Opinião

O que acontece com o Direito Penal quando a lei leva o nome da vítima?

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24 de novembro de 2021, 20h36

O Direito Penal é uma criação moderna. Do ponto de vista antropológico, o Direito Penal surge com o brocardo latino esculpido pelo Feuerbach: nullum crimen, nulla poena sine lege, donde extrai-se que não existem "fontes" para o Direito Penal senão a lei.

O Direito Penal moderno, firmado nas exigências de legalidade e anterioridade, surge, assim, como uma garantia. A demanda por previsibilidade da lei penal existe tão somente como uma forma de proteção ante o arbítrio da autoridade pública, que não mais poderia punir arbitrariamente. A modernidade exige critério. Esse é o preço da civilização.

Von Liszt, um dos cânones do Direito Penal moderno, nos fez aprender que o Código Penal é a Magna Charta Libertatum do delinquente. Não protege a ordem jurídica, nem a comunidade, mas, sim, o indivíduo que contra esta agiu. Liszt nos ensinou o que Nelson Hungria afirmou ser o princípio central de toda a lógica criminal: o Direito Penal serve ao acusado e somente nele se justifica.

Toda essa introdução serve para comentarmos o que recentemente voltou à tona  agora em forma de lei penal  para balançar o cenário jurídico brasileiro. Refiro-me a (agora lei) Mariana Ferrer. A lei faz referência ao polêmico caso de uma moça que disse ter sido vítima de estupro. Longe de comentar o mérito do processo, este texto se propõe a refletir sobre o seguinte problema: o que o Direito Penal se torna quando a lei penal recebe o nome da vítima?

Aqui nesse ponto é importante estabelecer a diferença entre as ciências criminais: o Direito Penal, como dito, serve para impor limites à violência do Estado. A Criminologia, por sua vez, se propõe a estudar as determinações do crime e os processos de criminalização, enquanto a Política Criminal se ocupa em estabelecer formas para lidar com a prevenção, a repressão e o tratamento das consequências da criminalidade.

Assim, é imperioso destacar que não cabe ao Direito Penal promover nenhuma atividade que se distancie da defesa do indivíduo que está ameaçado pela sanção. Não é razoável um Direito Penal que se proponha a batizar as leis com os nomes das vítimas. Quando o Direito Penal supervaloriza o papel da vítima como protagonista de interesse, ele desvirtua-se do seu próprio fim, que é a proteção do acusado.

O Direito Penal e o Processo Penal não existem para a vítima. Não que a vítima não tenha direitos ou importância, pois do ponto de vista da Política Criminal, o tratamento das consequências da criminalidade é algo relevante e digno de estudo particular. Mas o lugar para discutir o direito da vítima definitivamente não é no campo do Direito ou do Processo Penal. Existe uma ciência específica para isso, mas elas não se confundem. 

Além do mais, o marco civilizatório deixado ao longo do processo histórico da humanidade, no que diz respeito à relação indivíduo-Estado, nos comprova que sempre que o processo penal recebe as demandas das vítimas, ele se torna um processo meramente revanchista.

Toda a conquista civilizatória dos últimos 500 anos consistiu justamente em empurrar para fora do Direito e do Processo Penal essa pretensão de vingança, se transformando e se reformulando para cumprir as exigências mais racionais do ponto de vista preventivo, e não podendo se limitar às características retributivas há muito superadas pela Criminologia moderna.

O Processo Penal que toma para si a função de proteger os interesses das vítimas ou da sociedade torna-se retributivo, irracional, contraproducente e ultrapassado. Torna-se, desse modo, tudo aquilo que não poderia vir a ser. A Lei Mariana Ferrer é incompatível com o Direito Penal moderno  e a sua proposta é irreconciliável com o Estado de Direito que se firma nos rígidos padrões democráticos e republicanos.

A Constituição da nossa República afirma que a advocacia  e a defesa em geral é indispensável à manutenção da Justiça. A mesma Constituição afirma que a defesa é sempre ampla  e amplitude implica em plenitude. Não pode o Estado determinar como a defesa deve se portar no processo. Já é pressuposto, constitucionalmente, frise-se, que a defesa é ampla. A amplitude é um conceito amplo  e o pleonasmo enfático serve para retratar o absurdo que é propor limites à plenitude do exercício da defesa.

Além do mais, quanto ao próprio critério de tipicidade estabelecido no corpo da lei, este não merece maiores delongas. A ambiguidade é teratológica e beira as raias da má-fé. Quem, afinal, poderia dizer com segurança o que é ofensivo à dignidade da vítima senão a própria vítima? Esse é o princípio do fim da defesa.

Heleno Fragoso adverte sobre a identificação de uma lei vaga no caso concreto, e diz que "é evidente que a identificação, no caso concreto, de tipos vagos e indeterminados reflete a violação do princípio da reserva legal, pois vai depender, em última análise da sensibilidade jurídica e da vocação democrática do juiz"  e sabemos por experiência empírica do sistema prisional brasileiro que não se pode dar discricionariedade para o juiz julgar, ao tempo em que se espera que ele exerça a função democrática do Direito.

O Brasil, que tanto se espelha no Direito estadunidense, deveria nesse caso em específico proceder como ensinou o juiz da Suprema Corte norte-americana Neil Gorsuch quando disse: "Quando se aprova uma lei vaga, o papel dos tribunais segundo nossa Constituição não é formular uma lei nova e mais clara para substituí-la, mas tratar a lei como uma nulidade e convidar o Congresso a tentar novamente". Esse é o ponto: um erro deve ser visto como um erro  os limites do mundo são os limites da linguagem e esse problema é profundamente conceitual.  

No fim, importa destacar que não é correto que o remédio seja mais prejudicial que a doença. Existem critérios à boa técnica legislativa para contornar este problema — e a solução, assim como tudo, se encontra fora do Direito Penal.

Precisamos, na verdade, pensar em formas alternativas para lidar com os problemas concretos da realidade concreta. Estamos há mais de 200 anos relatando o fracasso do Direito Penal e não será pela via do Direito Penal que resolveremos essa aporia: o remédio não pode ser pior que a doença. Não se cura um problema causando outro muito maior.

A verdade é que todo esse engodo legislativo não passa de um placebo venenoso. A pergunta que fica é: a quem interessa fragilizar a defesa criminal?

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