Opinião

Acesso aos tratamentos à base de cannabis sativa: procedimento judicial

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23 de novembro de 2021, 17h04

Existem hoje diversos tratamentos que utilizam produtos à base de cannabis, já aprovados pela Anvisa [1], mas que dependem em sua maioria da importação da substância, o que esbarra nos altos valores praticados e tornam o produto inacessível pela maior parte da população. Nesse caso, é possível recorrer ao Poder Judiciário para garantir o tratamento que foi indicado pelo médico responsável.

Não raro, utiliza-se da via judicial para "obrigar" o Estado a arcar com os medicamentos do paciente, alternativa esta extremamente custosa ao poder público, porque não provém do devido planejamento e elaboração de políticas públicas de acesso à saúde. E, por esse aspecto, tais meios acabam se mostrando menos vantajosos frente à possibilidade de extração caseira de óleo da planta. Porém, levando-se em consideração que o atual ordenamento jurídico brasileiro criminaliza o plantio da cannabis, a fim de garantir o direito fundamental de acesso à saúde, faz-se necessário o socorro ao Habeas Corpus preventivo.

Ainda que inserido na parte de recursos do Código de Processo Penal (CPP), o Habeas Corpus é entendido como uma ação constitucional e está previsto no artigo 5º, inciso LXVIII, da Constituição Federal (CRFB). Trata-se, em suma, de um "remédio constitucional" que tem por objeto a proteção do direito de liberdade de locomoção, e a sua espécie preventiva se destina, especialmente, a evitar lesão a esse direito.

Assim, o Habeas Corpus preventivo é utilizado quando um indivíduo "se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder", mesmo que tal ameaça represente um evento longínquo. Uma vez concedida ordem de Habeas Corpus, a legislação prevê que o juiz emitirá um salvo-conduto, ou seja, uma ordem para que a autoridade coatora não efetive o constrangimento contra o paciente.

A ação pode ser proposta por qualquer particular ("impetrante") que esteja em favor e no interesse do "paciente" (quem sofre a ameaça ou o constrangimento)  o qual deve ser uma ou mais pessoas individualizadas e determinadas , e contra a autoridade coatora ("impetrado"), que não é necessariamente uma autoridade pública [2].

Cultivo e HC preventivo
Como já mencionado, muitas pessoas que sofrem de doenças cujos sintomas poderiam ser tratados com produtos derivados da cannabis. Entretanto, ainda que providas da prescrição médica necessária, elas se veem impossibilitadas de iniciar o tratamento, porque não possuem condições financeiras para arcar com a compra ou a importação do produto, restando, como alternativa terapêutica, o cultivo da planta para fins de extração caseira do óleo medicinal.

Contudo, a Lei Federal nº 11.343/2006, mais conhecida como Lei de Drogas, enquadrou como crime de tráfico o cultivo de plantas que constituem matéria-prima para a produção de drogas, conforme o artigo a seguir:

"Artigo 33  Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena – reclusão de cinco a 15 anos e pagamento de 500 a 1500 dias-multa.
§1º. Nas mesmas penas incorre quem:
I – importa, exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, expõe à venda, oferece, fornece, tem em depósito, transporta, traz consigo ou guarda, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas;
II – semeia, cultiva ou faz a colheita, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, de plantas que se constituam em matéria-prima para a preparação de drogas;
(…)".

Isso significa dizer que, para a pessoa que "semeia, cultiva ou faz a colheita" da cannabis sativa para extração do óleo medicinal, existe um risco de ser enquadrada no crime de tráfico ilícito de drogas e, assim, ficar suscetível às medidas repressivas por parte do aparato estatal, no caso, a pena de prisão.

Embora o cultivo de que aqui tratamos não esteja atrelado à produção de drogas para uso recreativo próprio ou de terceiros, o extenso rol de condutas previstas na Lei de Drogas não traz qualquer ressalva acerca da destinação do produto que pudesse, de imediato, representar um "salvo-conduto" ao seu plantio.

É nesse cenário, portanto, que o Habeas Corpus preventivo ganha relevância como ferramenta para evitar qualquer constrangimento ou privação de liberdade de quem já realiza o cultivo como única ou última alternativa para o seu tratamento. Em se tratando de modalidade preventiva, é importante observar que essa ação é cabível para evitar lesão à liberdade de locomoção de quem se encontra ameaçado de sofrê-la, e isso implica que o indivíduo já esteja incorrendo em ao menos uma das condutas previstas na lei, no caso, que ele esteja cultivando a cannabis.

De outro modo, a mera expectativa ou pretensão de plantar a cannabis é irrelevante sob o ponto de vista jurídico, porque não corresponde a nenhuma conduta descrita como crime. Igualmente irrelevante para o Direito é a importação particular das sementes da maconha para fins medicinais, sendo considerada uma conduta atípica [3], porque não preenche os elementos identificadores do crime.

Importante ressaltar que o artigo 28 da mesma lei também criminaliza o porte de drogas para consumo pessoal, podendo ser criminalizada a pessoa que cultiva a planta para preparação de pequena quantidade de droga para consumo próprio, conforme segue:

"Artigo 28  Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
I – advertência sobre os efeitos das drogas;
II – prestação de serviços à comunidade;
III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
§1º. Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.
[…]".

Apesar desse dispositivo não instituir uma pena de prisão  o que em tese não ensejaria a apresentação de um HC , nada impede que um indivíduo que cometa a conduta descrita no parágrafo 1º do artigo 28 seja enquadrado no próprio crime de tráfico do artigo 33, parágrafo 1º, inciso II, seja porque os verbos que descrevem o tipo são os mesmos (semear, cultivar ou colher), seja porque não existem critérios objetivos para definir o que seria uma "pequena quantidade". Inclusive, esse tema está em pauta no julgamento do Recurso Extraordinário nº 635.659 perante o STF.

O salvo-conduto não representa, portanto, uma permissão para o indivíduo cometer atos considerados crimes, mas, sim, uma ordem para impedir o constrangimento, por parte das autoridades, de quem já realiza o cultivo para fins medicinais. Como consequência lógica, é equivocada a pretensão de propor um HC preventivo com o fim de conceder, ao paciente interessado, espécie de autorização para o cultivo de cannabis.

Por fim, apesar da lei não impor ao paciente ou ao impetrante a assistência de um advogado, ressaltamos a importância desse profissional na garantia de uma defesa qualificada, estratégica e cuidadosa, sobretudo porque se está a preservar direitos fundamentais como a saúde e a liberdade de locomoção.

 

Referência bibliográfica
Badaró, Gustavo Henrique. Processo penal  3ª Ed., São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2015.

 


[1] Anvisa. Orientações sobre importação de produtos derivados de Cannabis. Disponível em: <http://antigo.Anvisa.gov.br/importacao-de-canabidiol>. Acesso em 19/11/2021.

[2] Exemplos comuns de particulares como coatores são os casos de asilos ou clínicas de tratamento de dependentes químicos que impedem a saída da pessoa internada.

[3] Precedentes: STJ. 3ª Seção. EREsp 1624564-SP, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 14/10/2020 (Info 683); e STF. 2ª Turma. HC 144161/SP, relator ministro Gilmar Mendes, julgado em 11/9/2018 (Info 915).

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