Público & Pragmático

Vacinação compulsória, passaporte de imunização e autonomia da vontade

Autores

  • Laura Armando Barros

    é doutora e mestre em Direito do Estado pela USP especialista em Direito Público pela Escola Paulista da Magistratura e em Autoridades Locais e o Estado pela ENA-Paris ex-controladora geral do município de São Paulo e professora do Insper.

  • Wilson Accioli Filho

    é doutorando e mestre em Direito do Estado pela USP especialista em Direito Administrativo e advogado.

21 de novembro de 2021, 8h00

Segundo dados da plataforma Our World In Data [1], o Brasil já aplicou 297 milhões de doses de vacina contra a Covid-19. Como resultado, há 128 milhões de pessoas totalmente imunizadas, o que representa pouco mais de 60% da população brasileira protegida contra o coronavírus. Os efeitos práticos são, para ilustrar, a queda de 93% do número de mortes no estado de São Paulo [2].

Em abril deste ano, o Brasil atingiu a triste marca de 3.733 mortes pela doença em um único dia. A média móvel nacional chegou a 3.109 falecimentos diários por Covid-19. Em pouco mais de três meses após a intensificação da campanha de vacinação, iniciada em janeiro deste ano, a curva de mortes começou a diminuir drasticamente. De milhares, passou a centenas. No último dia 16/11, em todo o Brasil faleceram 140 pessoas e a média móvel diária ficou em 244 óbitos [3]. Longe de querer minimizar os efeitos dessa tragédia global, é indiscutível que o retorno paulatino à vida "normal" somente está sendo possível graças aos efeitos positivos da vacinação em massa.

Não por outra razão que, visando à proteção da coletividade, logo no início da pandemia, o Congresso Nacional editou a Lei 13.979/2020, sancionada pelo presidente, cujas previsões, entre outras, abarcavam a realização compulsória de vacinação e demais medidas profiláticas para conter o avanço do vírus no país [4].

Não demorou até que se questionassem os comandos compulsórios da referida lei, sob o argumento do direito constitucional à liberdade individual de escolha sobre vacinar-se ou não. A discussão chegou ao Supremo Tribunal Federal que, de maneira acertada, decidiu pela constitucionalidade do artigo 3º, III, d, da Lei 13.979/2020, o qual impõe ônus jurídicos aos que não desejam se imunizar.

Durante o julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 6586 e 6587 [5] e do Recurso Extraordinário com Agravo 1267879 [6], o STF firmou entendimento de que o direito coletivo deve prevalecer sobre o individual, sendo lícito ao Estado determinar ações protetivas das pessoas mesmo contra suas vontades.

Para o Supremo, é legítimo o Poder Público sujeitar aqueles que se recusam a se vacinar a restrições quanto ao exercício de certas atividades ou à frequência de determinados lugares, desde que tais restrições decorram de previsão legal. O exemplo usado no julgamento foi o uso obrigatório do cinto de segurança. É possível ir além: proibição de fumar em locais fechados, de transacionar economicamente órgãos humanos, obrigação de se alistar, de votar, vedação ao ensino doméstico etc. O STF, entretanto, e de forma bastante razoável, proibiu atos de poder de polícia que visem à imunização forçada da população.

Conviver em sociedade exige uma série de renúncias necessárias a vontades egoísticas a bem de preservar a harmonia social e a ordem pública. Ao contrário do que o pensamento leigo possa concluir, há muito tempo não se admite máxima amplitude jurídica ao princípio da autonomia da vontade. Aliás, ousa-se dizer que nem mesmo imediatamente após a revolução liberal houve um sistema jurídico-normativo que conferisse aos cidadãos irrestrita liberdade individual para decidir o rumo de suas vidas, tendo autorização para afetar livremente direitos de terceiros.

