Opinião

Até onde vai a competência dos municípios para legislar sobre consumo?

Autores

  • Nathália Munhoz

    é sócia da área de Consumidor e Product Liability do Souto Correa Advogados.

  • Ronaldo Kochem

    é sócio do Souto Correa Cesa Lummertz & Amaral Advogados mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e em Global Rule of Law and Constitutional Democracy pela Universidade de Gênova (Itália).

18 de novembro de 2021, 21h18

A proliferação de leis locais sobre Direito do Consumidor passou a utilizar a técnica da codificação para editar normas sobre a matéria. Esse não é apenas o caso do Código do Consumidor Estadual de Pernambuco (Lei nº 16.559/2019), que foi objeto de uma série de ações diretas de inconstitucionalidade. É também o caso do Código Municipal do Consumidor de São Paulo (Lei nº 17.109/2019) e, mais recentemente, do Código Municipal do Consumidor do Rio de Janeiro (Lei nº 7.023/2021).

As redações dos dois códigos municipais são muito similares. Para além dos dispositivos que repetem a legislação federal, em especial do Código de Defesa do Consumidor, as novas leis elencam e detalham práticas e cláusulas consideradas abusivas pelos municípios, muitas vezes por meio de hipóteses mais abrangentes ou até contraditórias com o que estabelecem as normas federais. Desse modo, assim como o CDC/PE e o CDC/SP foram objeto de ações diretas de inconstitucionalidade perante o STF e o TJ-SP, respectivamente, o CDC/RJ parece sugerir o mesmo caminho.

Entre as práticas abusivas, encontram-se hipóteses que não estão elencadas no Código de Defesa do Consumidor. Esse é o caso da qualificação, como práticas abusivas, da "exigência de dois ou mais laudos d­­­e assistência técnica para a troca de produto viciado" e da "não disponibilização de atendimento direto ao consumidor no Município". Quanto à primeira conduta, a redação do dispositivo permite a interpretação de que os fornecedores não poderão produzir mais de um laudo técnico em suas assistências para identificar a ocorrência ou não de vício no produto, mesmo quando o fornecedor se encontra dentro do seu prazo de 30 dias previsto no artigo 18 do CDC. Dessa forma, as leis municipais parecem limitar, de forma inconstitucional, o direito que a lei federal garante aos fornecedores.

Quanto à exigência de "atendimento direto" ao consumidor no município, essa exigência gera uma série de controvérsias sobre a definição desse conceito criado pelo legislador municipal. Seria necessário que todos os fornecedores tenham atendimento presencial no município? Caso positivo, haverá uma restrição grave na livre iniciativa, ingerindo na própria decisão sobre onde as empresas vão se estabelecer. De outro lado, mesmo entendendo "atendimento direto" como não necessariamente presencial, a lei ainda tem uma série de problemas, já que ela permite a exigência, de forma geral e genérica, de que todos os fornecedores (todos) tenham atendimento direto aos consumidores dos municípios de São Paulo e do Rio de Janeiro.

Outros pontos polêmicos são a previsão irrestrita da abusividade do "estabelecimento de limites quantitativos na venda dos produtos ofertados"  que não menciona as causas autorizativas do CDC: justa causa e usos e costumes (artigo 39, I e II, CDC) , bem como a qualificação, como prática abusiva, da "oferta publicitária que não informa sobre o prazo para entrega de mercadorias", que confunde conceitos de "oferta" e de "publicidade", impondo uma exigência inviável para fornecedores que, quando promovem anúncios publicitários, em geral não sabem onde o anúncio será lido. Como, então, estabelecer um prazo de entrega? Nesses casos, se não uma declaração de inconstitucionalidade por extrapolação de competência municipal e, inclusive, invasão da competência privativa da União para legislar sobre propaganda comercial, será necessária uma interpretação conforme dos dispositivos, para interpretar os textos de modo a respeitar os direitos conferidos nas normas federais gerais.

Com relação às diferenças entre os códigos municipais, destaca-se que elas se dão em algumas cláusulas consideradas abusivas pelo município de São Paulo e não assim consideradas  ou ao menos, não elencadas  pelo município do Rio de Janeiro e vice-versa, como é o caso das hipóteses dos incisos XI e XVI do artigo 4º do CDC/SP, que estabelecem como abusivas cláusulas que "subtraiam ao consumidor, nos contratos de seguro, o recebimento de valor inferior ao contratado na apólice” e "prevejam, nos contratos de seguro de automóvel, o ressarcimento pelo valor de mercado, se inferior ao previsto no contrato". De outro lado, o CDC/RJ estabelece como abusiva cláusula que impeça "a emissão e entrega efetiva de segunda via de faturas e outros documentos ao consumidor, durante o período de greve" (artigo 4º, inciso XI).

Além disso, o CDC/SP traz disposições acerca do atendimento ao consumidor no Procon municipal, bem como ao procedimento de envio e atendimento de reclamações pelos consumidores, inclusive estabelecendo emolumentos aos fornecedores, os quais estão sendo impugnados em ação direta de inconstitucionalidade no TJ-SP. Tais disposições não foram repetidas no CDC/RJ.

