Opinião

Clubes brasileiros não podem usar Lei da SAF para institucionalizar o calote

Autores

  • José Francisco C. Manssur

    é advogado professor de Direito Desportivo do Departamento de Direito Econômico Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo professor de Direito Desportivo no Curso de Gestão para Profissionais do Esporte da FGV/SP Universidade São Marcos e Marketing Champion da ESPM sócio do Ambiel Manssur Belfiore Gomes e Hanna Advogados e coautor dos livros "Futebol Mercado e Estado" e "Sociedade Anônima do Futebol".

  • Carlos Eduardo Ambiel

    é professor de Direito do Trabalho Processo do Trabalho e Direito Desportivo da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP-SP) professor convidado do curso de Direito Desportivo da Universidade de São Paulo (USP) e sócio do Ambiel Manssur Belfiore Gomes e Hanna Advogados.

23 de novembro de 2021, 19h01

A Lei 14.193/2021, que criou a recente sociedade anônima do futebol (SAF), dá sinais claríssimos de que trará mudanças estruturais para o futebol brasileiro. No entanto, enquanto alguns clubes e investidores já se preparam para as primeiras criações das novas sociedades, uma parte dos clubes associativos, aproveitando-se de uma interpretação claramente equivocada dos tribunais, pretende institucionalizar situação que cria injustificados empecilhos para o pagamento de suas dívidas.

Afinal, muitos clubes associativos, ou seja, que ainda não se transformaram ou constituíram SAF, estão requerendo e obtendo acolhimento, pelo Poder Judiciário, de pedidos de adesão ao Regime Centralizado de Execução (RCE). A Lei 14.193/2021 quis garantir que a SAF nascesse "limpa" em relação às dívidas anteriores do clube que a constituiu, cabendo, assim, ao clube original a responsabilidade pelo pagamento dos débitos passados.

Ou seja, foi exatamente para evitar que a constituição da SAF resultasse em um "calotaço" — assim entendido o não pagamento dos credores dos clubes — que o legislador criou o RCE, concedendo novos prazos e procedimentos para o pagamento das dívidas, justamente daqueles clubes que decidissem se transformar em sociedade anônima e, assim, fossem capazes de captar novos recursos e gerar receitas para ajudar no pagamento das antigas dívidas, prevendo obrigação de repasse de 20% das receitas da SAF e 50% dos lucros.

Há, portanto, uma lógica na extensão do prazo para o pagamento dos credores — de seis a dez anos —, pois, em troca, passam a ter uma perspectiva mais segura de recebimento dos créditos. A construção fazia sentido e foi acolhida pelo legislador. Porém, a forma como alguns clubes estão pleiteando, e o Poder Judiciário vem acatando, seguidos pedidos de adesão ao RCE está beneficiando indevidamente clubes associativos que ainda nada alteraram na sua gestão e não constituíram a SAF, tampouco apresentaram um plano de pagamento dos credores, como previsto no artigo 16 da Lei da SAF, tudo em grave deturpação à finalidade da norma.

O equívoco se explica, aparentemente, por uma interpretação literal e isolada do artigo 14 da Lei 14.193/2021, quando afirma que clubes e pessoas jurídicas originais poderão aderir ao RCE. Como o artigo 1º da mesma lei define que "clube" deve ser entendido como associação desportiva, uma primeira leitura do dispositivo passa a impressão de que qualquer clube associativo poderia requerer o RCE sem precisar se transformar em SAF. Um dos autores deste texto, José Francisco C. Manssur, chegou a defender que a interpretação isolada do artigo 14 permitiria aos clubes a adesão ao RCE mesmo antes da constituição da SAF. Porém, em livro recém-lançado, o autor já manifesta posição contrária, tendo se rendido à interpretação sistemática da norma e ao próprio conceito de clube, trazido pelo artigo 1º. Além disso, a interpretação teleológica, que afere a real intenção do legislador, motivou a correção do entendimento.

"Não me envergonho de mudar de opinião, porque não me envergonho de pensar", disse uma vez Pascal. E não há dúvidas que a melhor interpretação da norma é aquela que permite a adoção do RCE apenas para os clubes ou pessoas jurídicas originárias que se transformarem ou constituírem SAF.

Intérprete originário da norma, o relator do PL 5516/2019, senador Carlos Portinho, já teve a oportunidade de manifestar-se publicamente no sentido da possibilidade de concessão do RCE apenas aos clubes que viessem a atribuir à SAF a gestão do futebol. Essa interpretação teleológica, que busca a finalidade objetiva pelo legislador, elegendo-a como fonte do processo interpretativo, serve, pois, como melhor maneira de entender o alcance da norma.

Mas há outras formas de interpretação que apenas reforçam o entendimento, a começar pela literal, apontada, inicialmente, como principal fundamento para os deferimentos do regime especial a qualquer clube. Afinal, os artigos 13 e 14 da Lei 14.193/2021 permitem que o "clube", indicado como sendo uma entidade desportiva constituída sob a forma de associação, poderia requerer o RCE, sem que ali esteja prevista a obrigatoriedade de criação da SAF. No entanto, não é esse o sentido da expressão "clube", referido e explicado na própria Lei da SAF.

