Tribuna da Defensoria

A prerrogativa de requisição da Defensoria Pública

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23 de novembro de 2021, 8h02

O grande desafio do projeto democrático brasileiro é a construção de um modelo capaz de promover a gradual superação do padrão estrutural de desigualdade no país, inclusive, na seara judicial, dado o reconhecimento de que, a despeito das modificações substanciais que o ordenamento jurídico tem sofrido desde a promulgação da Constituição de 1988, o acesso à justiça, assim como a efetivação de direitos fundamentais básicos, permanece sendo privilégio de uma pequena parcela da população brasileira.

Tomando por base tal contexto, ganha destaque o papel desenvolvido pela Defensoria Pública, entidade constitucionalmente incumbida de prestar assistência judiciária integral e gratuita aos necessitados e que tem por missão atuar na consolidação do regime democrático e na promoção dos direitos humanos, proporcionando, inclusive, a conscientização e educação de seus assistidos em direitos e deveres, assegurando-lhes condições de poderem se expressar juridicamente, com base em mecanismos postos à disposição deles para combater essa desigualdade.

Nessa esteira, enfatizam Dayrell e Kirchner (2020, p. 156) que a Defensoria Pública hoje figura como “porta voz da população vulnerável do país, sendo indubitavelmente a instituição – daquelas que compõem o sistema de justiça – que está mais próxima dessa parcela social marginalizada”.

Diante desse quadro, ao longo dos últimos dias, presenciamos a mobilização de juristas, jornalistas, artistas, influenciadores e movimentos sociais diversos na defesa da Defensoria Pública e da prerrogativa de requisição da instituição, a qual possibilita, dentre outros, que pessoas mais humildes tenham acesso a documentos básicos, como, por exemplo, a certidão de nascimento. Deveras, tal prerrogativa se afigura fundamental da missão constitucional de defensoras e defensores públicos, principalmente na atuação coletiva e extrajudicial da Instituição.

Cumpre ter presente, nesse ponto, o fato de que embora tenha pouco tempo de existência, a instituição é considerada pela sociedade brasileira como a mais importante do Brasil na garantia de direitos fundamentais. É o que revela levantamento recente, por encomenda da Associação dos Magistrados do Brasil , concluído pela Fundação Getúlio Vargas e pelo Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas, divulgado em 2019, que atesta que a Defensoria Pública é a instituição do sistema de Justiça mais conhecida, confiável e mais bem avaliada pela sociedade (78% dos brasileiros aprovam a sua atuação), alcançando o maior índice de aprovação entre as instituições pesquisadas.

Além de possibilitar, de forma gratuita, o acesso à justiça aos mais necessitados, a Defensoria, de forma cada vez mais intensa, também tem logrado êxito em alcançar a resolução de conflitos de forma extrajudicial, através da requisição de providências junto aos órgãos públicos, sobretudo no tocante às demandas de saúde, contestação de políticas públicas e combate à situações de opressão e violação de direitos humanos.

Nesse sentido, a título de mera ilustração, cabe mencionar a iniciativa da Defensoria Pública de Minas Gerais, a qual, vem buscando um acordo junto à Prefeitura de Janaúba (norte de Minas), objetivando que os atingidos pela tragédia da Creche Gente Inocente, ocorrida em 2017, sejam indenizados. Para municiar as ações judiciais interpostas em desfavor do município, o defensor público responsável pelo caso, por meio do uso da prerrogativa de requisição, enviou ofício à prefeitura municipal de Janaúba, solicitando o histórico da pasta funcional do vigia responsável pelo incêndio, o histórico de documento psicológico/psiquiátrico do vigia perante os órgãos municipais competentes, especialmente o Centro de Atenção Psicossocial; além de informações acerca das condições estruturais e de funcionamento da creche.

Destaque-se, ainda, que priorizando a solução extrajudicial de conflitos, em 2020, a Defensoria Pública do Rio Grande do Norte, também por meio da prerrogativa de requisição, emitiu recomendações às Prefeituras de Mossoró e Parnamirim para que, através das secretarias municipais de educação, fosse mantida a oferta de merenda escolar durante o período de pandemia do coronavírus (Covid-19), objetivando atender às famílias dos estudantes da rede pública de ensino. A medida, além de satisfazer os interesses dos mais vulneráveis, também implicou economia de tempo de resposta à demanda.

