Opinião

Livre manifestação do pensamento: um direito de todos

Autor

  • César Dario Mariano da Silva

    é procurador de Justiça (MP-SP) mestre em Direito das Relações Sociais (PUC-SP) especialista em Direito Penal (ESMP-SP) professor e palestrante autor de diversas obras jurídicas dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal Manual de Direito Penal Lei de Drogas Comentada Estatuto do Desarmamento Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade publicadas pela Editora Juruá.

25 de novembro de 2021, 13h48

No período pós-regime militar, não me lembro de situações como as ocorridas na atualidade, em que pessoas tenham sido processadas e presas acusadas de delitos de opinião.

Algumas dessas pessoas estão sendo processadas ou investigadas por crimes de opinião previstos na Lei de Segurança Nacional, que será brevemente revogada pela Lei nº 14.197, de 1º de setembro deste ano, que cuida dos crimes contra o Estado democrático de Direito e entrará em vigor 90 dias após sua publicação.

Os delitos de opinião, aqueles cometidos por escrito ou palavras, deixarão de ser tipificados na Lei nº 14.197/2021 e passarão a ser crimes comuns, descritos no Código Penal, passíveis de transação penal, de competência do Juizado Especial Criminal, com exceção da calúnia agravada, e o mesmo delito ou a difamação, quando cometidos ou divulgados em quaisquer modalidades de redes sociais da rede mundial de computadores, cuja pena é triplicada.

Inclusive, a nova lei incluiu parágrafo único no artigo 286 do Código Penal, que traz dispositivo que era previsto como crime contra a segurança nacional pela Lei nº 7.170/1983 (artigo 23), expressamente revogado.

De acordo com o novo dispositivo, será punido com a mesma pena da figura fundamental (artigo 286 do CP) aquele que incitar, publicamente, não a um delito qualquer, mas à animosidade entre as Forças Armadas, ou entre estas e os poderes da República (Executivo, Legislativo e Judiciário), as instituições civis ou a sociedade. A punição será muito branda, qual seja, três a seis meses de detenção ou multa, o que, por óbvio, dificilmente ensejará pena de prisão e nem é passível de decretação de prisão preventiva ordinariamente, exceto se reincidente em crime doloso; ter descumprido medida protetiva de urgência em crimes envolvendo violência doméstica ou familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência; ou, ainda, se o autor do delito não for identificado (artigo 313 do CPP).

Como norma de encerramento, a novatio legislação traz o artigo 359-U, que dispõe sobre a liberdade de expressão e de manifestação do pensamento, direito fundamental e já consagrado na Constituição Federal (artigo 5º, IV), tão vilipendiado na atualidade. Dispõe a norma que: "Não constitui crime previsto neste Título a manifestação crítica aos poderes constitucionais nem a atividade jornalística ou a reivindicação de direitos e garantias constitucionais por meio de passeatas, de reuniões, de greves, de aglomerações ou de qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais".

O direito à livre manifestação do pensamento consiste justamente em poder dizer o que pensa sobre algo ou alguém, inclusive poderes constituídos e seus agentes, sem que importe crime (atipicidade formal e material). Essa regra constitucional é fruto de um país democrático e uma lei, que tutela justamente o Estado democrático de Direito, nunca poderia punir a manifestação do pensamento, que é um dos seus pilares.

Qualquer pessoa ou instituição, não estando livre os chefes de Estado, de poder e outros agentes públicos e políticos, pode ser criticada, cabendo ao Poder Judiciário realizar juízo de ponderação de valores para chegar à conclusão sobre a natureza jurídica da crítica (exercício de um direito ou crime), observando que medidas desproporcionais devem ser coibidas.

Do mesmo modo, não é possível criminalizar as atividades jornalísticas e de comunicação, que também possuem fundamento constitucional. O artigo 5º, inciso XI, da Magna Carta dispõe ser livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença. No mesmo sentido, o disposto no artigo 220 da Carta Constitucional, que veda qualquer tipo de restrição à manifestação do pensamento, à criação, à expressão e à informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, observadas outras regras constitucionais, que devem conviver harmonicamente sem que haja qualquer tipo de excesso. E complementa o dispositivo seu §2º, que veda qualquer espécie de censura de natureza política, ideológica e artística. 

Por fim, reivindicações de direitos e garantias constitucionais, por meio de passeatas populares, reuniões, greves ou quaisquer outras formas de manifestações políticas com propósitos sociais, não podem ser consideradas infrações penais. Nunca um direito protegido pela própria Constituição Federal pode ser criminalizado, o que seria paradoxal, ilógico e certamente inconstitucional.

Aliás, cuidando-se de norma penal benéfica ao acusado ou investigado, deve ser aplicada analogicamente a outros tipos penais que punem os delitos de opinião, como os contra a honra (artigos 138, 139 e 140 do CP) e incitação ao crime (artigo 286 do CP).

