Limite Penal

O atomismo e a valoração racional da prova no júri

Autor

  • Marcella Mascarenhas Nardelli

    é doutora em Direito Processual pela Uerj professora de Direito Processual Penal da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e autora do livro "A Prova no Tribunal do Júri" da Editora Lumen Juris.

19 de novembro de 2021, 14h27

Na coluna desta semana, proponho uma continuação da discussão sobre o raciocínio atomístico de valoração da prova a partir de importante precedente [1] da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça que condenou a lógica usualmente utilizada pelos tribunais para julgar a apelação defensiva na hipótese de alegada contrariedade entre a decisão dos jurados e a prova dos autos (artigo 593, III, "d", CPP). O assunto já foi objeto de consideração aqui na ConJur [2], o que me dá a oportunidade de retomar uma reflexão sobre propostas que venho defendendo com vistas a proporcionar mais racionalidade às decisões no Tribunal do Júri [3].

Spacca
Sob o manto (escudo?) da soberania dos veredictos, é comum a hesitação dos tribunais em enfrentar a decisão do júri sob tal perspectiva, alegando-se que a decisão do júri somente estaria em contrariedade à prova quando for "escandalosa, arbitrária e totalmente divorciada do contexto probatório" [4]. E é nesse ponto que surge o problema, na medida em que um recurso é improvido e uma condenação, mantida com base na conclusão vaga que considera que o veredicto não estaria totalmente divorciado do conjunto probatório.

Com muita clareza, Gomes Filho [5] já há muito alertava que: "Essa distinção entre elemento de prova e resultado de prova, nem sempre feita de forma clara pelo legislador, é de grande relevância prática no processo penal brasileiro: pense-se nas situações em que a lei admite a apelação contra decisões do júri quando 'for a decisão do júri manifestamente contrária à prova dos autos' (…) ou quando autoriza a revisão criminal diante da contrariedade 'à evidência dos autos'. Nesses dois casos, o sentido dessas expressões só pode ser o de resultado da prova, não sendo viável entender-se, como muitas vezes ocorre, que a existência de um só elemento poderia afastar o conhecimento da impugnação".

Inovando em relação a essa tendência, a mencionada decisão do STJ propõe a análise da questão sob outros termos: caso rejeite a tese defensiva (de contrariedade entre a decisão do júri e a prova dos autos), deve o órgão julgador demonstrar quais elementos probatórios dos autos embasam: 1) a materialidade; e 2) a autoria delitivas; bem como 3) a exclusão de alguma causa descriminante suscitada pela defesa.

Verifica-se a imposição de uma apreciação mais concreta — e objetivável, controlável — por parte dos tribunais no que se refere à análise da decisão dos jurados frente ao conjunto probatório. Destacou-se que embora o órgão julgador não possa "se imiscuir no mérito do sopesamento do conjunto probatório", tem a "obrigação de apontar se, para cada um dos elementos do delito, existem provas de sua ocorrência, ainda que não concorde com a conclusão dos jurados a seu respeito" [6].

Ou seja, embora o raciocínio que tem como escopo determinar o peso ou valor que cada prova irá assumir para a demonstração da hipótese acusatória seja cabível apenas aos jurados de forma soberana, a análise que recai sobre a existência ou não provas destinadas a demonstrar cada um dos elementos do delito pode ser controlada pelo tribunal. Se para nós essa distinção parece estranha em meio a uma cultura probatória pouco analítica, a lógica fica mais clara a partir do Direito norte-americano, em cujo contexto se concebe uma distinção do ônus da prova entre ônus de produção e ônus de persuasão. Enquanto no primeiro caso se considera o encargo da parte de apresentar provas tendentes a dar suporte a determinada proposição fática (o que costuma ser objeto de controle pelo juiz em etapa preliminar), no segundo se está a referir ao encargo de superar o standard de prova, no sentido de que as provas apresentadas sejam consideradas suficientes para que a hipótese seja tida como provada (em análise que fica a cargo do júri).

De toda forma, como destacaram Sampaio, Silva e Avelar, a decisão em referência teve o mérito de sinalizar aos tribunais sobre a necessidade de que se orientem por uma "abordagem atomística através da individualização dos elementos de comprovação para cada parte constitutiva do crime" [7].

Pois bem. Penso que uma abordagem por essa via também seja necessária para orientar as decisões dos jurados, a despeito — e em virtude — de todos os apelos em prol de um raciocínio holístico presentes na dinâmica do procedimento e na própria atuação tipicamente persuasiva das partes na etapa desenvolvida em plenário.

É importante estabelecer como premissa que a circunstância de se confiar a decisão sobre os fatos em cidadãos sem formação jurídica não leva a que se tenha de assumir um juízo subjetivo e alheio a qualquer controle ou justificação. No entanto, a configuração do procedimento, a forma como o conhecimento é apresentado aos jurados e a dinâmica a partir da qual se orientam a deliberação e decisão sobre o veredicto por meio dos quesitos, são fatores que condicionarão a racionalidade do juízo.