De fato, sem embargo do importantíssimo papel consistente na defesa individual e coletiva de direitos nas demandas judiciais, não se deve olvidar o fato de que a atual configuração institucional da Defensoria lhe permite ir além, não encontrando sua missão limitada à prestação de orientação jurídica e exercício da defesa dos vulneráveis, já que ainda constitui sua função institucional, dentre outras, promover, prioritariamente, a solução extrajudicial dos litígios, valendo-se para tal, dentre outros, de sua prerrogativa de requisitar documentos.

A Procuradoria-Geral da República, no entanto, questiona, junto ao Supremo Tribunal Federal, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.852, dispositivos de leis estaduais e do Distrito Federal que garantem poder de requisição às Defensorias Públicas, ao argumento, em síntese, de que tais regras conferem ao defensor público um atributo que advogados privados não têm.

A despeito das razões apresentadas pelo Ministério Público Federal, o ministro relator da ação, Edson Fachin, no último dia 12 de novembro, votou pela improcedência do pedido, destacando que "resta evidente não se tratar [a Defensoria] de categoria equiparada à Advocacia, seja ela pública ou privada, estando, na realidade, mais próxima ao desenho institucional atribuído ao próprio Ministério Público".

O relator acrescentou, ainda, que o papel previsto à Defensoria Pública tem “desenho institucional” próximo ao do Ministério Público e que os poderes dados a ambos, tanto em âmbito constitucional quanto em infraconstitucional, como o poder de requisição, foram atribuídos como instrumentos para a garantia do cumprimento de suas funções institucionais.

O julgamento da ação, contudo, encontra-se suspenso em virtude do pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes.

Desde logo, porém, é possível afirmar que razão assiste ao ministro relator da ação, vez que a Defensoria exerce atividade distinta da advocacia, a qual encontra-se pautada no vínculo de natureza contratual existente entre o cliente e seu causídico, estando esse movido, primordialmente, pelo lucro. O defensor público, por sua vez, tem por objetivo principal a justiça social, se ocupando, à título de exemplo, da fiscalização de políticas públicas, da promoção, da difusão e da conscientização dos direitos humanos, da preservação e reparação dos direitos de pessoas vítimas de tortura, abusos sexuais, discriminação ou qualquer outra forma de opressão ou violência; dentre outros.

Além disso, enquanto agente público, o defensor alcança capacidade postulatória por meio de sua nomeação e posse no cargo (e não por meio de procuração), atuando em nome de seus assistidos por força de mandamento constitucional. Cumpre ter presente, ainda nesse ponto, o fato de que o STF considera inconstitucional a exigência de inscrição de defensor público nos quadros do Conselho Federal da OAB para o exercício de suas funções (RE 1.240.999), tendo sido destacado pelos ministros, quando da análise de tal questão, que os defensores públicos sujeitam-se a regime próprio e a estatutos específicos, submetendo-se à fiscalização disciplinar por órgãos próprios, e não pela OAB.

Valido, pontuar, ademais, que o poder de requisição defensorial também decorre da ampla possibilidade de atuação da instituição descrita no art. 134 da Constituição, o qual concede à Defensoria Pública status de instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do artigo 5º, LXXIV, da Constituição.

Além de reafirmar a posição da Defensoria Pública como instituição essencial, atuando como mecanismo crucial para a promoção da igualdade substancial e dos direitos humanos, a Lei Complementar 80/1994, que se ocupa da organização da Defensoria, dispõe acerca do poder de requisição, que tem previsão constitucional (artigo 134 da Constituição), concedendo à Defensoria Pública legitimidade de solicitar às autoridades, agentes públicos e entidades privadas certidões, exames, perícias, vistorias, diligências, processos, documentos, informações, esclarecimentos e demais providências necessárias à sua atuação.

No que concerne às significativas transformações operadas ao longo dos últimos anos sobre a matéria, preceituam Roger Silva e Esteves (2018, p. 154) que, com o advento da Lei Complementar 132/2009, além de restar ainda mais evidenciada a separação ontológica entre advogados e defensores públicos, também foram ampliadas, significativamente, as funções institucionais de caráter eminentemente coletivo da Defensoria Pública. Afirmam os autores:

A reafirmação da legitimidade para a propositura de demandas coletivas (artigo 4º, VII, VIII, X e XI), a autorização legal para convocar audiências públicas (artigo 4º, XXII) e para participar dos conselhos de direitos (artigo 4º, XX) demonstram que a atuação funcional da Defensoria Pública não mais se encontra adstrita à defesa dos direitos subjetivos individuais das pessoas economicamente necessitadas. Com essa nova racionalidade funcional, a ideia simplória de que os defensores públicos seriam simples advogados dos pobres restou definitivamente soterrada.