Percebe-se que, com a entrada em vigor da nova legislação, muito dificilmente haverá condenação à pena privativa de liberdade para as pessoas presas em razão de delitos de opinião, que passam a ser previstos no Código Penal. Tal intercorrência fatalmente resultará em nova análise da situação processual de cada um dos presos (ou com mandado de prisão expedido), já que a maioria dos delitos imputados é de opinião e punidos com penas amenas, lembrando que norma penal mais benéfica sempre retroage em favor do acusado e que prisão domiciliar não deixa de ser medida constritiva da liberdade.

Muita bem-vinda a nova legislação, posto que, na atualidade, em decorrência de algumas decisões judiciais, inclusive com determinação de medidas invasivas e constritivas a direitos individuais, o medo ou o receio se fazem presentes e muitas pessoas estão se calando, não mais externando suas opiniões publicamente, sejam elas quais forem. Até mesmo uma simples curtida a publicação em redes sociais é evitada, o que é muito triste e preocupante, já que esse medo ou receio pressupõem cerceamento a um direito essencial no estado democrático, o que é típico de países totalitários.

Um dos atributos da democracia é a possibilidade, aliás direito fundamental, de se manifestar, de dizer o que pensa sobre algo ou alguém, inclusive sobre política. Como já dizia Aristóteles, o homem é um animal, um ser político por natureza, isto é, como vive em sociedade, está interessado em assuntos a ela relacionados, posto que influem diretamente na sua vida.

E Platão, com a sabedoria dos Gregos, complementa: "O maior castigo para aqueles que não se interessam por política é que serão governados pelos que se interessam".

Por isso, não é dado calar aqueles que debatem assuntos políticos e externam sua ideologia, seja ela qual for, exceto as proibidas por lei, como o nazismo.

O que não é possível ocorrer é extrapolar o limite entre a liberdade de manifestação do pensamento e do ato ilícito, nem sempre facilmente perceptível e que depende muito do subjetivismo de quem interpreta o caso concreto.

É comum a confusão existente entre o exercício da livre manifestação do pensamento com atos que a extrapolam, violando outro direito fundamental, como a honra, que deve ser igualmente protegida, com fundamento no artigo 5º, inciso X, da Carta Magna, que dispõe: "São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação".

Por outro lado, a livre manifestação do pensamento também é direito fundamental, encontrando-se protegida pelo artigo 5º, inciso IV, da Carta Constitucional, que diz: "É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato". É uma norma constitucional, que faz parte das chamadas liberdades públicas, integrante do núcleo intangível da Constituição por ser um dos direitos inerentes à cidadania e à personalidade.

A liberdade de manifestação pressupõe o direito de externar suas ideias, sua verdade, que não necessita serem a da maioria das pessoas. O cerne desse direito fundamental é justamente poder contrariar qualquer pensamento majoritário, que nem sempre é o mais correto e nem reflete a verdade, que pode variar para cada um. Democracia pressupõe a convergência e, também, a divergência de ideias e de ideologia.

Como o direito à livre manifestação do pensamento é de cunho constitucional, sendo na realidade uma regra, ou existe ou não existe, vale ou não vale. Somente uma outra norma constitucional poderia reduzir esse direito.

Lembro, ainda, que o direito à livre manifestação do pensamento é o primeiro a ser suprimido ou limitado em países totalitários (censura).

Deve ser realizado juízo concreto sobre o que é crime ou o exercício do direito de crítica, que muitas vezes é exercido de forma contundente, mas nem por isso deixa de ser crítica.

Todo delito de opinião deve possuir a finalidade criminosa, ou seja, de descumprir a lei de modo que se adeque a uma norma penal incriminadora que a puna, como os crimes contra a honra, ameaça, incitação ao crime ou mesmo racismo.

A simples crítica, o debate de ideias, a insatisfação com alguma coisa, a intenção de corrigir ou de se defender, não são condutas típicas penalmente.

Não se deve confundir o exercício de direito protegido constitucionalmente com a prática de crime, que ocorre quando o limite entre um e outro é extrapolado, advindo a perfeita adequação típica.

Enfim, qualquer forma de censura, mesmo que por meio transverso, é vedada constitucionalmente. Extrapolou o limite entre a livre manifestação do pensamento e a prática de crime, que se puna a conduta, mas não é permitido calar o cidadão previamente, antevendo o que ele irá falar.

Autores

  • é procurador de Justiça do MP-SP, professor, mestre em Direito da Relações Sociais pela PUC-SP, especialista em Direito Penal pela ESMP-SP, palestrante e autor de diversas obras jurídicas, entre elas "Comentários à Lei de Execução Penal", "Manual de Direito Penal", "Lei de Drogas Comentada", "Estatuto do Desarmamento", "Provas Ilícitas" e "Tutela Penal da Intimidade", publicadas pela Editora Juruá.

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