Controvérsias Jurídicas

O quarto de hotel e a inviolabilidade de domicílio

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

25 de novembro de 2021, 9h35

A Constituição Federal, em seu Título II, trata dos direitos e garantias fundamentais, com vistas a assegurar a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade.

Embora sejam garantias indispensáveis à concretização da dignidade humana e inerentes ao Estado democrático de Direito, podem ser relativizadas de acordo com as peculiaridades do caso concreto, como observa Celso de Mello: "Não há no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição" [1].

Surgindo conflito entre dois ou mais princípios constitucionais, não ocorre a revogação de um pelo outro, mas o sopesamento dos bens jurídicos tutelados, a fim de verificar qual deve prevalecer na hipótese concreta.

É o caso da relativização do direito à intimidade (CF, artigo 5º, X) e da inviolabilidade do domicílio (CF, artigo 5º, XI), nas hipóteses de flagrante delito ou desastre, para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial que conceda a autorização para o ingresso.

Para fins da garantia da inviolabilidade, domicílio não tem, nem pode ter o significado a ele atribuído pelo Direito Civil, não se limitando à residência do indivíduo local onde o agente se estabelece com ânimo definitivo de moradia (CC, artigo 70), tampouco ao lugar o qual a pessoa elege para ser o centro de sua vida profissional. A interpretação deve ser a mais ampla e protetiva possível, devendo ser entendido como qualquer compartimento habitado, aposento ocupado de habitação coletiva ou qualquer compartimento não aberto ao público, no qual se exerce atividade ou profissão [2].

O STF [3] já pacificou entendimento no sentido de que o quarto de hotel também deve ser entendido como domicílio e está amparado pela garantia constitucional: "A proteção constitucional dispensada ao domicílio, cuja noção conceitual que é ampla entende-se, dentre outros espaços privados o aposento ocupado de habitação coletiva (como um simples quarto de hotel)".

Com relação à hipótese de exceção da garantia em razão da situação de flagrante delito, o STF [4] definiu, em repercussão geral [5], que o ingresso forçado em domicílio sem mandado judicial apenas se revela legítimo a qualquer hora do dia, inclusive durante o período noturno quando amparado em fundadas razões, devidamente justificadas pelas circunstâncias do caso concreto, que indiquem estar ocorrendo, no interior da casa, situação de flagrante delito.

Nesse sentido, também o STJ: "A mera intuição acerca de eventual traficância praticada pelo recorrido, embora pudesse autorizar abordagem policial, em via pública, para averiguação, não configura, por si só, justa causa a autorizar o ingresso em seu domicílio, sem o consentimento do morador que deve ser mínima e seguramente comprovado e sem determinação judicial" [6].

Assim, pacificada na jurisprudência a necessidade de existência de fundadas razões indicativas da situação de flagrância, para que o ingresso em domicílio alheio sem autorização (judicial ou do morador) seja considerado legal e, consequentemente, a prova obtida lícita. Para que a garantia da inviolabilidade seja afastada, nesse caso, não pode o agente público basear-se apenas em meras intuições ou hipóteses.

A partir dessas informações, verifica-se que: a) o quarto de hotel também pode ser compreendido como domicílio para fins de incidência da proteção constitucional; e b) para que o ingresso de agentes públicos nesse compartimento habitado, sem autorização, seja considerado lícito, deve-se comprovar a existência de fundadas razões e circunstâncias de fato indicativas de que ali se comete um crime.

Recentemente, o STJ, no julgamento do Habeas Corpus nº 659.527-SP [7], de relatoria do ministro Rogério Schietti, por unanimidade da 6ª Turma, firmou a tese no sentido de que "é lícita a entrada de policiais, sem autorização judicial e sem o consentimento do hóspede, em quarto de hotel não utilizado como morada permanente, desde que presentes as fundadas razões que sinalizem a ocorrência de crime e hipótese de flagrante delito", publicada no Informativo nº 715.