A preferência por um esquema atomístico de valoração está entre as premissas assumidas pela concepção racionalista da prova para que se disponha de decisões racionalmente justificadas sobre os fatos. Por ele, cada elemento de prova é valorado individualmente — a fim de verificar sua fiabilidade — e em contraste com a hipótese fática, de modo a aferir a solidez da inferência que o conecta ao fato a ser demonstrado e analisar em que medida contribui para confirmar ou refutar a hipótese principal. Dessa cadeia de inferências extrai-se a conclusão por estar ou não justificado tê-la como provada frente ao standard de prova aplicável, com base no grau de confirmação obtido.

No entanto, pesquisas empíricas [8] demonstram que os jurados raciocinam segundo um modelo holístico, eis que tendem a construir narrativas plausíveis a fim de encadear em sequência lógica e temporal as informações recebidas, o que fazem para facilitar o raciocínio. Nesse sentido, as informações recebidas são encadeadas em sequência temporal de modo a produzirem um enredo capaz de explicar os fatos em discussão. A prova é valorada, nesse contexto, em função do sentido que adquirem em meio à narrativa, e na medida em que correspondam às expectativas dos sujeitos segundo seu próprio estoque de conhecimentos e experiências pessoais. A decisão consiste na eleição da narrativa que apresente maior coerência interna e maior plausibilidade a partir do conjunto probatório [9].

A despeito da função heurística, esse método se torna arriscado pela tendência de que as histórias criadas adquiram autonomia em relação às provas concretas, na medida em que os cidadãos passem a desconsiderar o conjunto probatório e concentrar as atenções na qualidade da própria narrativa. Não se contesta sua utilidade no contexto do júri, por sua capacidade de facilitar a compreensão do caso e a contextualização das informações recebidas, mas é preciso que o procedimento equilibre essa tendência com a adoção de mecanismos capazes de estimular a realização de um raciocínio mais analítico a partir do conjunto probatório apresentado, com base no método atomista.

A estruturação de um modelo processual capaz de proporcionar um conhecimento adequado para a decisão sobre os fatos exige que a dinâmica adotada para o seu procedimento probatório esteja orientada, em maior ou menor medida, por parâmetros epistemologicamente adequados, os quais devem ser compatibilizados com as peculiaridades que caracterizam o juízo popular.

Para isso, em tempos de discussões sobre um novo Código de Processo Penal, proponho a reflexão sobre possíveis formas de se estabelecer um ambiente processual estruturado com vistas a favorecer uma cognição adequada no contexto do júri, o qual seja capaz de organizar de forma lógica o raciocínio a ser adotado pelos jurados.

Valendo-me de uma parte da dinâmica adotada na Espanha [10] com base na Ley Organica del Tribunal del Jurado (1995), sugiro como premissa a proposição articulada de: 1) fatos alegados pelas partes; 2) provas a serem produzidas em apoio a tais fatos; e 3) quesitos formulados com base em tais proposições.

Em primeiro lugar, destaca-se a importância de se dispor de uma etapa preparatória voltada para o exercício de um controle sobre a admissibilidade da acusação e sobre a prova a ser produzida. Nesse contexto espera-se que sejam indicados, precisamente, cada um dos elementos fáticos que se constituam como pressuposto necessário para a efetivação da responsabilização penal e da definição da sanção correspondente, além dos eventualmente apresentados pela defesa como integrantes das hipóteses defensivas sustentadas. A especificação dos fatos deve ser estruturada por meio de proposições individuais e distintas, cada uma das quais indicando um elemento fático que integra a hipótese sustentada e que se constitua como objeto de prova. Deve-se evitar, nesse momento, a estrutura narrativa que é tipicamente utilizada na elaboração da peça inicial acusatória.

Em segundo lugar, já na etapa que se desenvolve em plenário, faz-se necessário estabelecer uma desejável previsibilidade — do ponto de vista do júri — acerca das pretensões das partes e das provas que serão produzidas para lhes dar suporte, a fim de que possam os jurados avaliar com clareza e objetividade o seu resultado frente ao contexto geral da hipótese acusatória.

Sobre esse ponto, interessante destacar que em pesquisas realizadas no contexto do sistema de júri norte-americano, diversos jurados se queixaram da pouca informação que receberam no início do julgamento, relativas às teses alegadas e aos elementos fáticos necessários para a configuração do delito. Segundo eles, nem sempre foi possível compreender a linha que seria adotada pela acusação, de modo que assistiam à produção das provas sem saber bem o que deveriam considerar importante [11].

Daí extrai-se a necessidade de se facultar às partes na abertura do juízo instrutório a possibilidade de apresentar oralmente suas pretensões, explicando nesse contexto a finalidade de cada elemento de prova proposto e sua correlação com os fatos que serão demonstrados a partir de sua produção. Em virtude da passividade que é característica à atuação do júri, as instruções preliminares do juiz sobre parâmetros gerais a serem observados pelos jurados e as alegações iniciais das partes assumem valor crucial no contexto norte-americano para a compreensão do júri acerca do caso e de suas funções no curso do procedimento [12].

