Observatório Constitucional

Covid-19 e seus impactos sobre os direitos humanos: a persistência da crise

Autores

  • Vera Karam de Chueiri

    é professora titular dos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná.

  • Melina Girardi Fachin

    é professora associada da Universidade Federal do Paraná (com estágio pós-doutoral na Universidade de Coimbra no Instituto de Direitos Humanos e Democracia) doutora em Direito Constitucional (com ênfase em direitos humanos) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo visiting researcher da Harvard Law School (2011) mestre em Direitos Humanos pela PUC-SP bacharel em Direito pela UFPR e advogada sócia de Fachin Advogados Associados.

20 de novembro de 2021, 8h00

Passados quase dois anos pandêmicos, mais de 600 mil vidas perdidas no Brasil, a maior crise (sanitária, mas não só) de nossa história vai dando sinais de arrefecimento com o avanço da vacinação. Todavia, consequências outras da crise — que se agudizaram com a pandemia — persistem.

A pandemia da Covid-19 tem sido um teste para sociedades, governos e pessoas e o respeito pelos direitos humanos é fundamental para o sucesso da resposta no seu enfrentamento. Isso se deve principalmente ao fato de que a pandemia da Covid-19 e as medidas e restrições relacionadas colocaram os direitos humanos sob grande tensão em todo o mundo e, principalmente, no cenário de erosão democrática brasileiro.

No Brasil, a pandemia expôs o paradoxo da efetivação dos direitos humanos: boas políticas e serviços de saúde públicos (constitucionais) e as fraquezas do governo para torná-los eficazes e acessíveis a todes. A necessidade premente dessas políticas é ainda mais urgente para os mais vulnerados e vulneradas, como povos indígenas, pessoas encarceradas, comunidade LGBTQIA+ — entre outras pessoas que estão à margem da proteção.

Infelizmente, as consequências da pandemia persistirão e os direitos humanos podem sofrer abalos secundários. Para o enfrentamento do vírus, e para mitigar os efeitos das medidas destinadas a conter a propagação da Covid-19, foi e é necessário um consórcio de ação do governo, sociedade civil, pessoas e instituições (privadas e públicas). O reconhecimento do valor constitucional da solidariedade e o dever estatal e particular de cooperação, em todos os níveis, é fundamental.

De acordo com os compromissos internacionais que o Brasil faz parte, como o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Protocolo de San Salvador, todos têm direito ao "mais alto padrão possível de saúde física e mental". Assim, os estados são obrigados a tomar medidas eficazes para a prevenção, tratamento e cura. De acordo com a Constituição Brasileira (artigos 6, 196, 197 e 198), todos também têm direito à saúde e o poder público tem o dever de prestar serviços de saúde por meio de políticas públicas de saúde.

Além disso, é reconhecido na jurisprudência do STF e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, que direito à saúde está intimamente relacionado e dependente da realização de outros direitos, incluindo os direitos à alimentação, habitação, trabalho, educação, dignidade humana, vida, não discriminação, igualdade, proibição de tortura, privacidade, acesso a informação e as liberdades de expressão, associação, reunião e movimento. Trata-se de componentes integrais e interdependentes do direito à saúde.

Por esse motivo, mesmo em uma situação de exceção (em estado de emergência, genericamente falando) como a pandemia da Covid-19 e diante de suas circunstâncias, as restrições tomadas pelos governos em todos os níveis (federal, estadual e local) devem ser legais, necessárias e proporcionais. Assim, quaisquer medidas tomadas para proteger a população que limitem os direitos e liberdades das pessoas devem ser circunscritas em duração e qualquer redução de direitos deve levar em consideração o impacto desproporcional, sobretudo em populações específicas ou grupos marginalizados.

Nesse sentido, a fim de demonstrar a integralidade e interdependência do direito à saúde, elegemos dois casos em que o impacto da pandemia da Covid-19 sobre os direitos humanos no Brasil agudizou-se ainda mais por ações ou inações (omissão) governamentais. O caso um diz respeito à liberdade de expressão e liberdade acadêmica e científica e o caso dois sobre a população indígena e seus cuidados de saúde.