Segundo consta na denúncia do processo, policiais civis receberam a informação de que o paciente armazenava entorpecentes em determinado quarto de hotel da região da Praça da Sé para abastecimento do tráfico de drogas local, de modo que estaria incurso no artigo 33 da Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006) na modalidade "ter em depósito", atribuindo à conduta caráter de crime permanente, no qual a situação de flagrante delito se protrai no tempo. Previamente à prisão em flagrante foram realizadas diligências investigativas para apurar a veracidade da informação recebida.

No momento da prisão, foram encontradas 164 porções de cocaína (98,3g) e 257 porções de maconha (607,8g) armazenadas no quarto do hotel, que fundamentaram o processo.

No caso sub judice, a defesa alega que o processo instaurado em desfavor do paciente é nulo, porquanto deflagrado a partir de elementos de informação ilícitos, obtidos por meio de violação de domicílio. Aduz, que nem mesmo a "entrada franqueada" ocorreu, pois os policiais não apresentaram qualquer demonstração de autorização nesse sentido.

Ao denegar a concessão da ordem, o relator asseverou: "Embora o quarto de hotel regularmente ocupado seja, juridicamente, qualificado como 'casa' para fins de tutela constitucional da inviolabilidade domiciliar (artigo 5º, XI), a exigência, em termos de standard probatório, para que policiais ingressem em um quarto de hotel sem mandado judicial não pode ser igual às fundadas razões exigidas para o ingresso em uma residência propriamente dita, a não ser que se trate (o quarto de hotel) de um local de moradia permanente do suspeito. Isso porque é diferente invadir uma casa habitada permanentemente pelo suspeito e até por várias pessoas (crianças e idosos, inclusive) e um quarto de hotel que, como no caso, é aparentemente utilizado não como uma morada permanente, mas para outros fins, inclusive, ao que tudo indica, o comércio de drogas". E ainda destacou: "Presentes as fundadas razões que sinalizavam a ocorrência de crime e porque evidenciada, já de antemão, hipótese de flagrante delito, é regular o ingresso da polícia no quarto de hotel ocupado pelo acusado, sem autorização judicial e sem o consentimento do hóspede. Havia elementos objetivos e racionais que justificaram o ingresso no referido local, motivo pelo qual são lícitos todos os elementos de informação obtidos por meio dessa medida, bem como todos os que deles decorreram".

Agiu acertadamente o Superior Tribunal de Justiça ao diferenciar o standard probatório mínimo necessário para validar o ingresso em quarto de hotel não habitado em caráter permanente, sem autorização judicial, das fundadas razões indispensáveis à violação de uma residência propriamente dita.

Ao estabelecer direitos e garantias fundamentais, a Constituição Federal busca limitar o poder do Estado, a fim de evitar a prática de abusos por parte de seus agentes. Objetiva-se garantir ao indivíduo condições existenciais mínimas para uma convivência digna no meio social. Todavia, não é crível que tais garantias sejam invocadas com o intuito de acobertar práticas criminosas e garantir a impunidade dos infratores. A função social das garantias constitucionais não pode ser desvirtuada para servir de abrigo àqueles que infringem o ordenamento jurídico.

 


[1] MS 23452, Relator: Celso de Mello, Data do Julgamento: 16/09/1999, Tribunal Pleno, Data da Publicação DJ 12-05-2000

[2] CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 28ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2021.

[3] STF – RHC: 90376 RJ, Relator: CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 03/04/2007, Segunda Turma, Data de Publicação: DJe- 18-05-2007.

[4] RE nº 603.616/RO, Rel. ministro Gilmar Mendes, DJe 8/10/2010.

[5] Tema 280: provas obtidas mediante invasão de domicílio por policiais sem mandado de busca e apreensão.

[6] REsp nº 1.574.681/RS, Relator: Rogério Schietti, Data de Julgamento: 20/04/2017, T6 – SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 30/05/2017.

[7] HC 659.527-SP, Rel. Minº Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, por unanimidade, julgado em 19/10/2021, DJe de 25/10/2021.

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