As questões que se colocam a partir das leis locais sobre Direito do Consumidor têm fundamentos profundos e alcançam definição da forma de divisão de competências na República Federativa Brasileira. Sua solução deve ser buscada na Constituição Federal e nos dispositivos que diretamente estabelecem regras de competência. Soluções buscadas em outras experiências constitucionais e na formulação de diferentes conteúdos para o princípio federativo (mais ou menos descentralizados) não podem contrariar as regras de competência explícitas.

Pois, nesse contexto, o artigo 30 da Constituição Federal outorga competência aos municípios para legislarem sobre "assuntos de interesse local" e para suplementar a legislação federal e estadual "no que couber", confirmando a autorização para legislar em razão de peculiaridades locais dos municípios.

Nesse sentido, o STF já julgou constitucionais leis municipais que versavam sobre tempo de espera e horário de funcionamento de estabelecimentos. No Recurso Extraordinário nº 397.094/DF, julgado no ano de 2016, o STF entendeu que "a imposição legal de um limite ao tempo de espera em fila dos usuários dos serviços prestados pelos cartórios não constitui matéria relativa à disciplina dos registros públicos, mas assunto de interesse local, cuja competência legislativa a Constituição atribui aos Municípios, nos termos do seu artigo 30, I". Veja-se, ainda, o enunciado da Súmula Vinculante nº 38, segundo o qual "é competente o Município para fixar o horário de funcionamento de estabelecimento comercial". Os casos dos códigos municipais de consumidor não se enquadram nas mesmas condições, uma vez que não existe nenhuma peculiaridade local específica dos municípios para justificar a edição das mencionadas cláusulas e práticas abusivas.

Importante também mencionar o Agravo Regimental em Recurso Extraordinário nº 883.165/RJ, em que o STF manteve a decisão do TJ-RJ que entendeu que a Lei Municipal do Rio de Janeiro nº 5.497/12, ao proibir a cobrança de consumação mínima em bares e restaurantes, extrapolou a competência legislativa do município. O STF manteve o entendimento do tribunal de origem no sentido de que só compete aos municípios legislarem sobre o Direito do Consumidor quando a matéria está inserida no campo de interesse local.

Da mesma forma, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2216901-06.2015.8.26.0000 foi considerada inconstitucional norma do município de São Paulo que vedava o uso de carros particulares, cadastrados em aplicativos, para o transporte remunerado individual. Isso porque os princípios "da livre iniciativa, livre concorrência, defesa do consumidor e liberdade de trabalho (artigos 1º, IV, 5º XIII e 170 da CR) ostentam caráter fundamental, razão porque considerados valores estabelecidos constitucionalmente, não podendo ser contrariados no âmbito normativo local [1]".

A referida decisão foi confirmada pelo STF, por meio do Recurso Extraordinário nº 1.054.110, o qual acabou por, inclusive, culminar na seguinte tese de repercussão geral: "1. A proibição ou restrição da atividade de transporte privado individual por motorista cadastrado em aplicativo é inconstitucional, por violação aos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência; e 2. No exercício de sua competência para regulamentação e fiscalização do transporte privado individual de passageiros, os Municípios e o Distrito Federal não podem contrariar os parâmetros fixados pelo legislador federal (CF/1988, artigo 22, XI)".

Cabe ainda destacar a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 0055524-16.2019.8.19.0000, ainda em tramite no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, a ser julgada pelo Órgão Especial, na qual já houve deferimento de cautelar para suspender a eficácia dos Decretos nº 44.399/2018 e nº 46.417/2019, ambos do município do Rio de Janeiro, até́ decisão final. A decisão foi tomada considerando que "os Decretos Municipais nº 44.399/2018 e nº 46.417/2019, ambos do Município do Rio de Janeiro, não se restringem a fiscalizar e regulamentar o transporte remunerado privado individual de passageiros. Há artigos que parecem destoar do que determina a Lei Federal, o que pode representar violação aos princípios da livre iniciativa e liberdade econômica" [2].

Pelos exemplos dados acima, vê-se que os CDC/SP e CDC/RJ não encontram justificativas em peculiaridades locais e não podem ser tidos como exclusivamente de interesse local  muito menos naquilo que destoam da legislação federal. Onde não reiteram dispositivos das leis federais, os códigos municipais restringem injustificadamente os direitos e as liberdades dos fornecedores que são estabelecidos nas leis federais.

Ademais, perpetuar normas locais que não têm justificativas em peculiaridades locais implica situação de desigualdade dos consumidores  pois a ausência de interesse local mostra a ausência de justificativa para diferenciar os consumidores paulistas e cariocas em seus "direitos"  e dos fornecedores  que devem se sujeitar a exigências que alteram suas políticas, muitas vezes adotadas em nível nacional, sem fundamentação no interesse local.

 


[1] ADI nº 2216901-06.2015.8.26.0000, TJSP, Órgão Especial, relator desembargador Francisco Casconi, j. 05-10-2016, DJe 19-10-2016

[2] ADI nº 0055524-16.2019.8.19.0000, TJRJ, Órgão Especial, relator desembargador Odete Knaack de Souza, j. 17-02-2020, DJe 20-02-2020

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    é sócia da área de Consumidor e Product Liability do Souto Correa Advogados.

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    é sócio do Souto, Correa, Cesa, Lummertz & Amaral Advogados, mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e mestrando em Global Rule of Law and Constitutional Democracy pelas universidade de Gênova (Itália) e de Girona (Espanha).

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