John Locke dizia: "o estado de natureza tem uma lei de natureza para governá-lo, que a todos obriga; e a razão, que é essa lei, ensina a todos os homens que (…) sendo todos iguais e independentes, nenhum deles deve prejudicar a outrem na vida, na saúde, na liberdade ou nas posses" [7]. Dito de outro modo, quis afirmar o filósofo que cada cidadão está obrigado a se preservar, não podendo abandonar a sua posição por vontade própria. Além disso, todo homem é obrigado também a preservar, tanto quanto puder, a própria humanidade. Claro, portanto, que o sentido de coletividade sempre existiu, mesmo ao tempo do liberalismo máximo, quando se defendia com veemência as liberdades individuais dos cidadãos.

Está certo, da mesma forma, que o Estado não pode obrigar a vacinação, conduzindo o cidadão à força até um posto de saúde, amarrando-o em uma cadeira para que então lhe seja aplicada a dose do imunizante. Isso seria uma forma direta de agir. Entretanto, é lícito ao Estado criar formas indiretas de induzir o sujeito a se imunizar, restringindo-lhe direitos que somente serão oportunizados após a apresentação da carteira de vacinação. Referida medida tem popularmente levado o nome de "passaporte de imunização".

Semelhante ao que vem sendo feito na Europa, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 1.674/2021[8], de autoria do senador Carlos Portinho, criando o Passaporte Nacional de Imunização e Segurança Sanitária ou Certificado de Imunização e Segurança Sanitária. O objetivo é identificar os totalmente imunizados de modo a lhes permitir retornar ao convívio social em locais de aglomeração com garantia de proteção coletiva. Há, também, o projeto de lei de autoria do senador Jader Barbalho, nº 3.718/2021 [9], que exige comprovante de vacinação, em todo o território nacional, nos estabelecimentos educacionais públicos ou privados. Da mesma forma, por fim, de autoria do senador Acir Gurgacz, tramita no Senado Federal o Projeto de Lei 3.186/2021 [10] buscando exigir comprovante de vacinação para ingresso em prédios públicos.

Vale ressaltar que, apesar da ideia de passaporte ou certificado de vacinação ainda estar em discussão em âmbito federal, entre estados e municípios ela já é uma realidade. No Rio de Janeiro, brasileiros e turistas precisam apresentar comprovante de vacinação com as duas doses para terem o direito de frequentar locais públicos ou privados com aglomeração [11]. O mesmo já ocorre no estado de São Paulo, com exigência de comprovante para feiras, congressos, competições esportivas e shows [12], e também em Florianópolis [13]. Na capital catarinense será obrigatória a vacinação completa para eventos com mais de 500 pessoas.

O município de São Paulo criou, por meio do Decreto nº 60.442/2021, regulamentador em nível local do artigo 3º da referida Lei nº 13.979/2020, obrigatoriedade de vacinação por todos os seus agentes públicos, atuem eles junto à administração direta ou indireta. A resistência em se vacinar poderá ocasionar uma série de punições de natureza administrativo-disciplinar — inclusive demissão.

Tal visão, inclusive, foi encampada pelo STF, em decisão liminar do ministro Luís Roberto Barroso, que suspendeu, em 12 de novembro deste ano, a Portaria nº 620 do Ministério do Trabalho, a qual proibia a demissão por justa causa de empregados que se negassem a se vacinar — exceção feita aos casos de contra-indicação médica à imunização.

Trata-se em verdade de norma já existente no ordenamento pátrio desde o ano de 1976, em que o Decreto nº 78.231, regulamentar da Lei nº 6.259, estabeleceu "ser dever de todo cidadão submeter-se e os menores dos quais tenha a guarda ou responsabilidade, à vacinação obrigatória".

Ignoram os críticos de tais estratégias imunizantes de que quem não está em dia com o alistamento no serviço militar obrigatório não pode, por exemplo, emitir passaporte. Ou se alguém for flagrado dirigindo automóvel sem carteira de habilitação, sem cinto de segurança ou, ainda, pilotando motocicleta sem capacete, será sancionado. Quem não cumpre com o seu dever de eleitor — ou não justifica a sua ausência — igualmente está sujeito a restrições em sua esfera de direitos (que, no caso dos agentes públicos, redunda inclusive em potencial suspensão salarial). Assim, em termos jurídicos práticos, excetuada a ideologia da discussão, não há qualquer diferença entre os exemplos acima com as restrições a direitos imposta pela obrigação de autoimunização contra o Covid-19.

