lei acima referida proíbe, no âmbito do CPP e dos Jecrim, "a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos", bem como "a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas".

De um lado, a partir do manejo do discurso farmacológico, afirmamos que a Lei 14.245/2021 configura um placebo jurídico. O processo penal é um local de limitada reconstrução da verdade histórica dos fatos que ensejaram a persecução penal. A curiosidade sobre fatos estranhos e não relacionados ao processo penal não devem, portanto, ser objeto de atuação de qualquer sujeito processual.

Dessa forma, as previsões positivadas nos artigos 400-A, inciso I, e 474-A, inciso I, ambos do CPP, e artigo 81, §1º-A, inciso I, Lei nº 9.099/95 são desprovidas de qualquer razão de ser, salvo se admitida, o que seria teratológico, a equiparação dos autos de um processo a um tabloide de fofocas. Na verdade, o exercício do poder de polícia pelo presidente do ato judicial já se mostraria suficiente para impedir que a indiscrição ou bisbilhotice movessem os sujeitos processuais. Essa mesma lógica deve ser observada diante do dever de urbanidade que impede, ou deveria impedir, qualquer violação à dignidade da pessoa humana.

Ademais, estamos diante de uma vedação genérica e vaga, que será preenchida de forma variada conforme o entendimento casuísta, quando sabemos que o processo penal se sujeita ao princípio da legalidade e taxatividade [5].

Para agravar ainda mais a situação, os juízes muitas vezes utilizarão uma suposta (e incabível em um contexto pós-moderno) lógica meramente subsuntiva para vedarem proposições defensivas: limitar-se-ão, como se o texto prescindisse de uma concretização normativa, a asseverar que o pleito "ofende a dignidade da vítima ou testemunha" ou que se tratam de "circunstâncias alheias aos fatos objeto do processo", sem fundamentar sua decisão com embasamentos extraídos da materialidade subjacente ao caso concreto.

Em outra banda, caso não compreendida como um placebo, a Lei nº 14.245/2021 denota mais um caso de uso simbólico do sistema penal objetivando, na verdade, o recrudescimento do trato dos acusados, violando inclusive a ampla defesa/plenitude de defesa (nos casos de competência do Tribunal do Júri). Vejamos.

Entendemos que a Lei 14.245/2021 tolhe da defesa  que, teoricamente, é ampla ou plena  a chance de apresentar uma argumentação que entende pertinente diante do caso concreto. A defesa técnica, mesmo que não concorde com essa limitação, consegue entender juridicamente as consequências de se ir de encontro às determinações legais, mas e o réu?

Ora, no processo penal, temos a defesa técnica e também a autodefesa. Como um réu poderá explicar as circunstâncias que envolveram a suposta prática do crime se lhe é vedado  de forma abstrata e genérica  qualquer comentário sobre um fato alheio, mas que ele interpretou, ainda que erroneamente, que motivou sua conduta ou mesmo que ele considere fundamental para servir, por exemplo, como um álibi ou tese defensiva?

Por fim, é preciso assinalar que a modificação legislativa poderá dar azo a violações da cláusula constitucional de razoável duração do processo, pois diante de limitações ao exercício da ampla/plena defesa, os devidos inconformismos se materializarão por meio de recursos e ações de impugnação autônomas, que, caso exitosos, implicarão retomada de fase processual já superada.

Enfim, a despeito da boa intenção que motiva a Lei nº 14.245/2021, são observadas violações ao direito constitucional de ampla defesa/defesa plena do réu. Outrossim, não será com placebo ou mero simbolismo que se assegurará à vítima um processo penal em que sua dignidade seja reafirmada, e no qual lhe seja possibilitada uma participação condizente com os anseios do movimento vitimológico.

Em suma, a Lei nº 14.245/2021 não protege efetivamente a dignidade das vítimas/testemunhas e ainda desprotege o direito do acusado à ampla defesa/defesa plena.

 


[1] Para uma melhor compreensão do apanhado histórico sobre o posicionamento da vítima no processo penal, que, nas lições de Molina, compreende três fases distintas, quais sejam: a) protagonismo ("idade de ouro"), b) neutralização e c) redescobrimento, vide MOLINA, Antonio Garcia-Pablos de. Criminología: una introducción a sus fundamentos teóricos. 7. ed. Valencia: Tirant to Blanch, 2013, p. 124-126.

[2] A título de exemplos, cita-se a Resolução 40/34, de 29-11-1985 da ONU (Declaração dos Princípios Básicos de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder), Resolução nº 27, de 28-09-1997 do Conselho da Europa (indenização às vítimas de infrações criminais), Resolução nº 1989/57, do Conselho Econômico e Social da ONU (Aplicação da Declaração dos Princípios Básicos de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder), Resolução nº 1990/22, do Conselho Econômico e Social da ONU (Vítimas de Criminalidade e de Abuso de Poder) e a Resolução nº 2002/12 do Conselho Econômico e Social da ONU (Princípios Básicos para Utilização de Programa de Justiça Restaurativa em Matéria Criminal).

[3] Sobre a extensão da exigência de boa-fé ao processo penal, vide DIDIER JR., Fredie; BOMFIM, Daniela. Pareceres, V. 2. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 25

[4] PAULA, Marcela Magalhães de, ROCHAUTOR Jorge Bheron. DE ARTEMISIA GENTILESCHI A MARIANA FERRER: A VITIMIZAÇÃO SECUNDÁRIA DE MULHERES VIOLENTADAS E O PROCESSO PENAL. ACINNET Journal, Varginha, MG, v. 7, p. 58 – 63, 2021. ISSN 2763-7395

[5] COSTA, José de Faria. Beccaria e o direito penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2015, p. 48-49

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