Frise-se, ainda, que a evolução das demandas sociais e a ampliação da busca pela satisfação do direito da coletividade trazem como consequência a legitimidade da instituição para o ingresso de ações de controle abstrato de constitucionalidade (subsidiadas, com frequência, por documentos e informações requisitados aos poderes públicos), haja vista sua missão, estabelecida, sobretudo constitucionalmente, consistente em promover os direitos humanos e a defesa dos seus assistidos por todas as instâncias do Poder Judiciário, o que reforça a amplitude do papel desempenhado pela instituição e o argumento de que sua atividade encontra-se desvinculada da advocacia.

Dessa forma, imperioso observar que “em que pese o respeito aos advogados particulares que se empenham de forma digna a prestar tal assistência judicial, a Defensora tem um espectro infinitamente mais amplo de atuação, para muito além da mera assistência judicial gratuita”, conforme registram Paiva e Fensterseifer (2019, p. 81).

Diante disso, restando estabelecida a diferenciação entre o múnus público exercício pela Defensoria e a advocacia privada, impõe-se reconhecer que para que a Defensoria Pública possa honrar a característica que lhe foi atribuída pelo legislador (o infraconstitucional e o constitucional), imprescindível o exercício do seu poder requisitório, o qual, frise-se, contribui, de maneira significativa, não raras vezes, para a resolução de demandas na esfera extrajudicial.

Resta claro, dessa forma, que deve ser considerada constitucional a prerrogativa da Defensoria de requisição, por se tratar de ferramenta indispensável para a efetivação do princípio do acesso universal da jurisdição, tendente, ainda, a propiciar a satisfação imediata e efetivação de direitos básicos por parte dos mais alijados, além da consequente diminuição da sobrecarga do Poder Judiciário, dado o seu forte potencial para resolução extrajudicial de conflitos.

Referências
BRASIL. Constituição (1988) Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Texto constitucional de 5 de outubro de 1988, com as alterações adotadas pelas emendas constitucionais. Diário Oficial da União, Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: Acesso em: 15 nov. 2021.

BRASIL. Presidência da República. Lei Complementar n. 80, de 12 de janeiro de 1994. Organiza a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal, dos Territórios e prescreve normas gerais para sua organização nos Estados, e dá outras providências. Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para assuntos jurídicos. Diário Oficial da União, 13 jan. 1994. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp80.htm>. Acesso em: 15 nov. 2021.

BRASIL. Presidência da República. Lei Complementar n. 132, de 7 de outubro de 2009. Altera dispositivos da Lei Complementar n. 80, de 12 de janeiro de 1994, que organiza a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios e prescreve normas gerais para sua organização nos Estados, e da Lei n. 1.060, de 5 de fevereiro de 1950, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 8 out. 2009a. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/Lcp132.htm>. Acesso em: 15 nov. 2021.

DAYRELL, Gustavo; KIRCHNER, Felipe. Democratização da jurisdição constitucional e legitimação universal da Defensoria Pública. In: OLIVEIRA, Alfredo Emanuel Farias de; ROCHA, Jorge Bheron; PITTARI, Mariella; MAIA, Maurilio Casas (Orgs.). Teoria Geral da Defensoria Pública. Belo Horizonte: D’ Plácido, 2020. p. 155-192.

DEFENSORIA PÚBLICA É A INSTITUIÇÃO MAIS BEM AVALIADA PELA POPULAÇÃO. Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, 3 Dez. 2019. Disponível Em: <https://www.defensoria.mg.def.br/destaque/defensoria-publica-e-a-instituicao-mais-bem-avaliada-pela-populacao/>. Acesso em: 15 nov. 2021.

ESTEVES, Diogo; SILVA, Franklyn Roger Alves da. Princípios institucionais da defensoria pública. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018.

PAIVA, Caio; FENSTERSEIFER, Tiago. Comentários à Lei Nacional da Defensoria Pública. Belo Horizonte: CEI, 2019.

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