Opinião

Inscrição na OAB de advogados públicos: a ADI 4636 e o RE 1.240.999

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22 de novembro de 2021, 18h08

Vem à tona o debate acerca da necessidade de inscrição na OAB dos advogados públicos, especialmente neste momento em que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 4636 e do RE 1.240.999 (Tema 1.074 de repercussão geral), deliberou pelo afastamento de tal inscrição em relação aos defensores públicos. O enfrentamento dessa relevante questão há de ser minucioso. O tema específico se encontra sob o crivo da Suprema Corte na ADI 5334 e no RE 609.517/RO (Tema 936 de repercussão geral), pendentes de julgamento. O risco é que eventual silogismo na solução da matéria caracterize, em verdade, raciocínio falacioso.

O contraponto fundamental que infirma a aplicação das conclusões da Suprema Corte, relativamente à inscrição na OAB dos defensores públicos, em relação aos advogados públicos, é que tais carreiras jurídicas e funções essenciais à Justiça ostentam regimes jurídicos bem diversos, desde o plano constitucional, perpassando também pelas respectivas leis complementares e ordinárias regentes.

No texto da Constituição, observa-se que a descrição do regime jurídico da advocacia pública e seus membros é mais restrita. O artigo 131 da Carta, ao se referir à Advocacia-Geral da União, apenas estabelece suas diretrizes organizacionais básicas: atribuições de representação judicial e extrajudicial da União, consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo e execução da dívida ativa tributária da União pela PGFN; previsão de lei complementar para "organização e funcionamento" da instituição; menção à chefia institucional pelo advogado-geral da União, nomeado pelo presidente da República; e determinação de que o ingresso nas classes iniciais das respectivas carreiras se dê por concurso público de provas e títulos. O respectivo artigo 132 proclama as mesmas atribuições aos procuradores dos estados, vinculados às unidades federadas estaduais.

Já no tocante à Defensoria Pública, a Constituição descreve regime jurídico mais denso, atribuindo aos respectivos integrantes até mesmo prerrogativas (como a inamovibilidade) e estabelecendo vedações (notadamente à advocacia fora das atribuições institucionais). Além disso, conferindo à Defensoria Pública autonomia funcional e administrativa, iniciativa de proposta orçamentária, e erigindo como seus princípios institucionais a unidade, indivisibilidade, a independência funcional, além de estender à instituição normas organizacionais inerentes ao Poder Judiciário (artigos 93, II, e 96 da CF).

Nesse contexto, é possível perceber a existência de um verdadeiro silêncio eloquente da Constituição Federal no que diz respeito aos advogados públicos e a descrição do seu regime jurídico. A Carta Política atribuiu relevância à instituição advocacia pública, mas não se referiu diretamente ao agente advogado público. Preferiu tratar do gênero "advogado" (privado e público) em seu artigo 133, ao preceituar que "o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei". Isso leva à conclusão da existência de uma evidente outorga constitucional à lei, como regente do específico regime jurídico do advogado público. Esse o motivo pelo qual a Carta Política deixou de esmiuçar prerrogativas e vedações aos advogados públicos. O desiderato constitucional é de que a lei assuma esse papel, dadas as particularidades que envolvem tal carreira jurídica.   

Nesse aspecto, já é possível se antever um ponto sensível e limitador para eventual deliberação da Corte Suprema no que diz respeito à necessidade de inscrição na OAB por advogados públicos: a ausência de parâmetro de constitucionalidade. Vale dizer: inexiste qualquer norma constitucional que descortine a compreensão de que a necessidade de inscrição na OAB por advogados públicos seja inconstitucional. Rememore-se que, quanto ao defensor público, a própria Carta veda diretamente a advocacia fora das atribuições institucionais, para diferenciá-lo dos advogados.

Mas é possível se extrair diretamente do texto constitucional um outro sinal importante de que o regime jurídico dos advogados públicos é distinto daquele dos defensores públicos, repercutindo na análise da afirmada (pelo Ministério Público) inconstitucionalidade da inscrição na OAB dos primeiros. É que a Constituição não apresenta palavras em vão. Nos termos da Carta Política, a denominação institucional, constante do seu Título IV, Capítulo IV, Seção III, é "advocacia" pública, de sorte que, por óbvio, o advogado público é um "advogado". Torna-se servidor público, mas mantém a nomenclatura de "advogado" após a assunção do cargo público, diferentemente dos membros do Ministério Público e da Defensoria Pública. Carlos Ayres Britto, em cirúrgico parecer ("O Regime Constitucional da Retribuição Pecuniária dos Advogados Públicos"), ensina que:

