Opinião

Direitos dos usuários de planos de saúde estão ameaçados pelo STJ

Autor

  • Tatiana Viola de Queiroz

    é advogada sócia-fundadora do Viola & Queiroz Advogados (escritório especialista em autismo) pós-graduada e especialista no transtorno do espectro autista pela CBI of Miami pós-graduada e especialista em Direito Médico e da Saúde Direito do Consumidor Direito Bancário e Direito Empresarial e membro efetivo da Comissão de Direito Médico e da Saúde da OAB-SP.

21 de novembro de 2021, 11h14

Hoje em dia os beneficiários de planos de saúde particulares, ao precisarem realizar tratamentos que não estejam incluídos no rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), caso não consigam a liberação de forma administrativa, em 95% dos casos recebem esse aval via decisão judicial.

O usuário tem o amparo da Lei 9.656/98, que dispõe sobre planos e seguros-saúde e determina cobertura obrigatória para as doenças listadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e de Problemas Relacionados à Saúde (CID 10), que é uma relação de enfermidades catalogadas e padronizadas pela Organização Mundial de Saúde.

E por que esse acesso ao tratamento é conseguido em quase 100% dos casos? Porque o rol de procedimentos da ANS estabelece o mínimo obrigatório que as operadoras de saúde devem cobrir, como determinou a Resolução nº 10, de 3 de novembro de 1998, que dispôs sobre a elaboração do rol de procedimentos e eventos em saúde que constituem referência básica, e fixa as diretrizes para a cobertura assistencial.

Assim, apesar do problema enfrentado pelos usuários com negativas das operadoras — que muitas vezes insistem em negar atendimento alegando que, se tal procedimento não constar no rol, não têm a obrigação de o custear —, a situação é facilmente revertida no Judiciário, que em todo o país tem o entendimento quase pacificado de que o rol é exemplificativo, e não taxativo.

É importante ressaltar que uma listagem emitida por órgão regulador não pode se sobrepor à Lei 9.656/98, nem ao Código de Defesa do Consumidor — ou seja, não pode limitar o que a lei não restringiu. A autonomia do médico em prescrever o tratamento mais adequado também é fundamental. Isso significa que o médico é o responsável pela orientação terapêutica, de forma que se a enfermidade demanda tratamento específico, não é porque não está no rol que não deve ser custeado.

Ameaça por decisão do STJ
Contudo, essas conquistas estão ameaçadas pelo Superior Tribunal de Justiça, que está votando se o rol deve ser considerado taxativo ou exemplificativo.

No dia 16 de setembro, o relator da ação, o ministro Luis Felipe Salomão, votou pela natureza taxativa do rol de procedimentos da ANS, sustentando que a elaboração do rol tem o objetivo de "proteger os beneficiários de planos, assegurando a eficácia das novas tecnologias adotadas na área da saúde, a pertinência dos procedimentos médicos e a avaliação dos impactos financeiros para o setor".

Entretanto, o relator levantou hipóteses excepcionais em que seria possível obrigar uma operadora a cobrir procedimentos não previstos expressamente pela ANS — como terapias que têm recomendação expressa do Conselho Federal de Medicina e possuem comprovada eficiência para tratamentos específicos. O ministro também considerou possível a adoção de exceções nos casos de medicamentos relacionados ao tratamento do câncer e de prescrição off label — quando o remédio é usado para um tratamento não previsto na bula.

Salomão destacou que a Lei 9.961/2000, que criou a ANS, estabeleceu a competência da agência para a elaboração do rol de procedimentos de cobertura obrigatória. Ele também apontou que a Lei dos Planos de Saúde (Lei 9.656/1998), em seu artigo 10º, parágrafo 4º — cuja redação mais recente foi dada pela Medida Provisória 1.067/2021 —, prevê que a amplitude das coberturas no âmbito da saúde suplementar, inclusive de transplantes e de procedimentos de alta complexidade, será estabelecida em norma editada pela ANS.

Em seu voto, Salomão ressaltou que a Resolução Normativa 470/2021 fixa o rito para a atualização do rol de procedimentos e eventos em saúde. Para a atualização da listagem atual (Resolução ANS 465/2021) — segundo o relator —, foi realizada ampla consulta pública, que resultou na incorporação de 69 novos procedimentos. O julgamento foi adiado por causa do pedido de vista da ministra Nancy Andrighi e não tem data definida.

Rol da ANS x direitos do consumidor
Na prática, o que acontecerá se o STF decidir a favor da natureza taxativa do rol da ANS é que, para tudo aquilo que não estiver expressamente inserido no rol, o consumidor terá que procurar o SUS ou, ainda, pagar de forma particular. Ou seja, o paciente pagará uma mensalidade caríssima de plano de saúde e tudo aquilo que estiver fora do rol ainda terá que custear à parte, ou aguardar a assistência do SUS.

Para termos ideia, no caso do tratamento para o autismo, por exemplo, isso será totalmente inviável de duas formas, pois, na via particular, o tratamento não custa menos de R$ 10 mil mensais e, pelo SUS, quando se conseguem as terapias, são sessões que duram apenas 15 minutos, uma vez por semana. Ou seja, a legislação que determina a integralidade do tratamento não será cumprida e esses pacientes não terão a devida assistência.

Entre esses tratamentos está a terapia ABA, assim como o método Denver, ou psicomotricidade, fisioterapia com método cuevas medek, fonoaudiologia com método prompt e pecs e tantos outros tipos de terapias, sem falar no home care.

Tratamento oncológico entre outros
Além disso, a decisão deve afetar os tratamentos oncológicos, em que somente medicamentos expressamente indicados no rol serão cobertos, assim, por exemplo, aquele paciente que tiver alergia ao componente da químio que consta no rol e precisar se tratar com outra medicação terá de pagar o valor de R$ 40 mil por uma única caixa do medicamento.

Os tratamentos e cirurgias cardíacas, o botox para enxaqueca, a bomba de infusão de insulina para diabetes e tantos outros recursos para as mais diversas patologias em que hoje o paciente consegue o custeio do plano de saúde — ainda que por meio de ação judicial — também não serão mais custeados se o STJ votar pela taxatividade do rol.

Infelizmente, a decisão a favor da taxatividade só irá favorecer e aumentar os lucros das operadoras de planos de saúde, que continuarão cobrando valores altos dos clientes, com reajustes ilegais, e para qualquer tratamento que estiver fora do rol o consumidor terá de pagar de forma particular ou entrar na fila do SUS.

Uma decisão do STJ aprovando a taxatividade será um grande retrocesso para todos, especialmente para os beneficiários de planos de saúde. Cabe a todos nós, como sociedade, exigir que nossos direitos já garantidos por lei não sejam perdidos.

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    é advogada, sócia-fundadora do Viola & Queiroz Advogados (escritório especialista em autismo), pós-graduada e especialista no transtorno do espectro autista pela CBI of Miami, pós-graduada e especialista em Direito Médico e da Saúde, Direito do Consumidor, Direito Bancário e Direito Empresarial e membro efetivo da Comissão de Direito Médico e da Saúde da OAB-SP.

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