Quando se refere a "clube", o artigo 1º da Lei 14.193/2021 claramente indica as entidades desportivas que se transformarem em SAF, mas que antes eram entidades associativas, contrapondo-se às "pessoas jurídicas originais", que seriam os clubes transformados em SAF, mas que antes já eram sociedades empresárias. Ou seja, em nenhum momento a Lei da SAF se refere a clube como uma simples entidade de prática desportiva, regida sob a forma de associação, mas, sim, indicando que a antiga entidade desportiva de deu origem à SAF era uma associação cível ("clube"), diferenciando da outra hipótese, que seria a criação de uma SAF a partir de um clube-empresa, identificado como "pessoa jurídica original".

O conceito serve para indicar como era a entidade de prática desportiva antes da transformação em SAF. Por isso, não existe a possibilidade de um clube associativo se beneficiar do RCE sem antes constituir uma SAF, pois, para fins da Lei da SAF, um "clube" de futebol é apenas uma entidade que se transformou em SAF e, anteriormente, era uma associação cível. Qualquer outra interpretação da norma será desvirtuar o sentido e objetivo da norma, pelo que nem mesmo a alegada interpretação literal permitiria a extensão do RCE aos tradicionais clubes associativos.

Também não se pode falar que a limitação do RCE aos clubes que constituírem SAF poderia ferir a isonomia entre as entidades, pois o regime constitui claro incentivo à adoção da sociedade empresária, disponível a todos os clubes. Como o incentivo está ao alcance de todos, não se pode falar em discriminação, ainda mais quando o modelo visa a "aprimorar o ecossistema do futebol brasileiro".

Ainda sob a égide da interpretação sistemática, há vários dispositivos da própria Lei da SAF que apontam para a correta conclusão de que o clube a ser beneficiado pelo RCE somente pode ser aquele que constituiu a SAF, como ocorre com o artigo 2º, ao prever que uma SAF poderá ser constituída, sempre a partir de um "clube" ou "pessoa jurídica original", por meio de transformação, cisão ou transferência de patrimônio. Ou seja, a lei deixa claro que, um "clube" sempre deve ser visto como uma entidade de prática que deu origem a SAF, exatamente como ocorre quando prescreve que "a Sociedade Anônima do Futebol emitirá obrigatoriamente ações ordinárias da classe A para subscrição exclusivamente pelo Clube ou Pessoa Jurídica Original que a constituiu".

O mesmo ocorre com os artigos 14 e 18 da Lei 14.193/2021 que destinam as receitas da SAF para garantir o pagamento do RCE, como previsto no artigo 10, pressupondo a existência de uma SAF. Se um clube constituído como associação pudesse se beneficiar do RCE, não haveria como auferir as receitas previstas no artigo 10 da Lei da 14.193/2021. Sob a ótica dos credores, é fundamental destacar o direito ao recebimento do que lhe é devido, o que não apresenta nenhuma perspectiva de acontecer apenas a partir do aumento dos prazos, sem o acréscimo de novas receitas e novos modelos de gestão e governança que somente advirão com a constituição da SAF.

As decisões que deferem "antecipação de tutela" para concessão do RCE antes mesmo da apresentação do plano de pagamentos e dos documentos exigidos pelo artigo 16 da lei nos parecem, em princípio, carentes do requisito essencial do fundamento do bom Direito. Afinal, o deferimento do pedido de RCE está condicionado ao exame da razoabilidade do plano de pagamentos apresentado pelo devedor, acrescido da análise dos documentos exigidos, demonstrando, minimamente, as condições financeiras do clube e sua possibilidade de pagamento das dívidas apontadas. Deferir RCE antes de examinar a razoabilidade do plano de pagamentos e os dados trazidos pelos documentos obrigatórios acaba por diminuir a efetividade da norma, trazendo insegurança quanto ao efetivo recebimento dos valores.

Porém, ainda mais graves são os casos em que se determinou suspensão de penhoras e constrições ainda antes da apresentação do plano de pagamentos e, como tal, antes mesmo que seja dado início ao cumprimento do plano com a realização dos pagamentos. O artigo 23 da Lei da SAF é bastante claro ao determinar que a não realização de constrição se dará "enquanto o clube ou pessoa jurídica original cumprir os pagamentos previstos" na seção que trata do RCE. Ora, como é possível, então, impedir penhoras antes de o devedor ao menos iniciar a realização dos pagamentos, para que se possa aferir sua regularidade?

Trata-se de ofensa frontal ao texto legal, verdadeiro açodamento que se opera desequilibrando a relação entre devedor e credor, no caso, deixando de conceder benefício ao bom pagador, mas, ao contrário, privilegiando aquele sobre o qual não há qualquer garantia sobre a capacidade ou mesmo intenção de sanar a dívida.

Por tudo quanto acima exposto, para que a Lei 14.193/2021 atinja seus objetivos e finalidades, é fundamental que o bom modelo do RCE seja conferido apenas aos clubes que constituírem SAF e, outrossim, que qualquer possibilidade de suspensão de penhoras seja admitida apenas àqueles que, além da constituição da SAF, apresentem plano de pagamento justificável e razoável, além de já estarem cumprindo regularmente tal plano. Sem isso, o instrumento criado para ajudar na transformação dos clubes brasileiros servirá apenas para postergar suas dívidas e institucionalizar o calote.

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    é sócio do Ambiel, Manssur, Belfiore & Malta Advogados, graduado em Direito pela PUC-SP.

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    é professor de Direito do Trabalho, Processo do Trabalho e Direito Desportivo da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP-SP), professor convidado do curso de Direito Desportivo da Universidade de São Paulo (USP) e sócio do Ambiel, Manssur, Belfiore, Gomes e Hanna Advogados.

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