"Peculiar, peculiaríssimo fenômeno de justaposição normativa de papéis, e não propriamente de mescla ou fusão, pois o certo é que o advogado público não deixa de ser advogado pelo fato de se investir em cargo público de provimento efetivo. Acumula os dois títulos de legitimação funcional, no sentido de que a formação de advogado é condição para posse no cargo público e obtenção do status de servidor estatal efetivo. Mas este último a se somar àquele, no sentido de que o advogado não desaparece na figura do servidor, como, ao contrário, desaparece a figura do advogado que se transmuta em qualquer outro profissional de carreira jurídica estatal remunerada por subsídio. Falo dos magistrados, dos membros do Ministério Público e dos defensores públicos. O advogado a anteceder a investidura nessas três outras categorias de agentes públicos, é certo, mas não a prosseguir como um advogado mesmo. Pelo contrário, a advocacia a posteriori lhe é proibida, ainda que em nome do Estado, pois a Constituição não confunde as coisas: advogado público é advogado público, magistrado é magistrado, membro do Ministério Público é membro do Ministério Público, defensor público é defensor público. Sem mescla ou interpenetração de papéis. Cada qual com sua função, competências, prerrogativas e vedações que principiam na própria Constituição. Mas sempre sob a lógica primaz de que o advogado é o único profissional do Direito que prossegue como advogado, mesmo após a obtenção do título de servidor público. De membro efetivo da Advocacia Pública. Não muda de nome, senão para acrescentar o adjetivo 'público' ao substantivo 'advogado'. (…). Noutros termos, onde antes da investidura em cargo público havia um advogado, prossegue um advogado. Mas onde passa a haver um juiz, só antes é que havia um advogado. (…) Fale-se o mesmo, básica e operacionalmente, dos membros do Ministério Público e da Defensoria Pública".

A distinção a se fazer, quanto ao decidido pelo STF nas citadas ADI 4636 e RE 1.240.999 em relação aos defensores públicos, também envolve alguma digressão e cotejo entre as leis complementares da Defensoria Pública e da Advocacia-Geral da União.

Nesse aspecto, observa-se que, entre os dispositivos analisados pela corte nos julgados, se encontrava aquele constante do artigo 4º, §6º, da Lei Complementar 80/93, segundo o qual "a capacidade postulatória do Defensor Público decorre exclusivamente de sua nomeação e posse no cargo público". Ocorre que inexiste na Lei Complementar 73/93 qualquer regramento semelhante no que diz respeito à capacidade postulatória do advogado público. E isso se dá porque a reserva de lei complementar objeto do artigo 131 da CF apenas envolve a "organização e funcionamento" da Advocacia-Geral da União, conforme pacífica jurisprudência do STF. Ou seja, sequer há reserva constitucional de lei complementar para regular a capacidade postulatória do advogado público.

Destarte, a capacidade postulatória do advogado público é matéria cuja regulação compete à lei ordinária. E não há norma legal que a ele outorgue capacidade postulatória exclusivamente em função de sua nomeação no cargo público. Há, isso sim, previsão expressa no Estatuto da OAB  lei ordinária apta a regulamentar o ponto  no sentido da necessidade de inscrição na entidade pelos advogados públicos. 

E, nesse contexto, aclara-se a percepção quanto à existência de um verdadeiro microssistema a consubstanciar o regime jurídico dos advogados públicos, com origem na Constituição, mas que se interpenetra por leis complementares e leis ordinárias, cada uma com seu papel. Nesse convívio harmonioso, incidem leis gerais  aplicáveis à advocacia como um todo  e leis especiais aplicáveis aos advogados públicos ou aos servidores públicos. Mas se não há lei especial que cuide da capacidade postulatória do advogado público, ou dispense a sua inscrição na OAB, aplica-se a lei geral, qual seja, a Lei 8.906/94!

