Embargos Culturais

Norberto Bobbio e a Teoria do ordenamento jurídico

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

21 de novembro de 2021, 8h04

No início dos anos 60, Norberto Bobbio (1909-2004) lecionou um curso sobre o tema do ordenamento jurídico. As notas das preleções, em forma de livro, foram publicadas pela Editora da UnB (com tradução de Maria Celeste dos Santos). Nessa edição há um estudo introdutório de Tércio Sampaio Ferraz Júnior, em forma de apresentação, que realça como lições do pensamento de Bobbio a sensibilidade pela mudança e o permanente compromisso com realidade. A outra parte do curso é sobre a teoria geral da norma, que resenharei qualquer dia desses[1].

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A Teoria do ordenamento jurídico é um livro de consulta permanente, ainda que muitas vezes impotente para o enfrentamento de problemas mais contemporâneos de interpretação, a exemplo de conflitos entre diretivas do próprio texto constitucional. Dividido em cinco capítulos a Teoria do ordenamento jurídico substancializa as linhas gerais de uma teoria do direito. Tem como temas centrais a unidade, a coerência, a completude e as relações entre os ordenamentos jurídicos. Pode também ser lido como um pano de fundo conceitual para os problemas clássicos de antinomias e lacunas, cujas soluções, do ponto de vista mais prático, estão de uma certa forma dispostas na lei de introdução às normas do direito brasileiro (na redação da Lei 12.036/2009).

Bobbio inicia o livro explorando a singularidade e complexidade das normas jurídicas, discorrendo sobre uma imaginária expansão da norma para o ordenamento. De fato, insiste, “as normas jurídicas nunca existem isoladamente, mas sempre em um contexto de normas com relações particulares entre si”. A esse contexto denomina de “ordenamento jurídico”, tópico que alguns resistem em estudar. Bobbio reporta-se a Hans Kelsen e a atenção que o autor de Teoria pura do Direito prestou aos problemas relativos à norma jurídica (nomostática) e ao ordenamento (nomodinâmica).

Bobbio é refinado intérprete e interlocutor das teorias de Kelsen. Teorizou o direito sobre critérios formais, materiais, de sujeição à norma, bem como do ponto de vista do agente politico que produz a norma jurídica. A norma jurídica, continua Bobbio, é aquela norma “cuja execução é garantida por uma sanção externa e institucionalizada”. O autor italiano projetou o Direito no problema da sanção, o que o inscreve na linha do positivismo jurídico analítico, ainda que não muito claramente, como se intui da introdução ao livro.

Ordenamentos são compostos por conjunto significativo de normas, produzidas por um legislador, “personagem imaginário que esconde uma realidade mais complicada”. Nesse passo Bobbio trata das “fontes do direito”, reconhecidas e delegadas, como fundamento último da construção ideal e real do ordenamento. Tenho a impressão que a teoria das fontes é o assunto mais importante da teoria geral do Direito.

Segundo Bobbio há normas que mandam ordenar, que proíbem ordenar, que permitem ordenar, que mandam proibir, que permitem proibir, que mandam permitir, que proíbem permitir e que permitem permitir. Uma concepção coerente e lógica é construída com vistas a controlar essa profusão de normas, em permanente situação de concorrência e de atrito. Seguindo o roteiro conceitual do escalamento ordenado das normas Bobbio evidencia hierarquia que alcança uma norma fundamental, com base em norma suposta, que “deve ser procurada fora do sistema jurídico, ou seja, daquele sistema que para ser fundado traz a norma fundamental como postulado”. Uma regressão ao imperativo kantiano, que Kelsen carregava como bússola.

Com vistas a enunciar uma teoria justificadora da coerência do ordenamento Bobbio prescreve como as antinomias deveriam ser identificadas e atacadas. Propõe e explora critérios tradicionais de superação de antinomias, nomeadamente, os critérios cronológicos (a lei posterior revoga a lei anterior), hierárquicos (a lei superior revoga a anterior) e de especialidade (a lei especial revoga a lei geral). Bobbio explora também o problema do conflito entre a lei e o costume, reconhecendo a fragilidade desse último em relação àquele primeiro.

Em seguida Bobbio explora o tema das lacunas, o que sugere indiferença normativa para com algum tópico a espera de regulação (espaço jurídico vazio, na expressão de Bobbio). Há necessidade de concepção de uma pauta de soluções, em forma de completude, justamente porque a completude é condição necessária para a vigência do ordenamento.

Nos sistemas de tipicidade cerrada, como o nosso, “o juiz é obrigado a julgar todas as controvérsias que se apresentarem a seu exame”, devendo também julgá-las “com base em uma norma pertence ao sistema”. Trata-se do “dogma da completude”, isto é, “o princípio de que o ordenamento jurídico seja completo para fornecer ao juiz, em cada caso, uma solução sem recorrer à equidade”, vigente nas teorias europeias que radicam na tradição do Direito romano.

Bobbio então avia uma doutrina para o enfrentamento das lacunas. Trata das diferenças entre analogia (nova norma) e interpretação extensiva (utilização de uma norma já existente, ainda que disposta para outra situação e problema). Por fim, Bobbio explora as várias relações que há entre os ordenamentos, de coordenação e de subordinação (nesse caso, de supremacia recíproca).

A Teoria do ordenamento jurídico é um livro sobre normas jurídicas, com temas e problemas de uma época diferente da nossa. Mas que merece uma releitura. É um clássico, e como sempre digo, clássicos são os livros que dizemos que estamos relendo. Nunca se diz ler um clássico. Clássicos são relidos.

Ao ensejo da morte de Bobbio, o ex-deputado e advogado Célio Borja, em entrevista para o Estadão, lembrou que o autor italiano buscava a conciliação da liberdade com o dever ético de acudir as necessidades das grandes massas desassistidas. Em a Teoria do ordenamento jurídico Bobbio enuncia rotinas e práticas jurídicas que buscam esse elo perdido entre direito e democracia, ainda que sob a roupagem de exploração neutra de formalidades interpretativas.

[1] Eu dedico esse ensaio ao professor doutor Luiz Regis Prado, a quem muito devo. Lembro-me de uma aula, no distante ano de 1994, ocasião em que nosso exímio penalista dissertou sobre o autor italiano e sua obra. Aquele aula, e depois a leitura do livro, mudaram a minha vida.

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