Restrição indireta à liberdade individual é a única forma de garantir eficácia e coercibilidade ao poder de polícia estatal, forçando o cidadão a ser solidário, mesmo em contrariedade aos seus desejos egoísticos ou convicções negacionistas.

Não se esqueça de que os estabelecimentos comerciais precisaram começar a ser multados para que o fumo em local fechado passasse a ser evitado. O alistamento militar obrigatório precisou entrar no rol de exigência para o acesso a outros documentos importantes para ser levado a sério. O uso de cinto de segurança precisou ser punido com pontos na carteira de motorista, colocando em xeque o direito de dirigir, para passar a ser devidamente usado.

A lógica das políticas baseadas em evidências já não admite o desprezo da ciência, da pesquisa e dos dados, tanto na formulação quanto na execução e controle do agir público.

Mais do que isso: funciona como um claro — e jurídico — limite à discricionariedade administrativa, sendo qualquer atuação contrária às evidências não só irracional e contraproducente, mas, igualmente, antijurídica.

Para concluir, nada há de anormal na compulsoriedade da vacinação, ou que já não esteja sendo praticado em outras realidades da vida jurídica do brasileiro. Tomar ou não a vacina, com a consequente garantia — ou não — do interesse coletivo à saúde, não é um direito disponível. O cidadão não pode dispor do direito de se vacinar porque ao fazê-lo estará dispondo também da vida em sociedade e dos ônus que tal forma de convivência impõe. É como dizer: inexiste direito individual disponível a se tornar vetor de transmissão ou de mutação agressiva do coronavírus.

Igualmente, não há margem de discricionariedade ou liberdade de opção pelos gestores públicos nas hipóteses de decisões contrárias às evidências, aos dados, à ciência. Neste sentido, não se fala tão somente em bom senso, mas na fundamental noção de legitimidade, responsividade, responsabilidade e eficácia da ação pública.


[4] Cf.: Artigo 3º. Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, poderão ser adotadas, entre outras, as seguintes medidas: (…) III – determinação de realização compulsória de: (…); d) vacinação e outras medidas profiláticas.

[5] TESES: (1) A vacinação compulsória não significa vacinação forçada, facultada a recusa do usuário, podendo, contudo, ser implementada por meio de medidas indiretas, as quais compreendem, dentre outras, a restrição ao exercício de certas atividades ou à frequência de determinados lugares, desde que previstas em lei, ou dela decorrentes, e tenham como base evidências científicas e análises estratégicas pertinentes, venham acompanhadas de ampla informação sobre a eficácia, segurança e contraindicações dos imunizantes, respeitem a dignidade humana e os direitos fundamentais das pessoas; atendam aos critérios de razoabilidade e proporcionalidade; e sejam as vacinas distribuídas universal e gratuitamente.
(2) Tais medidas, com as limitações expostas, podem ser implementadas tanto pela União como pelos estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios, respeitadas as respectivas esferas de competência.

[6] TESE: "É constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio de vacina que, registrada em órgão de vigilância sanitária, tenha sido incluída no plano nacional de imunizações; ou tenha sua aplicação obrigatória decretada em lei; ou seja objeto de determinação da União, dos estados, do Distrito Federal ou dos municípios com base em consenso médico-científico. Em tais casos, não se caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao poder familiar".

[7] LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. São Paulo: Abril Cultural, 1978, §6.

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    é doutora e mestre em Direito do Estado pela USP, especialista em Direito Público pela Escola Paulista da Magistratura e em Autoridades Locais e o Estado pela ENA-Paris, ex-controladora geral do município de São Paulo e professora do Insper.

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    é advogado, mestre em Direito do Estado pela USP e especialista em Direito Administrativo.

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