Oportuno registrar que o próprio Supremo Tribunal Federal tem reconhecido a existência desse sistema multifacetado de normas legais que estruturam o regime jurídico da advocacia pública, revelando a condição de "advogados" dos advogados públicos. Na ADI 6053, que afirmou a constitucionalidade da percepção de honorários por advogados públicos, o ministro Alexandre de Moraes foi clarividente:

"Embora concebidos como consequência futura, incerta e variável, que, prevista em lei e imposta por sentença à parte vencida, decorre do resultado da análise dos pedidos levados a juízo, o pagamento de verbas honorárias de sucumbência vincula-se indissociavelmente à própria natureza e qualidade dos serviços efetivamente prestados pelo profissional da advocacia (…). No mesmo sentido, a propósito, estabelece o referido artigo 22 da Lei 8.906/1994, segundo o qual é 'a prestação de serviço profissional' que assegura aos profissionais inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil 'o direito aos honorários […] de sucumbência', aplicável, integralmente, à Advocacia Pública"(grifos do autor).

Sendo certo que o regime jurídico da advocacia pública e seus membros, por vontade da Constituição Federal, é essencialmente regulado por preceitos existentes em variadas leis ordinárias, dentre as quais o Estatuto da Advocacia, resta saber se a distinção legal quanto à necessidade de inscrição na OAB de advogados públicos é razoável e apresenta justificativa plausível, reverberando o princípio da isonomia. E a resposta há de ser afirmativa. 

Com efeito, é exatamente nessas diversas leis ordinárias, a exemplo do Estatuto da Advocacia, que estão previstas as prerrogativas, direitos, deveres e proibições dos advogados públicos. A Lei Complementar 73/93 é modesta na atribuição de prerrogativas aos advogados públicos federais porque, como referido, seu objetivo se limita a organizar a funcionalidade da instituição AGU.

Portanto, o ponto nodal que justifica a obrigatoriedade de inscrição na OAB dos advogados públicos é a necessidade (não mera possibilidade) de gozo das prerrogativas dos advogados previstas na Lei 8.906/94 (Estatuto da Advocacia). Prerrogativas não como direito meramente pessoal do advogado público, mas como condicionante do próprio exercício da advocacia pública de Estado, independente e autônoma. É possível ir além: a necessidade de inscrição na OAB de advogados públicos, com a assunção das prerrogativas presentes no Estatuto da Advocacia, acaba por se configurar como um dos mais importantes alicerces institucionais da advocacia pública, dada a sua formatação e missão constitucional.

Privar o advogado público da necessidade de inscrição na OAB significaria reduzir suas prerrogativas. Privar o advogado público da necessidade de inscrição na OAB significaria enfraquecer a instituição advocacia pública. À guisa de exemplo, até mesmo o acesso a tribunais superiores por advogados públicos, pelo quinto constitucional, restará elidido, acaso se decida pela inaplicabilidade do Estatuto da Advocacia aos advogados públicos.

E dados os reflexos institucionais ora mencionados, a solução do tema em foco pelo Supremo Tribunal Federal acaba por envolver uma resposta óbvia a um questionamento simples: por que logo o advogado do Estado, cuja missão é proteger os cofres públicos, deve desempenhar seu mister sem as prerrogativas dos demais advogados? Sem dúvida, a resposta está vinculada ao próprio interesse público afeto à questão, até porque a "paridade de armas" entre as funções essenciais à Justiça é uma garantia de equilíbrio do sistema de justiça conformado constitucionalmente.  

Interesse público esse, aliás, que é atendido quando se exige dupla seleção do advogado público, a primeira delas com a aprovação no exame da Ordem, e a segunda com a aprovação no concurso público em si. Quem ganha é a sociedade com a escolha mais criteriosa dos que se tornarão advogados públicos e com a possibilidade de defesa mais qualificada dos cofres públicos em juízo ou fora dele.

Por fim, não menos relevante, o fato é que o Direito não pode desconsiderar os fatos: existe uma vinculação histórica e institucional entre OAB e a advocacia pública. A OAB é entidade de classe dos advogados, públicos e privados. Os advogados públicos têm assumido funções de destaque perante a OAB (v.g. o atual vice-presidente do Conselho Federal da OAB é advogado público). A Comissão Nacional da Advocacia Pública é uma das mais atuantes do Conselho Federal da OAB, inclusive no que diz respeito ao reconhecimento institucional de prerrogativas aos advogados públicos, através de súmulas aprovadas pela entidade

Percebe-se, assim, a relevância do que será decidido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 5334 e do Tema 936 de repercussão geral. Entre as consequências preocupantes de uma possível aplicação automática aos advogados públicos das conclusões exaradas na ADI 4636 e no RE 1.240.999 está, além da eliminação de prerrogativas do advogado público e do enfraquecimento institucional da advocacia pública, a quebra da própria segurança jurídica, dada a existência presente de um regime jurídico da advocacia pública de há muito estabilizado e harmonioso.

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