O direito de retomada e a insinceridade nos contratos agrários
19 de novembro de 2021, 8h08
Inicialmente, ressalta-se que o direito de retomada do proprietário para explorar diretamente ou por intermédio de descendente o imóvel rural cedido em contrato agrário é previsto pelos artigos 95, V[1], e 96, II[2], do Estatuto da Terra. Além disso, conforme artigo 22, parágrafo 2º do Decreto 59.566/66, o exercício dessa retomada é condicionado ao envio de notificação extrajudicial no prazo de seis meses antes do vencimento do contrato[3].
Para esclarecer, na exploração direta "o beneficiário da exploração assume riscos do empreendimento, custeando despesas necessárias", conforme o artigo 7º, do Decreto 59.566/66[4]. Desse modo, o "cultivo direto e pessoal", trazido no artigo 8º[5] do mesmo texto normativo, é espécie da qual a exploração direta é gênero, uma vez que mais restrito. Salienta-se que, na exploração direta, é possível que o proprietário estabeleça contratos de trabalho para exploração do imóvel, pois, ainda assim, custearia e assumiria os riscos da atividade rural
A partir dessa perspectiva, tem-se que o pedido de retomada deve ser fundado em argumentos verdadeiros, sob pena de invalidação por simulação[6] e condenação do proprietário em indenização por danos materiais, conforme parágrafo 4º, do artigo 22, do Decreto 59.566/66[7]. Por ocasião ressalta-se que é a falta de argumentos verdadeiros no pedido de retomada que se dá o nome de "insinceridade".
É importante destacar que a boa-fé e a sinceridade do pedido de retomada do proprietário comportam presunção relativa. Com isso, o ônus probatório da insinceridade cabe ao possuidor direto – arrendatário ou parceiro outorgado – que poderá se valer de qualquer meio de prova para demonstrá-la. No mais, a constatação da insinceridade só é cabível após a retomada do imóvel rural, uma vez que é com a sua devolução que será possível notar o desvio, ou não, da função informada no pedido.
Nesse âmbito temporal, a legislação não definiu o prazo para que se inicie a exploração direta, tampouco o período em que se deve manter tal exploração. Em razão disso, considera-se a aplicação analógica[8] do artigo 44, II, da Lei 8.245/1991, que considera insincera a retomada do imóvel pelo locatário para uso próprio quando não é feita em 180 dias após a entrega do imóvel e pelo prazo mínimo de um ano[9].
No entanto, para considerar a lógica própria dos contratos agrários, deve-se considerar o desenvolvimento, completo ou parcial, do ciclo biológico como critério de manutenção exploratória. Isso porque, conforme a Teoria da Agrariedade de Antonio Carrozza[10], é o desenvolvimento desse ciclo biológico o fator distintivo da empresa rural.
Desse modo, para não se configurar a insinceridade do pedido de retomado nos contratos agrários, a exploração direta deve ocorrer em até 180 dias pelo período mínimo necessário para o desenvolvimento de parte ou de todo o ciclo da atividade econômica, não necessariamente de 01 ano. Nesse sentido, Wellington Pacheco de Barros entende que a exploração direta pelo proprietário deve ocorrer até o período de safra imediatamente posterior[11].
Por fim, é preciso destacar que, para a retomada do imóvel rural, várias atividades rurais podem ser concebidas à luz do paradigma da multifuncionalidade. Nesse sentido, a exploração direta poderá englobar, além das clássicas definidas, as atividades que visem à conservação e à manutenção de ciclos biológicos. Portanto, as atividades rurais devem ser entendidas, em seu sentido amplo, incluindo a conservação dos valores ambientais sem a necessidade de ligação com atividades agrícolas propriamente ditas[12].
[1]Art. 95, V – os direitos assegurados no inciso IV do caput deste artigo não prevalecerão se, no prazo de 6 (seis) meses antes do vencimento do contrato, o proprietário, por via de notificação extrajudicial, declarar sua intenção de retomar o imóvel para explorá-lo diretamente ou por intermédio de descendente seu.
[2]Art. 96, II – expirado o prazo, se o proprietário não quiser explorar diretamente a terra por conta própria, o parceiro em igualdade de condições com estranhos, terá preferência para firmar novo contrato de parceria
[3]Art 22, §2º – Os direitos assegurados neste artigo, não prevalecerão se, até o prazo 6 (seis meses antes do vencimento do contrato, o arrendador por via de notificação, declarar sua intenção de retomar o imóvel para explorá-lo diretamente, ou para cultivo direto e pessoal, na forma dos artigos 7º e 8º dêste Regulamento, ou através de descendente seu (art. 95, V, do Estatuto da Terra).
[4] Art 7º Para os efeitos dêste Regulamento entende-se por exploração direta, aquela em que o beneficiário da exploração assume riscos do empreendimento, custeando despesas necessárias. § 1º Denomina-se Cultivador Direto aquêle que exerce atividade de exploração na forma dêste artigo. § 2º Os arrendatários serão sempre admitidos como cultivadores diretos.
[5] Art 8º Para os fins do disposto no art. 13, inciso V, da Lei nº 4.947-66, entende-se por cultivo direto e pessoal, a exploração direta na qual o proprietário, ou arrendatário ou o parceiro, e seu conjunto familiar, residindo no imóvel e vivendo em mútua dependência, utilizam assalariados em número que não ultrapassa o número de membros ativos daquele conjunto. Parágrafo único: Denomina-se cultivador direto e pessoal aquêle que exerce atividade de exploração na forma dêste artigo.
[6] Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma. § 1º Haverá simulação nos negócios jurídicos quando: I – aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem; II – contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira; III – os instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados. § 2º Ressalvam-se os direitos de terceiros de boa-fé em face dos contraentes do negócio jurídico simulado.
[7] Art. 22, § 4º A insinceridade do arrendador poderá ser provada por qualquer meio em direito permitido, importará na obrigação de responder pelas perdas e danos causados ao arrendatário.
[8] O artigo 92, §9º, do Estatuto da Terra e o artigo 88, do Decreto 59.566/66 preveem a aplicação do Código Civil para as omissões legais. À época, estava vigente o Código Civil de 1916, que continha disposições para as locações de imóveis, urbanos e rústicos, nos artigos 1.200 a 1.215. Desde 1991, a locação de imóveis urbanos passou a ser regulada pela Lei 8.245/1991, que é aplicável aos contratos agrários por analogia. Outro argumento a favor da analogia é a semelhança do arrendamento rural com a locação de imóvel rural, tanto que ambos os contratos envolvem a cessão do imóvel e a remuneração é estipulada em aluguel. A aplicação analógica é autorizada pelo artigo 4º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.
[9] Art. 44. Constitui crime de ação pública, punível com detenção de três meses a um ano, que poderá ser substituída pela prestação de serviços à comunidade: I – recusar – se o locador ou sublocador, nas habitações coletivas multifamiliares, a fornecer recibo discriminado do aluguel e encargos; II – deixar o retomante, dentro de cento e oitenta dias após a entrega do imóvel, no caso do inciso III do art. 47, de usá – lo para o fim declarado ou, usando – o , não o fizer pelo prazo mínimo de um ano.
[10] CARROZZA, A. Lezioni sul diritto agrario. Elementi di teoria generale. 2. ed. Milano: Giuffrè, 1988. p. 29.
[11] BARROS, Wellington Pacheco. Curso de Direito Agrário. 2a. ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, v. 1
[12] TRENTINI, Flavia. Teoria geral do direito agrário contemporâneo. São Paulo: Atlas, 2012.
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