No mesmo sentido, uma prática habitual do procedimento inglês que também se revela de potencial utilidade para o propósito de aperfeiçoar o raciocínio dos jurados consiste na disponibilização de um material denominado jury bundle, o qual reúne os principais documentos do caso, desde cópia da peça acusatória e da manifestação defensiva, até fotos, mapas, diagramas e reprodução das evidências documentais sobre os quais as partes pretendem fazer referência ao longo do julgamento. Seu propósito é o de aprimorar, de forma geral, a compreensão dos jurados sobre as pretensões das partes e os aspectos relevantes do julgamento [13].

Seguindo-se na proposta apresentada, uma terceira medida se refere à sistemática a ser adotada para a decisão, em cujo momento importa fornecer ao júri, mais uma vez — e de forma decisiva — as bases para um raciocínio adequado capaz de considerar cada um dos elementos de prova produzidos e sua articulação com os fatos que constituem as hipóteses sustentadas. Dessa forma, a exposição detalhada dos fatos pelas partes — levada a efeito na fase preparatória — dará subsídios ao juiz para a elaboração dos quesitos, os quais deverão adotar, à luz da dinâmica espanhola, o mesmo método analítico de proposições, uma para cada fato que compõem as teses sustentadas. Para cada uma delas os jurados devem responder se restaram provadas ou não, e ao final indicar se condenam ou absolvem o acusado.

A ideia é estabelecer, desse modo, uma correlação entre os fatos sustentados nas hipóteses, as provas que lhes correspondem, e os quesitos elaborados analiticamente a partir das proposições fáticas alegadas — aos quais o júri deve responder se restaram demonstradas ou não. Espera-se que a proposta de uma atividade probatória estruturada a partir de uma dinâmica mais lógica e racional seja capaz de estimular os jurados a raciocinar a partir desses mesmos critérios.

Ao final, pretende-se que a estrutura do questionário se mostre apta a fornecer o contexto para a compreensão das respostas sintéticas apresentadas pelos jurados [14], de modo que as partes e o público possam analisar as respostas do júri a partir da estrutura lógica subjacente às suas formulações. Por outro lado, espera-se que esse encadeamento dos fatos em proposições analíticas seja capaz de atuar como um roteiro para direcionar o raciocínio dos jurados. A configuração das questões sob a forma de proposições fáticas afirmativas, para serem respondidas no sentido de terem sido provadas ou não, demanda uma necessária reflexão de todos os fundamentos sustentados pelas partes à luz do conjunto probatório, em plena sintonia com uma concepção adequada de contraditório. Espera-se, por fim, que essa dinâmica seja capaz de promover um satisfatório controle da racionalidade do veredicto, de modo a suprir, na medida do possível, a ausência de uma fundamentação expressa.


[1] AREsp 1.803.562/CE. Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 24/08/2021: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202003304702&dt_publicacao=30/08/2021.

[2] SAMPAIO, Denis; SILVA, Rodrigo Faucz Pereira; AVELAR, Daniel Ribeiro Surdi de. A imprescindível existência de elemento probatório para a decisão condenatória. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-out-02/tribunal-juri-imprescindivel-existencia-elemento-probatorio-tomada-decisao-condenatoria-conselho-sentenca.

[3] NARDELLI, Marcella Mascarenhas. A Prova no Tribunal do Júri. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.

[4] Enunciado nº 28, TJ-MG.

[5] GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Notas sobre a terminologia da prova (reflexos no processo penal brasileiro). In: YARSHELL, Flávio Luiz; MORAES, Maurício Zanoide (orgs.). Estudos em Homenagem à Professora Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: DPJ, 2005, p. 308.

[6] AREsp 1.803.562/CE, cit.

[7] Cit.

[8] Especialmente: PENNINGTON, Nancy; HASTIE, Reid. The story model for juror decision making. In: HASTIE, Reid. Inside the Juror: the psychology of juror decision making. New York: Cambridge University Press, 1993.

[9] TARUFFO, Michele. La prueba de los hechos. Trad. Jordi Ferrer Beltrán. Madrid: Trotta, 2011, p. 307.

[10] Também procedendo à análise e sugestões com base no sistema de júri espanhol: LOPES Jr., Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2021.

[11] TINSLEY, Yvette. Juror Decision-Making: A Look Inside the Jury Room. In: TARLING, Roger. (ed.) The British Criminology Conference: Selected Proceedings. Vol. 4. London: The British Society of Criminology, 2001.

[12] ALLEN, Ronald J., et al. An Analytical Approach to Evidence: Text, Problems and Cases. 6th ed. New York: Wolters Kluwer, 2016, p. 127.

[13] MARDER, Nancy S. Two Weeks at the Old Bailey: Jury Lessons from England. In: Chicago Kent Law Review. vol. 86, nº 2, 2013, p. 539-543.

[14] Na linha do que fora determinado pelo TEDH no caso Taxquet v. Bélgica, 2009.

Autores

  • é doutora em Direito Processual pela Uerj, professora de Direito Processual Penal da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e autora do livro "A Prova no Tribunal do Júri", da Editora Lumen Juris.

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