Opinião

No Direito, entre a ciência e a prática há um enorme abismo

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21 de novembro de 2021, 6h36

A pandemia da Covid-19 colocou luz em um problema essencial para o desenvolvimento da sociedade, que é o reconhecimento da ciência na produção de conhecimento. Em especial na área médica, houve polêmicas sobre o chamado "tratamento precoce", indicando-se a prescrição de substâncias sem comprovação científica, uso de máscaras e as vacinas desenvolvidas em pouco tempo. A ciência foi colocada à prova e se mostrou vitoriosa, pois, com a ampliação da vacinação, os números de contaminação e mortes reduziram drasticamente.

Um médico, ao assumir a obrigação de tratar um paciente, deve agir com autonomia, desde que seus métodos sejam reconhecidos pela ciência. Aplicar medicamentos e procedimentos sem consistência científica, por achar que podem dar certo, sem estudos suficientes, não é permitido. As ciências médicas seguem rigorosos critérios de análise para que o pesquisador chegue a uma conclusão e, posteriormente, a publicação dos resultados também requer checagem dos pares, sempre profissionais acostumados à metodologia aplicada.

A confiança do paciente em relação ao seu médico decorre de sua experiência, de seus estudos, de suas habilidades. Dificilmente alguém que tenha problema cardíaco procura um ortopedista ou quem sofre um AVC vai atrás de um pediatra. Um médico prático não precisa ser, necessariamente, um cientista, mas precisa conhecer os estudos mais modernos e eficientes de sua área de atuação. O tratamento adequado e os medicamentos receitados passam pelo crivo da ciência e isso exige constante estudo para atualização.

No Direito, a relação do profissional com a ciência deve ser a mesma. Advogados, juízes, promotores, procuradores, delegados de polícia, todos devem seguir o que a ciência diz. A aplicação da lei requer uma metodologia de análise e compreensão do caso concreto e dos preceitos constitucionais. Especificamente no caso do Direito Penal, existe uma teoria do delito que carrega conceitos essenciais para compreender se o fato constitui crime e também há uma teoria da pena, que apresenta regras relacionadas à aplicação e cumprimento da sanção. Tudo regido pelos princípios dispostos na Constituição Federal e nos tratados internacionais de direitos humanos.

A ideologia não pode ser o vetor que direciona o trabalho prático. Antes de tudo, deve-se respeitar e preservar os alicerces da democracia, sem os quais o Direito perde a razão de existir. Presenciamos — e não é de agora — o desvirtuamento das ciências jurídico-penais para a condução de investigação e processos pelo "achismo", pela aplicação de regras sem sustentação dogmática, e, principalmente, ignorando-se a realidade constitucional instalada em 1988. Nunca se pode cansar de dizer: nossa legislação penal e processual penal tem raízes no Estado Novo, num regime de exceção, cuja Constituição era completamente diferente da atual. E mais, fomos fortemente influenciados pela legislação italiana fascista, que consagrou um sistema processual inquisitivo em detrimento do sistema acusatório.

Alguns exemplos da falta de apego à ciência podem ser extraídos da jurisprudência. Em recente decisão, o STJ equiparou a nulidade processual absoluta à relativa, como se seus fundamentos fossem iguais. Os Tribunais de Justiça afastam a lesão insignificante ao bem jurídico por causa da reincidência, como se tipicidade e culpabilidade tivessem as mesmas funções dogmáticas. A prescrição em perspectiva, com base na pena máxima, não é aplicada por ausência de previsão legal, ainda que seja inconstitucional alguém ser réu numa ação penal que certamente prescreverá em razão do tempo. O porte de drogas para uso próprio gera condenações mesmo sem saber qual bem jurídico é tutelado pelo tipo penal respectivo. No mesmo sentido, crimes de perigo abstrato são tratados todos da mesma maneira, desprezando-se seus graus de periculosidade. O conceito de justa causa para a ação penal vem sendo cada vez mais flexibilizado para permitir que um indivíduo se torne réu mesmo com a perspectiva de absolvição futura, como se isso fosse "mero incômodo".

Os fundamentos das decisões variam entre impedir a impunidade e acabar com a corrupção, sem qualquer comprovação de eficácia das medidas. Qual a prova de que eliminar a prescrição, limitar as nulidades, aplicar penas altas ou denunciar a todo custo vai diminuir a criminalidade? Os julgamentos ocorrem por conveniência, de acordo com o clamor público ou ideologia de quem decide. Escassas são as decisões que se preocupam em explicar as teorias aplicáveis no caso concreto. Pior é a importação de teorias de maneira torta, como aconteceu, por exemplo, com o domínio do fato e a cegueira deliberada. A primeira, por exemplo, provocou um artigo do professor Roxin, seu criador, para explicar que aquilo que a jurisprudência brasileira entende como domínio do fato não é a sua concepção.

Se o cidadão tem o direito de ser atendido por um médico capacitado, especializado na área certa, atualizado com o que a ciência tem de melhor a oferecer, por que não ser investigado, denunciado, julgado ou defendido por quem segue os preceitos das ciências jurídicas? Obter o diploma no curso de Direito é apenas o início da trajetória profissional e o constante aperfeiçoamento é obrigação de quem milita nas diversas carreiras. Principalmente para quem atua no sistema de Justiça Criminal, diversas vidas estão em suas mãos. As ciências jurídicas não podem ficar restritas apenas a alguns livros que compõem as estantes daqueles que se preocupam em produzir conhecimento.

Autores

  • é advogado criminalista, professor da Faculdade de Direito do IDP-São Paulo, doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo e pós-doutor em Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra.

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