Caso 1: o direito à liberdade de expressão, liberdade acadêmica e científica e acesso à informação crítica
De acordo com o Direito Internacional dos Direitos Humanos e o Direito Constitucional brasileiro, o Estado tem a obrigação de proteger o direito à liberdade de expressão, liberdade acadêmica e científica, incluindo o direito de buscar, receber e transmitir informações de todos os tipos. As restrições permissíveis e eventuais à liberdade de expressão, liberdade acadêmica e científica por motivos de saúde pública não pode comprometer o direito em si.

No caso da pandemia da Covid-19, o governo é responsável por fornecer as informações necessárias para a proteção e promoção de direitos, a começar pelo direito à saúde e demais direitos como a liberdade de expressão, liberdade acadêmica e científica. É uma obrigação fundamental fornecer educação e acesso a informações sobre os principais problemas de saúde na comunidade, incluindo métodos de prevenção e controle, ou seja, políticas de saúde para combater a propagação do vírus.

Uma resposta à Covid-19 que respeite os direitos deve garantir que informações precisas e atualizadas sobre o vírus, acesso a serviços, interrupções de serviço e outros aspectos da resposta ao surto pandêmico estejam prontamente disponíveis e acessíveis a todos. Aqui há uma relação direta com as instituições educacionais, acadêmicas e científicas, com sua capacidade de produzir e disseminar conhecimento, ciência e informação e, também, com a capacidade de seus pesquisadores, professores, cientistas se manifestarem e serem ouvidos.

O governo brasileiro falhou em defender o direito a liberdade de expressão, liberdade acadêmica e científica, agindo contra jornalistas, acadêmicos e trabalhadores da saúde. Isso acabou restringindo a efetiva comunicação sobre o aparecimento da doença e intimidando todas e todos os que discordassem das políticas adotadas pelo atual governo brasileiro.

Mensagens inconsistentes de funcionários públicos federais, principalmente sobre o tratamento e a eficácia dos medicamentos, contra o uso de máscaras, contra as políticas estaduais e municipais de restrições (lockdown) e distanciamento, até mesmo mensagens negando o número de mortes, diluíram o impacto dos anúncios de serviço público sobre os protocolos adequados de saúde pública e o distanciamento social.

Acadêmicos de universidades e centros de pesquisa de prestígio que manifestaram desacordo com o governo federal, principalmente com o presidente da República, foram agredidos e agredidas oralmente e processados pelos órgãos de controle brasileiros. Aqueles(las) que são a favor da ciência e das evidências científicas foram processados e processadas por aqueles(las) que diariamente dirigiam informações falsas e enganosas ao povo e expressavam raiva contra seus oponentes.

Em vez de respeitar integralmente os direitos à liberdade de expressão, liberdade acadêmica e científica, o governo federal os restringiu, bem como o acesso à informação. Em vez de garantir que as informações que forneceu ao público sobre a Covid-19 fossem precisas, oportunas e consistentes com os princípios dos direitos humanos, funcionários públicos federais atacaram aqueles que o fizeram. Nesse aspecto convém relembrar que, por obrigações internas e internacionais, todas as informações sobre a Covid-19 devem estar acessíveis e disponíveis em vários idiomas, incluindo pessoas com baixa ou nenhuma alfabetização e para aqueles(las) que têm sua própria língua nativa, como povos indígenas. Nesse ponto, passamos para o segundo caso aqui explorado, qual seja, a omissão do governo em proteger os povos indígenas e suas comunidades contra a propagação do vírus.

