Opinião

O desfecho da ADC 49 e a modulação dos efeitos às avessas

Autor

  • Sérgio Bezerra

    é especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) e advogado tributarista no escritório Telino & Barros Advogados Associados.

22 de novembro de 2021, 6h02

Recentemente, no julgamento da ADC nº 49, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela inconstitucionalidade da incidência do ICMS nas remessas de mercadorias entre estabelecimentos de um mesmo contribuinte, estando pendente o julgamento da provável modulação dos efeitos da decisão.

Desde o ano de 1975 existe precedente nesse sentido na Corte Suprema [1]. Até os dias atuais a jurisprudência continua uníssona: só existirá hipótese de incidência do ICMS quando houver, obrigatoriamente, a transferência da titularidade do bem.

Os precedentes foram surgindo, mas não tinham capacidade legal de vincular o Poder Executivo. Nesse cenário, os estados mantinham nas legislações a previsão da tributação do mero deslocamento de produtos entre estabelecimentos do mesmo contribuinte.

Como o julgamento dessa vez foi realizado por meio de ação de controle de constitucionalidade, a decisão é vinculante aos órgãos do Poder Executivo, que deverão expulsar a norma inconstitucional das suas legislações. Assim determina o artigo 28, § único da Lei nº 9.868/1999.

Para uma solução definitiva do caso, é preciso designar os efeitos temporais da decisão. Ou a Corte Constitucional confirma a iterativa posição judicial sobre o tema, ou modula os efeitos da decisão para frente, destruindo a construção jurisdicional nesse sentido.

No debate, grandes varejistas e os Fiscos estaduais compartilham do mesmo interesse: querem que o julgado tenha efeito ex nunc. Isso porque as empresas — por esperteza — utilizavam dessa sistemática inconstitucional para transferir créditos de ICMS entre os seus estabelecimentos comerciais, em razão de as legislações estaduais preverem a incidência do ICMS nessas operações.

Assim, o tributo recolhido no estado remetente é creditado no estabelecimento do estado destinatário, em razão da aplicação do princípio constitucional da não cumulatividade.

Alguns especialistas argumentam que, em razão da vedação constitucional ao aproveitamento dos créditos nos casos em que a operação anterior não haja incidência do tributo (artigo 155, § 2º, II, "a" e "b", da Constituição Federal), os estados poderiam estornar os créditos dos contribuintes e, consequentemente, cobrar o valor do ICMS correspondente aos últimos cinco anos. Assim, alegam razões de insegurança jurídica para defender a modulação dos efeitos da decisão.

Acontece que as razões de decidir da ação constitucional foi exatamente o fato de não haver operação de circulação de mercadorias nos casos de deslocamento entre os estabelecimentos do mesmo contribuinte, em razão da inexistência de bilateralidade.

Isto é: não há circulação jurídica na mera transferência; portanto, não há de se falar em operação relevante para fins de ICMS. Razão pela qual o estorno do crédito, como defende alguns especialistas, não poderá ocorrer nessas operações, uma vez que não é hipótese de isenção ou não incidência, sendo inconstitucional o estorno dos créditos da operação que originou a transferência da mercadoria.

Pincelado esse ponto — e juridicamente rebatido —, os efeitos contábeis da decisão não são objeto central do presente artigo, mas, sim, demonstrar a possibilidade de esfacelamento de uma jurisprudência de quase meio século com possível modulação dos efeitos da decisão, em claro atropelamento às normas que preveem essa possibilidade.

A modulação no controle concentrado está prevista no artigo 27 da Lei nº 9.868/99, que dispõe que o STF poderá restringir os efeitos da decisão por razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social.

O STF, na decisão de mérito da ADC 49, em nada inovou à jurisprudência consolidada na Justiça deste país — pelo contrário, apenas reafirmou os precedentes de quase meio século do tribunal.

A função central do instituto da modulação dos efeitos das decisões em controle concentrado é garantir as premissas e estabilidades já conhecidas pelo Direito. Assim, a situação excepcional de limitar os efeitos da decisão para frente só poderá ser permitida para proteger a confiança dos jurisdicionados nas interpretações das normas jurídicas.

O possível esfacelamento da jurisprudência com uma espécie de modulação dos efeitos às avessas pune os contribuintes que planejaram suas ações futuras com o entendimento consolidado na Justiça há muitos anos, confiando na sua posição dominante.

A possibilidade de limitar os efeitos da decisão de 2022 para frente (como consta no voto do relator) — ignorando a jurisprudência cinquentenária — além de desproporcional, deve ser juridicamente afastada por razões óbvias: é ilógico alegar insegurança jurídica de uma decisão que simplesmente reafirma uma das mais antigas teses tributárias consolidadas. Afinal, o STF em nada inovou no julgamento da ADC 49.


[1] (RE 75.026-ED, relator ministro Xavier de Albuquerque, DJ 05.12.1975)

Autores

  • Brave

    é pós-graduado em Direito Tributário pelo Ibet (Instituto Brasileiro de Estudos Tributários) e advogado tributarista no escritório Telino & Barros Advogados Associados.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!