Caso 2: direito dos povos indígenas à saúde
Os povos indígenas já se encontram em posições de vulnerabilidade ou marginalização da sociedade, sendo que a pandemia apenas agudizou essa situação. Há outras realidades vulneradas e marginais, como as das pessoas encarceradas, na qual o acesso aos cuidados de saúde, em circunstâncias normais, já é um problema. Garantir atendimento médico para os que estão sob custódia do Estado é uma obrigação e as autoridades que operam o sistema prisional devem divulgar publicamente seus planos de ação para reduzir o risco de infecção por coronavírus em suas instalações e as medidas que tomarão para conter a infecção e proteger as pessoas encarceradas, os funcionários do sistema prisional prisão e os seus visitantes, nos termos do que dispõe a resolução da Comissão Americana de Direitos Humanos. Todavia, pelos limites deste breve artigo, concentrar-nos-emos no direito dos povos indígenas à saúde.

O direito à saúde indígena está interconectado à realização de outros direitos humanos, como o direito à autodeterminação, o direito ao território, à consulta e à cultura. O direito à saúde dos povos indígenas careceu de apoio governamental desde sempre, mas se precarizou ainda mais com o início da pandemia. A desigualdade de tratamento e acesso dos povos indígenas às políticas e serviços públicos era, e é, cristalina.

De acordo com o Direito Internacional dos Direitos Humanos e com a legislação constitucional brasileira, os povos indígenas devem ser protegidos e o governo tem a obrigação de fornecer suporte à saúde, independentemente de sua situação fundiária. Mesmo aqueles que não vivem em seus territórios (aldeias) devem receber suporte de saúde. É inconstitucional não estender o direito de ser assistido pelo Subsistema de Atenção à Saúde Indígena aos povos indígenas que não vivem em aldeias. Também viola a Convenção dos Povos Indígenas e Tribais (169) da Organização Internacional do Trabalho.

Desde o início da pandemia da Covid-19, a invasão ilegal em terras indígenas aumentou. O governo brasileiro, ao invés de agir para prevenir, não respeita e nem protege o modo de vida dos povos indígenas, que são, social e epidemiologicamente, vulneráveis. A letalidade da Covid-19 para povos indígenas é de 9,6%, enquanto para a população brasileira em geral é de 5,6%. Isso se deve à indefensibilidade imunológica e à vulnerabilidade em relação ao seu modo de vida, à falta de cuidados e serviços governamentais e ao aumento da invasão de suas terras.

Uma consequência triste e grave dessas ações e omissões do governo federal brasileiro foi a extinção de toda uma etnia — Zuma —, que aconteceu em função da Covid-19 e da falta de ação protetora da Funai. Infelizmente, nem mesmo o Judiciário tem cooperado nessa questão. Apesar da negligência (e irregularidades) do governo federal, o Supremo Tribunal Federal adiou sua decisão na ADPF 709, frustrando uma possível resposta em termos de instalação de barreiras sanitárias em mais de 30 territórios onde povos indígenas vivem em isolamento voluntário ou contato recente, bem como a retirada dos invasores de terras indígenas.

Vale ressaltar que existem medidas cautelares na Comissão Interamericana de Direitos Humanos contra o Brasil em relação à pandemia da Covid-19 e à saúde dos povos indígenas. A comissão solicitou que o Brasil atue no sentido de proteger os direitos à saúde, vida e integridade pessoal dos membros dos povos indígenas Munduruku, Yanomami e Ye'kwana, respectivamente, implementando, com um enfoque culturalmente adequado, medidas de prevenção à disseminação da Covid-19, bem como prestar-lhes assistência médica adequada em termos de disponibilidade, acessibilidade, aceitabilidade e qualidade, de acordo com as normas internacionais aplicáveis.

Esses dois casos, liberdade de expressão acadêmica e científica e direito à saúde dos povos indígenas, são exemplos do impacto da pandemia da Covid-19 sobre os direitos humanos no Brasil a partir de suas violações por ações e omissões do governo federal baseadas no negacionismo, nas notícias falsas e na aversão ao pluralismo e à diversidade. Esperamos que a persistência da crise traga consigo a nossa persistência em adiar o fim do mundo, como nos ensina o líder indígena Ailton Krenak.

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